A Compreensão da
Destreza
Umas das primeiras coisas que me chamou a atenção quando comecei a jogar rpg era o porque da necessidade de ligar um ataque, ou o nível de um ataque, à destreza. Com o passar do tempo, e dos jogos, isso vai ficando claro, ou compreensível.
Muitos podem pensar que isso é uma preocupação exclusiva de rpgístas. Ledo engano. Muito tempo atrás já se pensava isso. Pouco conhecido nos dias de hoje, por muito tempo, durante a Idade Média principalmente e indo até o fim da Idade Moderna, manuais para a utilização da espada, e de todo o seu potencial, eram escritos e passados de mestres para alunos. Os mestres espanhóis, germânicos e italianos, principalmente, produziram uma série de impressionantes estudos sobre a utilização de espadas de diferentes tipos em combate e defesa.
Este material riquíssimo possui desde desenhos para posicionamento do corpo e explicações detalhadas da movimentação da espada até mapas para movimentação dos pés do esgrimista durante o combate (mas isso é assunto para uma outra postagem). Num destes manuais, com o título de “Compreensão da Destreza”, datado de 1681, Álvaro Guerra de la Vega discutia e explicava para seu pupilo a necessidade e importância da destreza para um bom manuseio da espada num texto de cerca de quarenta páginas.
Ele começava seu manual dizendo: “Se tudo é
estudado por causa da necessidade, utilidade ou prazer que proporciona, a
destreza em armas integra estas três razões: ela é necessária para o homem
defender-se da tirania (...) assim destreza em armas era uma necessidade;
montes de homens têm praticado e escrito regras sobre essa arte, isso provem
essa utilidade; e um prazer é o discurso e a exibição de mestres nessas armas
especialmente estes que mostram a destreza espanhola com sua espada.”
Mais adiante ele explica da necessidade e dificuldade de aprende-la: “É difícil para pessoas normais fazerem utilização desta destreza já que é necessário serem bem treinados e despenderem um longo tempo de prática para garantir aprendizado (...) Ela deve ser uma ciência novamente.”
Os mestres deveriam estar sempre dentro de duas categorias de ensino – a teórica e a prática. A teórica viria da visão da esgrima (ou qualquer outra luta com espadas) como uma ciência, onde o conhecimento e o reconhecimento da destreza seria crucial para o entendimento de seu manuseio na segunda categoria. A prática, segunda categoria, era a ação advinda do conhecimento científico da destreza e de todas as suas possibilidades. Só assim um mestre seria um verdadeiro Mestre e poderia passar o conhecimento adiante. Ele dizia: “Ela [a junção de conhecimento e prática] é necessária para distinguir entre bravados [originou posteriormente o termo bravata] e Mestres: bravados mostram seu conhecimento como uma mera exibição, e seu reconhecimento vem pelos aplausos das massas; no outro lado, Mestres ensinam esgrima e manobras, sendo os melhores, não apenas parecendo.”
Indo mais longe, discute sobre a possibilidade ou não de enquadrar a destreza como uma ciência. Num outro excerto do próprio Álvaro Guerra de la Vega ele diz que a destreza é sim uma ciência pois possibilitaria o trabalho com ângulos e círculos, movimentos retos e curvos. O conhecimento desses itens possibilitaria uma melhor visualização das fraquezas e potencialidades de um adversário, possíveis ângulos de ataque do adversário e brechas na defesa. Ele fazia uma analogia: “é uma ciência similar à estratégia militar: para conquistar uma fortificação nós devemos não atacar em uma linha direta e frontal em seu ponto mais forte, mas podemos dissimular, despistar para abrir sua defesa e confundir o inimigo”.
Ao final de seu manual ele apresenta as regras gerais para o manuseio da espada que nunca devem ser infringidas. Essas são algumas:
Cada postura que você domina deve ser um bom ‘atalho’ contra seu oponente.
Cada estocada realizada sem um ‘atalho’
é um falso ataque.
Cada postura deve ser um ‘atalho’.
O ângulo certo é aquele bom para evitar ataques.
O ângulo obtuso só é usado para parar a espada do inimigo.
Três planos de referência devem ser considerados.
Primeiro plano: da cabeça para
o ombro.
Segundo plano: do ombro para a
cintura.
Terceiro plano: da cintura para
o pé.
O primeiro plano deve ser
defendido com a guarda.
