Por mares nunca antes navegados
PARTE 1 - Um longo prelúdio -
João "o escriba" Brasil
PARTE 1 - Um longo prelúdio -
João "o escriba" Brasil
I. Um início
O vento castigava seu rosto em uma carícia agressiva e úmida. O balançar cadenciado proporcionado pelo oceano deixava seus longos cabelos negros mareando de um lado para o outro. Ele não precisava estar lá. Não era sua função. Possuía desígnios bem mais importantes. Deveria zelar pela segurança de uma tripulação de cerca de cinqüenta almas, além de sustentar a difícil tarefa de ser uma inspiração para elas. Deveria mantê-los vivos, manter suas esperanças e sonhos. Ele era o capitão.
O vento castigava seu rosto em uma carícia agressiva e úmida. O balançar cadenciado proporcionado pelo oceano deixava seus longos cabelos negros mareando de um lado para o outro. Ele não precisava estar lá. Não era sua função. Possuía desígnios bem mais importantes. Deveria zelar pela segurança de uma tripulação de cerca de cinqüenta almas, além de sustentar a difícil tarefa de ser uma inspiração para elas. Deveria mantê-los vivos, manter suas esperanças e sonhos. Ele era o capitão.
Mas desde garoto, quando acompanhava seu tio que era a figura mais próxima de um pai que teve, e que também era um capitão experiente e honrado, a gávea era o seu lugar especial. Um lugar só seu dentro de uma morada flutuante com quase duas centenas de moradores. Sua vida, naqueles dias, era sua tarefa. Nas alturas estava o seu lugar. Seu refúgio.
Seu refúgio especial não era sua cabine, mas a gávea que sustentava-se no mastro maior do Gaivota Prateada. Mesmo já não sendo mais um garoto – passara dos trinta a um anos – erguia-se pelo encordamento do velame com maestria invejável e alegria infantil, encerrando suas acrobacias, inevitavelmente, na cesta no topo do mastro.
Escondia-se lá para ser ele mesmo. Por vezes cansava-lhe ser obrigado a ter todas as respostas. Todas as soluções. Ao mesmo tempo tinha consciência de que nunca se acostumaria sem isso. Neste impasse preferia limpar sua mente no sossego de seu refúgio.
Acima de sua cabeça somente o tremular da bandeira negra com a gaivota prateada o separava do céu azul. De lá vislumbrava a vastidão que o grande Deus Oceano presenteou à todos em Arton. Nunca deixava de maravilhar-se com o estupendo trabalho empreendido pela divindade quando da criação deste mundo. De lá também divertia-se com o movimento constante e embaralhado dos seus subordinados pelo convés nos seus afazeres diários.
“– Uma embarcação é como uma planta que o agricultor coloca na terra. Ele zela por ela para garantir sua sobrevivência, seu crescimento, seu florescimento e, por fim, seus frutos. Não descuida nunca. Nem no mais forte dos raios de Azgher nem na mais completa escuridão de Tenebra. Com um navio é igual. Deve ser tratado com todo o zelo para frutificar em nossas mãos. Para cruzarmos os mares com a beleza e a graça do golfinho e destruirmos nosso inimigo com a fúria da tempestade. E isto não cabe a mim, mas a todos nós. Todos somos os agricultores desta embarcação. Mesmo que eu comande suas cabeças-de-bagre somos todos nós que mantemos essa maravilhosa planta flutuando e brilhando”. Este discurso era declarado por incontáveis primaveras sempre que algum novato resolvia que queria ser marinheiro.
Então não era por menos que divertia-se, ao mesmo tempo em que maravilhava-se como a loucura do vai-e-vem do convés. Todos sabiam o que fazer, onde e quando. Trabalhavam como uma daquelas curiosas engenhocas marcadoras de tempo que os halfings construíam em suas oficinas. E todo este trabalho era realizado sob o olhar atento e gritos ensandecidos do mestre Tugar.
