domingo, 3 de agosto de 2008

Por mares nunca antes navegados
Parte 2 - A aventura inicia -

João Eugênio Córdova Brasil




“Que o Grande Oceano me permita morrer no mar,
no fio da lâmina de meu inimigo junto de meus companheiros.
Que me aceite em sua morada, nunca negando-me
as ondas sob meus pés, o céu sobre minha cabeça e
a espada em uma de minhas mãos e mulher em cada porto.
E enquanto não chegar minha hora derradeira
que me abençoe com a emoção da vitória
e o ardor do butim.”

Oração ao Grande Oceano


II. Expectativa

Já fazia um mês desde que haviam deixado para trás o Capitão Garas e o seu Alcatéia. Desde então rumavam insistentemente para nordeste. As cartas náuticas que mestre Tugar havia trocado com o Suni, imediato do navio de Garas, estavam sendo bem úteis. Já haviam tido a oportunidade de ancorar por três vezes em algumas ilhotas desabitadas pelo caminho, que serviam de pontos de abastecimento de inúmeras rotas da pirataria. Elas eram praticamente iguais a todas as ilhas de Arton. Não havia nada de muito diferente. Amontoados de terra com alguma vegetação, pontos esparsos de água doce e cristalina espalhados e sem viva alma.

Mas o sabor de novas aventuras adoçava o paladar da tripulação do Gaivota Prateada. A excitação estava entranhada em cada gota de suor que escorria pelos seus rostos. Quando ancoravam aproveitavam para esticar as pernas e exercitar o corpo. Mas ao mesmo tempo contavam os segundo para voltarem ao mar e avançar mais em direção nordeste.

Suas mentes estavam repletas de perguntas. Quais as maravilhas que aquele novo mundo lhes reservava? Que outras belezas estariam à sua espera? Os poucos exemplos aos quais tiveram contato, quando do encontro com o Alcatéia, lhes inundava a imaginação.

Por esse motivo, e por simplesmente desconhecerem o ambiente ao qual estavam navegando, lhes dava a impressão de que a empreitada estava durando muito mais do que esperavam. A ânsia por chegarem a qualquer lugar mais significativo lhes consumia por dentro. Mas era uma ânsia gostosa de sentir. Tocava no fundo do estômago de forma a nascer uma expectativa que mesclava felicidade e suspense. Era o mais próximo da felicidade que homens do mar poderiam imaginar chegar.

- Meus parabéns Tugar, os mapas estão muito precisos. Sem eles estaríamos navegando à esmo – disse o capitão durante o desjejum matinal em sua cabine. Essa pequena reunião acontecia diariamente com as principais patentes da embarcação. Era o momento de colocar todas as informações em pauta, organizar o dia que seguiria ou apenas fumar e rir um pouco.

- O mérito não é meu, não me lembro de ter visto cartas tão detalhadas nos mares à leste de Arton – resmunga o mestre entre uma mastigada e outra de pão. Todos sabiam que impressionar Tugar não era tarefa nada fácil e davam mais valor ainda às cartas náuticas do povo moreu.

- Eles parecem ter nascido para a vida no mar. Deve ser um povo de grande proximidade com a grande imensidão azul. A experiência transparece em seus movimentos, seus olhares – disse com um olhar de admiração Slocun – Nunca imaginei isso, mas temos muito o que aprender com eles.

- Só mais duas semanas senhor e podermos ter nossas primeiras impressões, acredito - mais duas semanas navegando e chegariam, segundo as cartas náuticas, na primeira ilha habitada à sudoeste de Moreania. Seu nome era Kumbach. Não tinham nenhuma informação sobre ela. Somente que era uma ilha pequena, com uma comunidade pacífica que tinha uma certa ligação com a pirataria e, segundo o próprio Garas, “seu lar”.

E a expectativa só crescia em seus corações.


III. Terra no horizonte

O amontoado de dias, em que aquelas duas semanas se transformaram, passou lentamente. Mas o amanhecer que estavam presenciando, naquele momento, trazia consigo os contornos de terra à algumas milhas de distância. O céu ainda escuro da manhã criava um contorno púrpura-roseo que emoldurava a primeira porção de terra realmente significativa que viam desde que deixaram Arton para trás.

Aos poucos conseguiam discernir o horizonte. Havia um pequeno monte cercado por uma floresta espessa. Em sua base a floresta se esparramava por uma longa porção longitudinal ocupando toda a linha da ilha. As praias encerravam o cenário brindando aquele magnífico quadro com areias do mais puro branco. Seria uma vista paradisíaca perfeita e inofensiva não fosse a surpresa que se escondiam ao longo da praia, apenas algumas centenas de metros da areia – mortíferos recifes.

A experiência de Slocun a muito já detectara o perigo e todas as ordens para evita-los já haviam sido dadas. Teriam de lançar âncora longe da praia e descer até terra firme de botes. Mas isso não era nenhum empecilho comparado à expectativa de encontrar a primeira comunidade desta nova terra.

