A jornada iniciou. Passei a noite inteira acordado esperando o momento de levantar e com medo de perder a hora marcada. A noite arrastou-se lentamente. Nas anotações que Sir Constant me dera dois dias atrás estava especificado, além da lista de materiais a comprar, que nossa partida seria nos primeiros raios de sol. Como ordenado estava tudo pronto no momento especificado. Mas ele só apareceu, para partirmos, próximo ao meio dia.
Aos poucos vou me acostumando com o jeito de ser de meu Senhor. Poucas palavras dele foram direcionadas à mim. Ele montou seu cavalo e simplesmente ordenou – “Vamos!” – e eu cumpri sem questionar.
Partimos com quatro cavalos - o do meu senhor, o meu e dois com provisões e equipamentos. Eram belíssimos animais. Só poderiam ser encontrados nesta terra abençoada por Hypion.
Galopamos em sentido sul, na direção de Suth Eleghar, numa marcha média por cerca de duas horas antes de realizarmos nossa primeira parada. A vila de Pyltrus foi nosso local de descanso. Era umas duas vezes maior do que a minha vila natal e o aldeamento mais próximo de Palanthas. Seu centro não tinha mais do que duas ruas que se cruzavam e umas poucas duas dúzias de casas. Ela vivia das caravanas constantes que iam e vinham de Yuden (ao sul).
Nossa parada foi curta, apenas para os cavalos beberem um pouco de água e para podermos esticar as pernas. Até aquele momento nenhuma palavra foi dirigida a mim por Sir Constant. Isso me deixa incomodado, mas quem sou eu para questioná-lo.
Muitas crianças que estavam brincando pela rua, quando nos viram, correram acompanhando nossas montarias e nos enchendo de perguntas. Eram pelo menos uns dez. Corriam, gritavam, gesticulavam, tudo ao mesmo tempo. Era uma verdadeira festa.
Uma menininha loirinha de tranças corria ao meu lado perguntando sem me deixar tempo para responder: “Você é um cavaleiro também? Mas é muito jovem! Onde está sua armadura? E sua espada? Posso ver? Onde está indo? Meninas podem ser cavaleiros também? Se eu fosse uma cavaleiro seria chamada de cavaleiro ou cavaleira? Quem é ele? Vocês vão parar na vila? Posso subir no seu cavalo?!”. Eu achava muito engraçado.
Na cabeça delas éramos seres especiais – ou pelo menos meu senhor verdadeiramente o era. Tenho certeza que por esta vila estar na rota para quem vai para Palanthas deveriam passar por aqui dúzias de cavaleiros todos os anos. Mas para aquelas crianças sempre seria uma novidade.
Chegamos ao centro da pequena vila. Havia apenas uma taverna. Uma construção rudimentar de madeira que deveria ter muitos anos. Mas mesmo sendo simples, pelo que se verificava por fora, estava cuidadosamente limpa e arrumada.
Nossa parada naquele estabelecimento foi rápido. Entramos, recebemos um pouco de água para beber e nos refrescarmos e saímos.
Mas ao irmos em direção dos cavalos percebemos que todas as crianças estavam ao redor dos animais. Um deles, um menino baixinho e de pele queimada pelo sol, estava tentando tirar a espada de Sir Constant da bainha.
Meu senhor ao ver aquilo correu na direção dos animais e num só movimento desferiu um tapa que atirou o menino à quase dois metros dos animais. Todos ficaram paralisados – inclusive eu. Meu senhor permaneceu em silêncio. Subiu no cavalo e me fez sinal para fazer o mesmo. Recomeçamos nossa marcha lenta em direção sul.
Sem olhar para trás, em meio ao silêncio, só escutava os soluços do menino agredido. Não tive coragem de olhar para trás.
Acho que aquelas crianças não correrão mais atrás de ninguém.
Até a noite não trocamos nenhuma palavra. Arrumei a tenda de Sir Constant e preparei algo para comer. Ficamos algum tempo ao redor da fogueira nos aquecendo. Só então ele falou alguma coisa.
“- Nunca se esqueça rapaz... nada neste mundo dos deuses é igual. Existem patamares, como numa escada. Alguns estão acima, outros estão abaixo. Nada impede que se suba ou que se desça. O que não pode acontecer que achem que estão todos no mesmo nível. A diferença deve ser respeitada. Se os deuses nos fizeram assim quem somos nós para desobedece-los.” – disse Sir Constant entre um gole e outro de sua caneca de vinho.
“- Isso vale para as crianças também?” – me atrevia a perguntar.
“- Principalmente. Elas devem aprender desde cedo. Eu não fiz nada além do que meu direito de Cavaleiro me respalda. Até fiz pouco. Outro teria cortado a mão daquele fedelho! Você como escudeiro, se vier a se tornar um, deve ter isso bem claro. Você não será um igual à mim, mas estará acima deles.”
Eu realmente fiquei sem saber o que dizer. Era um assuntos desconcertante. Sempre considerei que o papel dos deuses, e o que desejavam de nós, fora manter Arton em equilíbrio. Pelo manos Khalmyr. Não sei ainda o que pensar.