terça-feira, 18 de novembro de 2008

Diário de um Escudeiro - 15

Vigésimo terceiro dia de Cyd de 1392.

Este foi mais um daqueles dias que ninguém quer passar. Mas no final acabou sendo surpreendente. Ainda aqui, deitado ao lado da fogueira, meus músculos ainda tremem de exitação.

Após acordar bem cedo arrumei todo o de jejum de meu senhor, como de costume. O dono da hospedaria não estava mais simpático do que na noite anterior, mas pelo menos me deu bom dia.

Estava tentando levar à risca todas as orientações dadas por Sir Constant com relação à como me portar entre o yudeanos. Não parecia nada de mais. Só tinha de passar desapercebido.

Quando Sir Constant desceu de seus aposentos já estávamos prontos para retomar a viajem. Só precisávamos comer, algo que fizemos relativamente rápido. Ele permaneceu em silêncio como na maioria das manhãs. Já havia percebido que seu humor era dos piores quando acordava sem uma mulher ao lado. Mas, de qualquer forma, era assim que ele era.

Ele terminou sua refeição e eu já estava terminando de apertar os arreios e verificar nossas provisões. Seria questão de minutos até estarmos longe daquela vila seguindo nosso rumo.

A vila, naquele momento que estava claro, era mais facilmente percebida por mim. Não era muito grande, quem sabe uma centena de casa todas iguais. Possuía uma grande construção bem no centro com cara de um quartel militar, num lado da rua. No outro um templo de pedra de forma simples, mas forte.

Por cada pessoa que passávamos, recebíamos seus olhares frios e de pouca expressão, mas parecendo uma carranca. Com toda a certeza não eram conhecidos por sua hospitalidade.

Continuamos em marcha lenta por esta rua principal quando, passando ao lado do grande templo senti meu peito arder. Era o medalhão. Fazia muito tempo que ele não se manifestava. Puxei-o para fora da camisa e segurando-o na mão senti seu calor.

“- Senhor... poderíamos para por um momento. Eu gostaria de conhecer o templo.”

“- Um templo de Keenn” – disse ele com escárnio – “seja rápido e aproveite para ver a diferença que temos em relação à esses animais” – a segunda parte ele disse num tom mais baixo, só para que eu ouvisse.

Ele ficou sobre o cavalo dizendo para que me apressasse. Eu desci rapidamente e me dirigi ao templo. Quanto mais me aproximava mais o medalhão aquecia sobre meu peito, tanto que mesmo estando fora da camisa, eu sentia seu calor.

Havia um jogo de degraus curto que levava até a grande e pesada porta de madeira que estava aberta. Não havia quase ninguém por ali. Quase.

“- Que achas que está fazendo seguidorzinho de Khalmyr?”

A voz veio de repente não sabia de onde. Procurei de um lado e de outro e percebi três rapazes mais ou menos com a minha idade que estavam sentados entre uma das colunas e a parede da fronte do templo.

“- Desejo conhecer o Templo de Keenn.”

As gargalhadas foram gerais entre os três – “ele deve querer conhecer o que é um Deus de verdade!” – disse um deles.

“- Mas para isso deve reverenciar Keenn à porta, assim como todos os deuses inferiores devem fazer” – proclamou um deles.

Confesso que fiquei sem ação e acabei por falar antes de pensar, coisa que terei de aprender a controlar no futuro.

“- Melhor do que ser seguidor de um deus de terceira que esconde suas fraquezas atrás do fio da espada” – realmente não sei como formei aquela frase. As palavras foram tão surpreendentes para eles quanto para mim.
Eles se entreolharam e partiram para cima de mim.

Um sacerdote de Keenn que estava saindo do templo – identifiquei-o assim pelo manto sobre a armadura trazendo o símbolo do deus - parou os três rapazes questionando-os sobre o que estava acontecendo.

Eles falaram rapidamente sobre o que eu disse. O sacerdote me olhou com o canto do olho com uma raiva profunda. Depois virou para os rapazes e apontou para um – “Você! Pegue sua adaga e limpe o nome de nosso Senhor. Só você, pois não há glória numa contenda facilitada pela inferioridade do oponente. Mate-o, mas sozinho. E rápido”.

Fiquei atônito. Olhei para Sir Constant que impassível visualizava a situação sem dizer uma palavra. Olhei novamente para o sacerdote sem saber bem o que fazer.

