domingo, 18 de março de 2018

Nyambe: African Adventures - um RPG representativo e um debate necessário


Nyambe: African Adventures
- um RPG representativo e um debate necessário -


Sabe quando você está zapenado pelos muitos sites de RPG da internet mundo a fora e se depara com algo que o faz pensar – como nunca falei disso ainda? Pois isso aconteceu comigo nesta madrugada. Eu estava naquele processo que começar a fechar as milhares de abas de meu navegador e resolvi dar uma última olhada em meu e-mail (algo que não faço tão seguido quanto precisava).

Um e-mail de atualizações semanais da ENWorld me chamou a atenção para Nyambe: African Adventures, algo que tinha escutado estar em produção de uma nova versão muito tempo atrás e que não pensara mais nele. Isso me reavivou a memória e me arrancou o sono. Virei a noite pesquisando, lendo e aprendendo. Este será um artigo de dois momentos onde no primeiro debateremos, embora de forma rápida pois quero voltar ao tema em postagens futuras, os motivos da importância da representatividade de Nyambe, e depois apresentaremos esse belíssimo RPG.

O impacto do filme Pantera Negra, da Marvel/Disney, no imaginário representativo atual é inegavelmente grande, mas ele não é uma novidade e sim uma consequência de uma demanda reprimida, cada vez mais presente e exigente de visibilidade. A matéria de Mike “Talien” Treska para a ENworld é exatamente sobre isso, mas ligado ao RPG Nyambe!

Por muito tempo o imaginário apresentado sobre o continente africano na literatura e cultura pop de Ficção Científica & Fantasia em geral (e o RPG se enquadra nisso) foi marcado por um cenário exótico e depreciado, um mundo cujo isolacionismo resultava em estagnação de desenvolvimento, um ambiente que era marcado por uma unidimensionalidade (quase homogeneidade) das múltiplas culturas e suas nuances, um ambiente subserviente ao elemento branco. No artigo Talin acertadamente usa o termo othering para exemplifica essa característica de apresentar/demonstrar outra cultura “através de uma lente tendenciosa de exotismo e isolacionismo”.

Assim começamos a perceber a relevância de um filme como Pantera Negra e de que ele não é simplesmente um ponto fora da curva. Ele está quebrando paradigmas quando mostra que um ambiente africano plural, composto por uma série de nuances que se sobrepõem, se interligam e interagem em algo muito maior. Um verdadeiro amálgama resultando não em uma mistura indistinguível, mas apresentando todos os elementos únicos e representativos que acaba por forma um amálgama que é em si a África e sua riquíssima cultura. O filme mostra claramente uma nação que se isolou do “resto do mundo”, mas desenvolveu-se muito mais do que esse “resto” e que seu isolamento foi mais uma proteção para não ser “contaminado”. O filme apresenta claramente as diferenças de idioma, simbologia, visões de mundo e de si mesmos, padrões estéticos e noções do diferente quando apresenta uma mescla multicultural transformando a nação de Wakanda em um verdadeiro exemplo de respeito à natural pluralidade existente. O mercado abrangido pelo cinema, assim como os quadrinhos e a literatura, tem dado espaço e tido corajem para enfrentar esse dilema apresentando respostas claras, embora pontuais ainda, à demanda existente e esperamos que agora seja a vez do RPG fazê-lo.

Não podemos negar que a origem dos RPGs é centrada em uma cultura ocidental e eurocêntrica. Dizer isso significa que sua construção/criação também trás todo o imaginário (positivo e negativo) que acompanha esse tipo de pessoa/criador. Muito desse imaginário é inconsciente e vem atrelado (quase grudado) à noção de mundo e realidade dessas pessoas, um noção preconceituosa, embora inconsciente (em alguns casos). Quer dizer agora que os RPGs eram ou são racistas? Não, mas isso não os desvincula de uma construção e representação de mundo através de sua percepção e não foge de um retrato da sociedade, mesmo que inconsciente. Como diz G.A. Barber em seus artigos Missing the Point – part 1 e part 2, desde de janeiro de 2014, sobre os primeiros RPGs:

“(...) o popular e bem conhecido RPG de mesa, foi criado por homens brancos no final da década de 70, e originalmente carregou muito dos preconceitos de homens americanos que cresceram na era do movimento do direitos civis americanos. (...) O resultado foi um layout de configuração segregacionista, onde pouca atenção foi dada para as interações entre diferentes etnias humanas e raças de jogadores não-humanos ‘normais’, a favor de compartimentá-las em blocos separados, mas desiguais. Como o jogo foi feito por homens brancos para um público masculino branco, foi dada pouca atenção aos estereótipos ou ao sexismo que foram incorporados nas primeiras edições.”

