Resenha de Hora da Aventura RPG
e entrevista com a
tradutora Eva Cruz Andrade
Hora
da Aventura RPG é uma das ótimas coisas que aconteceram em 2017. Produzido pela
editora espanhola Nosolorol, que adquiriu os direitos sobre a franquia em 2015,
a notícia de sua adaptação ganhou o mundo rapidamente, atiçando os fãs de todos
os cantos. Pouco tempo depois, em 2016, a editora Retropunk nos presenteava com
a notícia de que de o HdA RPG seria lançado no Brasil, fato este que se
concretizou este ano.
A
notícia em si já seria interessante só pelo fato de termos mais um sistema de
RPG para povoar nossas prateleiras e enriquecer nossas mesas. Mas esse sistema
é baseado em uma animação que virou uma verdadeira febre. Hora da Aventura (Adventure Time with Finn and Jake, 2010,
criação de Pendleton Ward) ganhou uma fama improvável com seu desenho fora do
padrão, cores gritantes, doces falantes e enredos surreais... na verdade tudo
nele é surreal no melhor estilo de um sonho de Salvador Dali com muito açúcar
por cima. Com tudo isso ele ganhou uma legião de adoradores que se juntaram ao
último humano da Terra, Finn, e seu companheiro amarelo e maleável ao extremo,
Jake, em aventuras cheias de fantasia no que restou do planeta após uma grande
destruição nuclear. Os enredos beirando o absurdo, mas deliciosos, nos fizeram
não uma nem duas, mas muitas vezes nos imaginarmos dentro daquele mundo
colorido, conversando com a princesa Jujuba, cantando com Marceline ou lutando
contra o Rei Gelado.
Com
tudo isso sua adaptação tinha tudo para dar errado... mas não deu.
O Jogo
Adaptações
em RPG normalmente partem de um sistema já existente onde o alvo da adaptação
tem que se adequar aos limites ou determinações da mecânica do sistema de
regras, sejam elas quais forem. Outras vezes um sistema é criado, mesmo que
pensando no objeto da adaptação, com bases em elementos recorrentes do
imaginário que temos de mecânicas de RPG. A Hora da Aventura RPG partiu de um
conceito certíssimo e diferente das duas alternativas anteriores para sua adaptação.
A preocupação de seus autores – Manuel J. Sueiro, Iván Sánchez, Pedro J. Ramos
e Sergio M. Vergara – foi manter a essência da animação em detrimento de regras
engessadas dos sistemas vigentes ou das mecânicas usuais. Em resumo, eles
construíram um sistema ao redor do modo como a animação se desenrola e esse
modo pode ser resumido à “ênfase na diversão”.
Os
personagens começam sua criação não por jogadas de dados ou regras intrincadas,
mas por um simples conceito, algo que ele faça, sofre, cria ou qualquer outra
coisa que o jogador imagine para ele, por mais absurdo que seja. Um bom exemplo
é o que está no próprio livro: “Espiga que se transforma em lobo quando se
assusta”. A primeira pergunta para alguém que ainda não conhece o livro é “mas
como raios isso é um conceito!?”. Para Hora da Aventura isso é sim um conceito,
e essa liberdade ampla dá o tom de como sua mecânica se constrói.
Estamos
em um universo onde o mote é a diversidade muito além da de gênero - a
diversidade de natureza. Na animação praticamente todo o cenário é vivo e
antropomorfizado, de animais à coisas. Além dessa amplitude de seres temos uma maleabilidade
das próprias leis da física. A maioria dos personagens pode, em alguma escala,
mudar de tamanho, de forma, de consistência e tudo mais o que nossa criatividade
supor. Pensando nisso os atributos físicos, comuns em mecânicas de jogo dos
mais variados, tornam-se quase que desnecessários. Coisas como força, destreza,
vitalidade e constituição são meros elementos narrativos aqui. Assim, o grande
diferencial vem das características psicológicas ou aptidões sociais e da
criatividade do personagem em jogo, sendo esses os Atributos para Hora da
Aventura RPG: Jeitinho, Confusão, Músculos, Cachola, Contatos, Esperteza,
Falastrice, Maneirice e Teimosia. Mas essa sacada não era suficiente para os
autores - embora sejam nove atributos, um personagem têm apenas três deles.
Essa escolha foi uma jogada de mestre (desculpem o trocadilho), pois ao invés
de termos todos os personagens com características semelhantes apenas com diferencial
em seus níveis, temos uma possibilidade gigante de criar personagens
completamente diferentes uns dos outros podendo apenas mesclar três desses
atributos. Isso emula perfeitamente a natureza amplamente diversa da animação.
Como
se isso não fosse suficiente os atributos escolhidos recebem uma pontuação de
5, 4 ou 3, onde conforme a pontuação que
você determina para cada atributo lhe permite escolher uma, duas ou três Proezas
de um universo de várias opções para cada um deles. Essas proezas são as coisas
que aquele atributo lhe permite fazer de especial. Percebe-se assim que cada
opção feita na construção e elaboração da mecânica de jogo foi para
possibilitar a pluralidade máxima – mesmo personagens com mesmo conceito,
mesmos atributos com mesma pontuação podem ter proezas tão diferentes que
criariam um personagem totalmente diferente do outro.
Se
os elementos físicos não são a tônica do sistema de regras, e sim o psicológico
e de relacionamento, as características negativas de um personagem têm um
grande peso também, tratados aqui como Defeitos. O livro nos lista uma
série de blocos gerais de defeitos para que dentro do escolhido possamos
construir a personalidade única de nosso personagem. Esses defeitos têm a
função de, além de fortalecer a personalidade do personagem, gerar Pontos
de Herói que serão usados para feitos extraordinários ao longo do jogo
(recurso usado em outros sistemas, mas muito apropriado para um cenário como
Hora da Aventura).