O segundo defendido com a força
da espada.
O terceiro com a fraqueza,
incluindo a espada do inimigo.
Guarda alta, ponto baixo.
Guarda baixa, ponto alto.
Quando atacando, seja muito cuidadoso, nunca mostre seu corpo para a espada de seu inimigo.
Nunca ataque se não tiver certeza do movimento perfeito.
Nunca fique sobre ambos os pés
ao mesmo tempo. Um deles deve estar ‘pronto’, tocando levemente o solo.
Sua espada deverá estar sempre em movimento.
Sua espada deverá estar sempre em movimento.
Treinar com os diferentes tipos de pessoas é o mais importante.
Mais adiante em seu texto ele
analisa as posturas italiana e espanhola de forma à exemplificar como elas se
enfrentam ou complementam.
Postura italiana
[adaptado do texto original]
É uma postura muito boa (com
espada e punhal) para evitar 'atalhos'; se for feito corretamente, fornece
um bom posicionamento para fintas.
O esgrimista que dominar esta
postura poderá evitar cada finta de seu oponente, porque o único ponto fraco é
o ombro esquerdo (ele é defendido pela adaga) e será muito arriscado para o
inimigo passar nossa espada e punhal. A partir desta postura podemos perfurar
com movimentos para a frente ou para trás (ao longo da linha do diâmetro).
A
postura: A linha do diâmetro é de três
pés de comprimento (da esquerda para o pé direito).
O pé direito está pronto para
avançar ao empurrar (grande passo, a coxa direita paralela ao chão) ou a
entrada pode ser feita sem dobrar o joelho (essa posição é chamada de ‘nervado’),
para que possamos nos mover rapidamente longe dele depois de lançar o ataque.
A espada deve estar com o cabo
ao lado da nossa coxa direita; o ponto em direção à cintura do nosso
inimigo, em linha reta com os nossos calcanhares.
Da cintura aos pés, mostraremos
o perfil e a parte superior do corpo ficará de frente para a frente do oponente.
Quanto menor a postura, melhor
é.
A mão esquerda segura o punhal:
o braço esquerdo em um ângulo reto com o lado e o peito, e o punhal em ângulo
obtuso cobrindo o lado.
Assumindo isso, o inimigo não
encontrará abertura nem entrará, porque ele não poderá nos alcançar com golpes
e sua adaga será facilmente defendida com nossa espada. Se ele fizer
fintas ou movimentos complicados, deixe-o fazer porque ele está fora de
distância e se ele está fazendo isso significa que ele já foi esfaqueado.
A ideia é desfazer a espada de
nosso oponente com nosso punhal e então ele não será capaz de assumir a postura
correta novamente (ele estará fora de equilíbrio).
A especialidade
espanhola
[adaptado do texto roiginal]
Vimos como é difícil lutar
contra a postura italiana; o esgrimista que sabe passar a guarda saberá
lutar de verdade porque é o mais utilizado nos desafios de rua.
Embora todos os esgrimistas
saibam atacar com a postura italiana, poucos sabem como se defender e é isso
que eu vou explicar (é uma tarefa difícil):
O ponto da nossa espada o mais
baixo possível no ângulo agudo; Empunhe e arme em linha reta e de tal
maneira que o cabo esteja na altura do olho direito, cobrindo o lado externo e
oferecendo o interior.
O punhal, com o punho sobre o
punho da espada, num ângulo reto e agindo como um broquel, mas sendo muito
cuidadoso porque não deve tocar sua espada.
Da postura italiana a espada
está a pelo menos três metros e meio de distância do corpo do oponente, então
eu verifico que da postura espanhola com a espada movendo apenas quatro dedos e
a mesma proporção do braço, seremos capazes de desviar seu ‘atalho’; e se
ele não retrair o seu braço, podemos esfaqueá-lo dessa posição.
Vemos que o mestre espanhol tem
uma boa defesa com movimentos de quatro dedos de comprimento, e o italiano
precisa de três pés e meio para atingir o objetivo; é por isso que o
espanhol hábil tem vantagem sobre o italiano hábil.
É isso que nos ensina a postura
universal, além da médio proporcional .
A destreza, a chave para nossa
diversão nos combates de RPG, não foi, por acaso, escolhida. Muito menos é uma
descoberta recente. Muito antes de pensarmos em jogos, ela já estava sendo
estudada, treinada e praticada.