Os botes estavam na água poucos instantes depois de descerem a âncora. Era como se estivessem esperando por aquele momento por toda uma vida – e na verdade estavam. Sentiam-se como os antigos desbravadores exilados das terras do sul de Arton ao depararem-se com o Istmo de Hangpharstyth. Sentiam-se como aquelas almas, que estavam jogadas frente-a-frente com o desconhecido. Muito embora já tenham tido uma pequena amostra deste novo continente quando em contato com a tripulação do Alcatéia, isto seria algo novo. Era seu primeiro contato com uma comunidade nova, uma civilização nova.

Não tinham idéia do que passara na cabeça daquela infeliz caravana muitos séculos atrás. Mas sabiam o que passava em seu peito agora – excitação.

Os botes deslizaram vagarosamente cortando as ondas em direção da areia. Percorreu aquela distância em poucos minutos até encalhar na praia. Nenhum sinal de vida. Nada. Só o silêncio. Logo atrás mais três botes também chegaram à areia. Slocun brigava contra si para que a prudência não fosse sobrepujada pela curiosidade. Não chegara aonde chegara deixando-se levar pela emoção – não nessas horas, pelo menos. A maioria dos homens que descera do Gaivota, depois de inúmeras discussões acaloradas sobre quem iria acompanhar o Capitão, estavam extremamente curiosos e armados – como a lógica lhes instigava.

Syan, por sua vez, possuía uma lógica ou prudência que o resto da tripulação considerava excêntrica. O clérigo descera com pelo menos duas mochilas abarrotadas de caixas e gaiolas dos mais diferentes tipos e tamanhos, pergaminhos em branco, pequenos livros de referência e seu inseparável diário, além de um ajudante escolhido à força para lhe dar auxílio em sua empreitada de estudos. Com a base de seu manto amarrado à cintura, para não molhar, tornava-se uma imagem caricata com as longas pernas brancas e cabeludas aparecendo abaixo de um emaranhado desengonçado em que se transformara sua veste – “Vamos, vamos, vamos. Tenho muito que fazer”.

Mas algo estava errado. Algo que aventureiros conseguem sentir no ar, no ambiente, nos ossos.

- Calma amigo – disse o capitão num tom mais baixo do que se poderia esperar no que deveria ser um momento festivo – não sente?

Syan piscou duas ou três vezes antes de entrar em sintonia com Joshua. Agora que lhe alertara estava percebendo algo. Ou melhor, a falta de algo – Nenhum som, além do mar, mais nada.

- Nenhuma comunidade que se diga ligada à piratas é descuidada, mesmo aqui – resmungou o capitão.

Slocun em silêncio fez uma série de sinais já memorizados por todos os seus comandados e prontamente dois grupos de três marinheiros armados partiram de forma cuidadosa ao longo da praia, para os dois lados. Logo após o capitão virou para o navio e fez um sinal com a mão com a certeza de que mestre Tugar estaria a observá-lo. De imediato, ao longe, percebeu-se um alvoroço no convés do Gaivota Prateada. Ele ainda apontou para Hillian indicando-lhe para ficar de guarda dos botes.

O capitão desembainhou seu sabre e partiu, juntamente com o restante do grupo, em direção à vegetação fechada no limite da praia. O cuidado era agora uma preocupação palpável. Não estavam em nenhuma ilhota ao longo do lado leste do Reinado – que eles conheciam como ninguém. Era um lugar totalmente desconhecido para todos. Cada passo representava um amontoado de informações novas que deveriam ser compreendidas e selecionadas por eles para usarem quando e se necessário.

Ao entrarem na mata, logo após a porção de areia, não tinha notado nada de especial. Algumas espécies até chamaram a atenção de Syan pelo caminho, mas isso teria de ficar para depois. O que lhes deixavam preocupados era o silêncio. Não haviam ruídos de pássaros ou outros animais. Só silêncio.

Um curto percurso foi realizado quando um estranho olor lhes impregnou as narinas.

- Alguma coisa está queimando... – sussurrou um dos marinheiros – e vem daquela direção.

- Cautela à todos. Nem todos precisam ser tão amistosos quanto a tripulação de Garas. Além do mais aos olhos deles somos piratas como quaisquer outros e estranhos – alertou Slocun.

Conforme avançavam o cheiro ia aumentando. Mas não conseguiam reconhece-lo. Aos poucos a escuridão da mata fechada foi sendo salpicada por pequenos raios de luz que atravessavam os galhos das árvores que iam ficando menos espessos.

Continuaram aproximando-se, agora abaixados e de forma cuidadosa. Todos aguardavam ordens do Capitão. O fim da mata estava a poucos metros e o cuidado lhes fez diminuir, ainda mais, o ruído e esgueirarem-se pelos espaços sombreados.

Todos percorreram a distância até o limite da mata silenciosamente.

Slocun levantou a cabeça calmamente para ter noção de onde estavam e, numa fração de segundos, sua visão tornou-se mareada. A palidez tomou conta da sua face e os olhos foram encerrando um olhar perdido. Lentamente ele se abaixou e, escondendo o rosto entre as mãos, suspirou.- Não....de novo não... – sussurrou mais para si do que para os outros.