Tugar era o mestre do navio. Por ele passavam todas as decisões de funcionamento e manutenção da embarcação. Seguia as ordem do capitão, mas da sua forma. Colocava todos na linha. Se algo deveria ser feito ele era a primeira pessoa a saber. “- Ainda vou morrer de tanto trabalhar, mas antes disto colocarei dentro da cabeça de cada um de vocês um pouco de juízo e organização, por todos os diabos que vou!” – repetia à exaustão enquanto ia de proa à popa averiguando os afazeres de todos com um semblante eternamente insatisfeito .
Para o Capitão Slocun ele era mais do que o mestre. Era sua consciência. Ele era aquela parte do seu cérebro que tantas vezes Tugar dissera que ele nascera sem. Por mais que odiasse ele sempre parava para escutar o mestre – muito embora não desse o braço a torcer na maioria das vezes. Se nas decisões rápidas, como de um combate, Slocun fosse imbatível, em outros casos que necessitavam de um certo simplismo, o mestre é que despontava.
- Pro diabo com isso tudo. Vou descer no próximo porto, não importa qual seja, e tornar-me um sei lá o que, se tiver de subir nesta maldita cesta mais uma vez que seja – bufava o mestre enquanto levava seu considerável peso mastro acima para fazer o relatório matutino ao capitão. – E a culpa é sua se eu tiver de manter-me em terra – esbravejava o mestre para Slocun ao apoiar-se na beirada da gávea jogando seu corpo para dentro.
Mas o movimento parecia não ter sido notado pelo capitão que, com o queixo apoiado sobre os punhos cerrados, mantinha-se sentado sobre um pequeno banco de madeira e com o olhar perdido.
- Joshua,...Joshua! – disse o mestre em tom baixo, mas demonstrando uma crescente irritação – pelas carapaças de todas as tartarugas malditas deste mar, não está me ouvindo Joshua – gritou deixando de lado a calma e dando ao rosto uma coloração avermelhada.
- Sempre quis saber até onde poderíamos ir. Aonde as correntes que rumam o norte poderiam nos levar – comentou Slocun como se não houvesse ninguém junto à ele naquela cesta, quanto mais um velho rabugento. E isto deixava Tugar ainda mais irritado.
- Com certeza, - disse Tugar respirando fundo e retomando a calma – iremos descobrir, mais cedo ou mais tarde. Agora posso reporta-lo o relatório matutino?
- Continue.
- Navegamos a noite toda com meio velame. Usamos somente as velas do maior e com metade das velas da mazena. Com a velocidade do vento desta região e com a corrente à nosso favor calculo que em dez dias passaremos ao largo de Tamu-ha. Mas passaremos à uma boa distância dela. Segundo as informações que recolhemos nos portos de Hongari não corremos perigo. Estaremos com as rações em três quintos. Devemos ancorar em duas semanas e meia, em alguma ilha, para recolhermos provisões. Hoje ordenarei que verifiquem e limpem todos os canhões e arrumem a munição. Sugiro que retiremos todo o velame triangular e as velas da tarquete para inspeção e reparos – neste ponto Tugar faz uma pausa esperando pela aprovação ou qualquer comentários do capitão. Mas ele nada disse.
Os olhos do capitão Joshua Slocun continuavam fixos no horizonte, ao norte. O velho amigo admirava-se com a capacidade que aquele jovem capitão, com olhos de garoto, tinha de encantar-se com tudo à sua volta. Este poderia ser sua maior qualidade se não fosse seu pior defeito.
- Perfeito Tugar. Nunca duvidei de seu julgamento e não pretendo começar hoje – falou num tom muito baixo como se temesse acordar alguém ou, o que Tugar imaginava, estivesse com a mente longe daquele lugar.
- Espero-o lá em baixo, senhor – disse o mestre enquanto empertigava o corpo preparando-se para a descida.
E o Gaivota Prateada continuou a navegar, algumas vezes mais rápido, algumas vezes mais lento, mas sempre rumando o norte. Desceram âncora algumas vezes em ilhas e ilhotas pelo caminho para realizar reparos ou recolher recursos. O trabalho da tripulação permaneceu incansável. E o humor de Tugar ficava cada vez pior.
Tudo normal
E isso permaneceu assim por quase dois meses.