Dois eixos problemáticos foram os cernes da produção de RPG em seu início quando pensamos em negros (o termo americano usado atualmente é POC, personal of color ou pessoa de cor) ou África: o racismo por omissão e a violenta construção de esteriótipos negativos ou caricaturas do elemento africano na narrativa. Podemos identificar isso em cenários onde esses elementos da cultura africana e afins estariam naturalmente presentes, mas são corrompidos. O efeito mais comum é um cenário/ambiente claramente com ligação com o ambiente africano que serve apenas de pano de fundo para o aventureiro “branco e civilizado” realizar suas proezas. E quando esse elemento negro é introduzido no cenário ele aparece como um elemento atrasado, não-civilizado, desconhecedor de tecnologias, alheio à “moral ocidentalmente” aceita, como antagonista (canibal, tribo guerreira do mal) ou mesmo como monstros com traços característicos da cultura africana. Forgotten Realms e Rifts Africa são exemplos claros disso. O primeiro cria uma aura esteriotipada da etnia e de sua região no equivalente do cenário enquanto o segundo, em um livro direcionado para o continente africano, apresentando imagens de negros ao mínimo e na maioria das que exibe, mostrando-os em uma posição subserviente ao branco ou como adversários.

Não podemos dizer que isso não sofreu alterações com o tempo, mas essas alterações sempre foram muito aquém da demanda. Essas pequenas alterações tinham mais um fator de tokenismo (a prática de apenas realizar um esforço superficial ou simbólico para realizar algo em particular, especialmente recrutando [apresentando] um pequeno número de pessoas de grupos sub-representados para dar aparência de igualdade sexual ou racial) do que de real representatividade. Mais recentemente tivemos em Pathfinder o continente de Garund como uma clara alusão à África sob forma de um experimento que foi deixado de lado (pelo menos até agora) cedo demais, com investimentos em ambientes orientais, de pirataria e até mesmo inspirados no velho oeste. O recente D&D 5E fez algumas tentativas para minimizar esse cânion entre ação prática e demanda colocando mais imagens de pessoas negras em seus livros. Os cenários brasileiros sofreram dos mesmos problemas e das mesmas parcas soluções – eram invariavelmente resultado inconscientes de uma inserção em uma sociedade preconceituosa sem dar o devido espaço e representatividade à quaisquer minorias raciais, mesmo tendo enorme parcela dessa sociedade negra ou parda, inclusive seus consumidores. A omissão era (e são) constante e o tokenismo impera nas produções brasileiras fazendo de conta que é uma solução, embora seja apenas um paliativo. Ainda estamos à espera de uma solução adequada.
  


Todo este debate inicial foi para demonstrar a importância e relevância de Nyambe: African Adventures, de Christopher W. Dolunt, no universo de produções de RPG. Lançado pela Atlas Games em 2002, Nyambe é uma produção dentro da licença OGL de D20, ou seja, compatível com a mecânica de D&D 3ed e afins. A obra é uma reconstrução respeitosa, interessada e engajada do cenário africano acrescido de temáticas de fantasia, levando em conta toda a história da cultura africana e do imaginário de seus povos, desvinculada de uma visão carregada de preconceitos e omissões, próprios das produções ocidentais brancas. Temos as lendas e os mitos africanos em uma roupagem de fantasia onde o elemento central é o negro e tudo o que importa ao seu reconhecimento como ente. O autor falou sobre sua motivação na página da Atlas Games:

“Minha motivação para criar Nyambe foi simples. A África é uma parte importante da Terra que tem pouca ou nenhuma representação na literatura de fantasia, e muito menos em RPGs. Quando aparece, geralmente segue o modelo de ficção pulp: selvas fumegantes, canibais sanguinários e deuses sombrios há muito esquecidos pelas raças civilizadas. Claro, a história da África não era nada assim, então meu objetivo para Nyambe era criar uma versão de fantasia da África baseada na história real e na mitologia da África, em vez das imagens anteriores de fantasia. Então eu examinei trechos de história ou mitos, e os incrementando, adicionando elementos de fantasia ou mudando detalhes, para fazê-los entrar em um mundo OGL.”