“- Tens uma lâmina na cintura. Pegue-a ou corra como uma mulherzinha”.

Peguei a lâmina que havia comprado em Suth Eleghar. Nunca havia usado uma lâmina de qualquer tipo numa luta. No máximo usávamos pedaços de madeira para brincar. Mas lembro-me que meu avô sempre insistia em me ensinar pequenos truques que, segundo ele, seriam úteis um dia. Um deles era sempre olhar os olhos do oponente, pois eles diriam muito mais do que seus movimentos. Outra coisa era tratar a mão do oponente que segurava uma adaga como se fosse uma cobra, rodeando-a, mas nunca a tocando, até o momento decisivo.
E assim fiz.

Mas claro que na teoria é sempre muito mais fácil. Antes de pensar num primeiro movimento já havia recebido um murro que me jogou ao chão com a minha lâmina caindo longe de mim. Em seguida foi um chute no estômago, ainda antes de me levantar.

Os rapazes e o sacerdote pareciam se divertir.

“- Vamos seguidorzinho! Morra como um homem! Levante!” – disse meu oponente.

“- Ora... não peça demais à ele. Ele é apenas um seguidor de Khalmyr, um rato fraco como seu deus” – os outros continuavam a caçoar enquanto eu tentava me equilibrar sobre as pernas.

Quando me levantei ele avançou com a adaga quase me acertando na altura do estômago, não fosse minha esquiva. As aulas que tive com meu avô serviram para algo. Ele riscou o ar mais duas vezes com a sua adaga de um lado para o outro. Em sua terceira investida não tive tanta sorte e fui atingido em meu ombro, mas de raspão.
As risadas aumentaram. Até mesmo o sacerdote de Keenn gargalhava ante minha desgraça. A dor me incomodava e tirava minha concentração. Acabei levando um murro que finalmente me levou ao chão mais uma vez.

“- Seu rato fraco. Não merece a vida que ocupas. Somente um deus como Khalmyr poderia suportar um ser como tu andando sobre Arton” – ele se ajoelhou ao meu lado levantando a adaga preparada para me estocar – “vou mandá-lo para o seu lado, na terra dos derrotados”.

Realmente eu não suportava mais. Como poderiam clamar Khalmyr como um ninguém? Como poderiam escarrar em cima de tudo o que acredito e naquilo que meu avô ensinou?

Não de onde tirei forças, mas sei muito bem onde aprendi o que fiz – meu avô, um seguidor de Khalmyr, o deus da justiça.

Quando ele levantou o punho com a adaga em meio ao seu discurso ensandecido e um rapidamente acertei-o na garganta fortemente com a ponta dos dedos. Ele curvou-se, me dando tempo para rolar para o lado e levantar. Consegui tomar um pouco de ar.

Quando ele levantou, fixou seu olhar de fúria em mim e correu com a adaga em punho. Fiz a única coisa que poderia numa situação como aquela – tentei agarrar sua mão armada e girei seu braço lançando-o no ar num rodopio desconcertante.

Ele caiu totalmente desorientado. Joguei-me sobre ele.

Desferi um murro em seu rosto.

“- Khalmyr não é um deus de segunda!” – eu disse.

Outro murro.

“- Khalmyr está acima e ao lado dos outros deuses!” – continuei dizendo.

Mais um murro.

“- Khalmyr clama pela justiça!” - disse pegando a adaga que estava ao seu lado, levantando-a enquanto vislumbrava seu rosto ensangüentado numa careta mórbida.

“- E eu sigo Khalmyr!” – desferi a adaga na terra ao lado de seu rosto.

Não houve mais risos. Não houve mais chacotas. Só o silêncio.

Aos poucos fui levantando e vi que o sacerdote tinha o senho franzido enquanto os outros dois rapazes permaneciam atônitos. O sacerdote virou-se de costas e entrou novamente no templo. Os rapazes levantaram meu oponente e saíram carregando-o.

Ao virar-me olhei Sir Constant que permanecia impassível sobre o cavalo. Ele apenas puxou os arreios e começou a andar.

Subi no meu cavalo e segui-o tentando improvisar um curativo no meu ombro.

Ainda não sei de onde tirei forças. Quero acreditar que Khalmyr me iluminou, mas acho que nunca terei certeza. Certeza apenas de que meu avô deve estar orgulhoso.