Toda
essa estrutura é muito simples e eficiente e deixa claro, à cada escolha que
fazemos, que o cerne do jogo é a criatividade levada à materialização em
personagens únicos.
É
claro que não haveria a menor lógica em termos um sistema que prega em suas
entrelinhas a liberdade criativa, e que em sua mecânica de funcionamento fosse
complexo. Seu funcionamento é tão simples quanto a concepção até agora e também
teve como norte a animação em si. Ao vermos o desenho notamos que as coisas
acontecem e se resolvem de formas simples. Isso não quer dizer que os problemas
e desafios não sejam perigosos, mortais ou complexos, mas que o transcorrer até
sua resolução é simples. Nada de cálculos complexos e mil dados diferenciados.
Usando apenas dados de 6 lados (d6) temos todo o universo de Ooo nas mãos.
O
funcionamento das regras se baseia em realizar testes contra Ações (que podem
ser física, mental ou social) que possam ter alguma consequência negativa a
partir de um dos Atributos apropriados. A quantidade de dados lançados no teste
depende do atributo. Se o teste for relacionado à algum atributo que o
personagem tenha ele usará a quantidade de dados igual ao valor de seu atributo
(5,4 ou 3). Caso seja de um atributo que ele não tenha, lançará usará apenas 2
dados. Resultados 1, 2 e 3 são falhas, enquanto 4, 5 e 6 são sucessos. A
dificuldade do teste varia de 0 a 4, demonstrando quantos dados de sucesso serão
anulados. Em meio à tudo isso temos os Estados que são condições físicas ou
psicológicas que influenciam os personagens durante o jogo (muito parecido com
o que temos em Mutantes e Malfeitores) alterando sua forma de atuação, de ação
ou mesmo resultados de testes.
Não
é meu interesse desmembrar todas as nuances do sistema. Para isso leia o livro
com atenção. O que desejava aqui era apresentar a alma do sistema e como ele se
adapta perfeitamente ao conceito e estrutura da animação.
Saindo
um pouco das regras e pensando em seu visual (tanto gráfico como de texto) só
posso dizer uma coisa – belíssimo. Colorido como Ooo, espirituoso como Jake e
fluído como a música de Marceline. O visual foi pensado para não percebermos
que estamos lendo um livro chato de regras, mas que temos em mãos um episódio
de Hora da Aventura. O texto simples, em linguagem acessível e com termos
pensados para atingir qualquer tipo de público, flui rapidamente sem dar margem
para entendimentos dúbios ou vai e vem atrás de conceitos. As caixas de
comentários em forma de diálogo dos personagens da animação ajudam à quebrar o
tom formal que um livro de regras poderia ter e nos fazem ansiar por cada nova
página para vermos qual a tirada espirituosa e galanteadora de Jake virá.
A edição brasileira
Este
é um capítulo à parte. Como mostrei anteriormente toda concepção do sistema foi
pensado para manter a alma da animação. Codificar essa alma em um sistema de
regras e mecânica de jogo já é complicado. Traduzir um livro de RPG, mantendo
seu conceito, é mais complicado ainda. Agora, traduzir, manter seu conceito gráfico
e ainda por cima deixá-lo com a cara e alma que o público brasileiro vai
apreciar respeitando o original é uma tarefa hercúlea, para dizer o mínimo. Mas
ele teve a sorte de cair nas mãos da Retorpunk.
A
editora Retropunk já deu provas de sobra da qualidade de seu trabalho com
Rastro de Cthulhu e tantas outras obras, mas Hora da Aventura RPG é diferente.
Muito por seu apelo midiático, sendo a adaptação de uma animação de extremo
sucesso, e seu padrão gráfico colorido quase infantil, fazem dessa produção
algo que creio ter desafiado a editora. O knowhow da RP com variados tipos de
RPGs e alguns boardgames serviram de base para que o resultado final tenha sido
tão bom. O respeito à obra original e a preocupação de manter o livro colorido
são diferenciais que numa obra como essa, onde o visual é grande parcela de seu
apelo, foram decisões corretas. Mas isso foi apenas parte do sucesso e
qualidade dessa obra. A outra parte vem da tradução.
Como
bem sabemos o ato de traduzir não é tarefa fácil e a linha que divide a
excelência do amadorismo é tênue. Para complicar ainda mais, Hora da Aventura
RPG não se sustenta em termos técnicos cuja simples menção trazem compreensão
ao leitor rpgista, mesmo que com pouca experiência. Hora da Aventura RPG tem a
ver com alma, e traduzir isso em palavras, neste caso escritas, eleva a
dificuldade em muito. Mas por sorte a Retropunk chamou para a tarefa Evelinie Cruz
Andrade, editora, tradutora, revisora, blogueira, rpgista, atuante nas causas
feministas e tantas outras coisas.
Seu
trabalho na tradução deve ter sido cansativo, embora divertido. Percebemos por
todo o livro que, embora o texto se desenrole de forma simples para não
assustar ou cansar o leitor, ele esbanja em termos informais, gírias, conceitos
próprios da animação e principalmente ‘tiradas’ cônicas e sarcásticas de alguns
personagens (principalmente nas caixas de comentários). Mas vamos perguntar
diretamente para ela neste micro-entrevista!
Por
tudo isso que foi mostrado até aqui Hora da Aventura RPG é um livro que você
deve ter em sua prateleira de jogos. Ideal para situações em que procuramos um
sistema agradável, descontraído e divertido, ele será um ótimo exercício tanto
para sua criatividade como para seu conhecimento sobre o universo de Finn e
Jake.
Bom
jogos!