No mesmo artigo o autor dá um exemplo de como trabalhou na construção do cenário sustentado em suas pesquisas em lendas reais. Primeiro ele mostra um fragmento de uma lenda existente e depois como trabalhou com ele na construção do cenário. Veja abaixo:

"O verdadeiro Leão Voraz, também conhecido como Sundiata Keita, nasceu de sangue real na cidade-estado de Mandinka no século 13. Naquela época, Sumanguru Kante, um guerreiro Susu, se declarou imperador de Gana e matou toda a família real de Mandinka, com exceção de Sundiata e sua mãe. Sundiata estava tão fisicamente fraco que ele não conseguiu andar, então Sumanguru não considerou Sundiata como uma ameaça. Tanto ele, como sua mãe, foram banidos para o reino vizinho de Mema. Lá, de acordo com lenda, um ferreiro moldou pernas em ferro para Sundiata, e ele não só aprendeu a caminhar, mas treinou como guerreiro, cavaleiro e até aprendeu as artes da feitiçaria. Ele voltou para sua terra natal, liderou uma rebelião contra Sumanguru, que de acordo com a lenda também era um feiticeiro, e lutou contra ele em uma grande batalha mágica nas planícies de Kirina em 1325. Sundiata rugiu como um leão, e espalhou as tropas de Sumanguru, depois disparou uma flecha mágica branca em Sumanguru, drenando-o de toda sua mágica. Sem a sua magia, Sumanguru foi facilmente derrotado.

Eu peguei isso e transformou Sundiata em Kwo. Substituí Sumanguru com o Lich Zulo e o império de Gana se tornou o império Zombi. Eu decidi que a história seria mais interessante se a mãe do Leão também tivesse sido morta, então na minha versão da história, apenas Kwo sobrevive. O reino de Mema é substituído por um fantástico agogwe, e ao invés de obter pernas de ferro, ele aprende a montar uma criatura maravilhosa chamada engargiya. Ele ainda volta a lutar contra o rei malvado, mas em vez de drenar Zulo de sua magia com uma flecha branca, eu decidi adicionar uma influência afro-islâmica ao aludir a uma descrição de batalha do Alcorão.”

Todo o livro é construído assim: a história de Bashar e o dragão baseia-se na história do rei etíope Angabo, o conto da rainha de Bashar'ka e do califa de Boroko baseia-se no conto do rei Salomão e da rainha de Sheba, o monstruoso besouro de incubus baseia-se na história de nascimento do rei zulu Shaka, as amazonas de Nibomay são baseadas nos ahosi do Dahomey e nas mulheres guerreiras da antiga Líbia, e assim por diante.

Era exatamente isso que precisávamos para um RPG verdadeiramente representativo.

Os treze capítulos têm tudo o que precisamos para criarmos campanhas tanto restritas ao terreno africano, como integradas às culturas próximas (Egito, Oriente Médio, extremo oriente e Europa), assim como integral o cenário à qualquer outro cenário de fantasia que existe.

No livro temos doze novas culturas humanas refletindo os diferentes ambientes do continente, variando de deserto à floresta e savana, com informações que vão desde nomes à classes favorecidas (idêntico ao que teríamos em qualquer outro RPG padrão). Temos também seis variações das raças não-humanas comumente vistas no RPG clássico – Agogwe (halfings), Kitunusi (gnomos), Ngoloko (meio-orcs), Utuchekulu (anões), Wakiambi (elfos) e Unthlatu (uma raça reptiliana feiticeira descendente de dragões). Além disso, temos várias raças selvagens como meio-leões. Temos alterações nas classes. O livro debate a relação das classes padrão de D&D no ambiente de Nyambe e as considera todas como classes estrangeiras com uma série de limitações quando usadas no cenário.
    
    

Cinco novas classes nativas do cenário são apresentadas. São variações do guerreiro, feiticeiro, ladino, clérigo e mago. Por exemplo, os druidas agora são xamãs que adoram os espíritos dos orixás (que concedem magias) ou de Nyambe (que não concede magias), os feiticeiros possuem variações com características próprias conforme o tipo de sangue de dragão que corre em suas veias e muito mais. As classes de prestígio no livro são onze Dambe (ranger variante, caçador de monstros), Engolo (mestre do combate desarmado), Inyanga Yensimbi, Leopard cultist, Magic Eater (assassino de magos), Mask Maker (criador de máscaras encantadas), Mganga (especializado em luta com mágica demoníaca), Ngoma (bardo variante, com perícia em dança e percussão mágicas), Nibomay Amazon (mulher guerreira), Soroka (divina) e Zombi Cultis ( necromante que lida com orixás diabólicos da serpente e dos mortos-vivos).

    

Todo o rol de perícias e feitos é adaptado para o cenário, como por exemplo Alquimia é substituída por Medicina Natural. Temos 59 novos feitos centrados no cenário, inclusive com regras raciais limitando os efeitos conforme a raça, e muitas variações e adaptações dos efeitos já existentes. Combates são adaptados para o cenário com seção específica para guerra ritual, ataques com manada, partidas de nuba (uma espécie de luta livre) e muito mais.

O mundo divino e as magias é um capítulo à parte. A maioria das magias é divina, dependendo de orixás, embora existam necromantes que vendem suas almas para orixás diabólicos ganharem seu poder direto de Nyambe. Os orixás são descritos no capítulo 8 com todas as informações pertinentes – alinhamento, domínios, armas favorecidas, seguidores típicos e momentos para oração. As magias, no capítulo seguinte, são quase que uma continuidade natural do capítulo sobre as deidades. Há poucas diferenças em relação á mecânica – há regras alternativas com ralação á invocação de alguns feitiços ligados à dragões e elementais, com relação há ressurreição e reencarnação, ao uso de armaduras e sacos de mojuba. Com relação aos domínios, temos 16 novos - pássaros, confusão, dança, escuridão, exílio, fertilidade, peixe, carne, ganância, caça, ferro, raio, amor, peste, serpentes e sabedoria – e 40 novas magias, incluindo 9 níveis de invocação de dragões e elementais.

O capítulo dedicado aos equipamentos é riquíssimo. Há tabelas de inúmeros itens, equipamentos e armas típicos do cenário africano, com muitas coisas novas. Um detalhe muito interessante está à cargo das armaduras. O cenário impede o uso de armaduras pesadas e de metal devido ao calor excessivo, substituídas por armaduras de placas de madeiras e de contas.  Alimentos e bebidas típicas também são descritas. Há também uma lista de itens especiais e venenos que vai enriquecer qualquer campanha. O capítulo de itens e equipamentos mágicos trás muita novidade – armadura da caverna, adaga do culto da morte, lança perfura-coração, pó da peste, pó de zumbi (pó zombi que transformam guerreiros caídos em verdadeiros zumbis que mantêm uma lembrança horrível de suas vidas anteriores), anel da fertilidade, as estátuas vodou nkisi (que lançam maldições poderosas para aqueles que se atrevem a usá-los), e muitas máscaras com efeitos incríveis podendo conceber ao seu portador o poder dos orixás. Os gris-gris (um equivalente aos tomos mágicos) são explicados separadamente.



Diferentes de outros títulos, a explicação do cenário vem após todo este detalhamento. Os capítulos 10 e 11 detalham o ambiente, as nações e a estrutura sócia das diferentes culturas e raças nos mínimos detalhes para que campanhas possam ser construídas com muita exatidão. O auxílio às aventuras do mestre também estão nesses capítulos, com regras e mecânicas avançadas para doenças (12 novas doenças típicas das regiões africanas) com todas as estatísticas necessárias, informações sobre intrigas palacianas entre as tribos, além de alguns geradores aleatórios para uso do mestre.

Para fechar com chave de ouro temos um rico capítulo dedicado às criaturas e monstros de Nyambe. São 60 páginas com muita informação onde temos desde uma discussão do uso das criaturas dos outros livros de D&D em aventuras em Nyambe e 50 novos monstros adequados para as aventuras nesse incrível cenário africano de CR 1/6 à CR 17.

Em resumo é um livro incrível, rico, representativo e ímpar. Aqueles que já tiveram a possibilidade de experimentá-lo afirmam que ele funciona de forma muito fluida mesmo com tantas novidades, não dificultando em nada a diversão e a absorção dessas novidades. É um livro que você tem que ter em sua estante e que você deve jogar nem que seja apenas uma vez, pois a experiência será marcante. É um livro que possibilita a identificação de jogadores negros com uma enorme gama de variações e nuances do cenário (como bem possibilita o filme do Pantera Negra se pensarmos em representatividade no cinema), desobrigando-os de se identificarem com um elemento planificado de toda uma cultura. Ele possibilita que toda uma comunidade, até agora relegada ao mínimo, perceba-se como fazendo parte de algo maior.

Já são três livros lançados: Nyambe: African Adventures, Ancestral Vault e Dire Spirits. Você pode encontrá-los no site da Paizo e no da Atlas Games, bem como na maioria das lojas digitais de RPG. Além disso, no site da Atlas Games há uma série de downloads grátis de pequenos suplementos e mapas.

Torcemos para Nyambe seja descoberto no Brasil e trazido para o nosso mercado por alguma editora bem intencionada!

Bons jogos!!