quarta-feira, 7 de março de 2018

Dicas do mestre - Lá e de novo outra vez: ou como enlouquecer seus jogadores no tempo



Lá e de novo outra vez
- ou como enlouquecer seus jogadores no tempo -

Vamos falar de modos novos de enlouquecer nossos jogadores. Isso parece mau, mas no fundo é o que todo rpgista mais ama, seja de qual lado estaja do escudo. Uma das melhores formas de fazer isso é lidar com a noção do tempo. Doctor Who, Projeto Almanaque, Efeito Borboleta e Os 12 Macacos nos ensinaram o quanto é perigoso mexer com ele. Mas estou mais interessado no efeito visto no filme No Limite do Amanhã, mais como uma versão futurista de Feitiço do Tempo.

O filme No Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow), de 2014, baseado no mangá All You Need is Kill, de Hiroshi Sakurazaka, protagonizado por Tom Cruise e Emily Blunt, conta sobre os dias finais uma invasão alienígena (chamados de mimetizadores) feroz e praticamente impossível de ser repelida. Foram cinco anos de luta e resistência que chegam à um ponto crucial. O personagem de Cruise, William Cage, um simples assessor de imprensa militar, é obrigado à ir para a frente de batalha para cobrir a invasão da França após se recusar à ingressar espontaneamente. Ele passa um dia “infernal” em uma base para um treinamento rápido já que não possui conhecimento de combate e na manhã seguinte está desembarcando com seu pelotão em praias francesas. Infelizmente os alienígenas como que antecipando o ataque chacinam as tropas humanas. Em meio ao combate Cage morre ao explodir um alienígena, sendo banhado em seu sangue no momento da explosão. Mas não é o fim. Cage acorda na manhã do dia anterior, quando está chegando á base, exatamente vinte e quatro horas do momento de sua morte. Sem saber o que está acontecendo ele é levado a reviver aquele dia.


O filme passa com Cage tentando aprender o que está acontecendo com ele e como isso influencia os acontecimentos à sua volta. À cada novo retorno ele acumulou um pouco mais de experiência e conhecimento. O transcorrer do filme não nos interessa aqui. O que nos importa é que ele morre e volta sempre aprendendo um pouco mais sobre aquele dia e sobre aquilo que deveria (ou poderia) fazer para chegar a um resultado que ele buscava – a derrota dos alienígenas.

Se olharem bem esse conceito perfeito para um bom jogo de RPG. Mas como lidar com isso?

Imaginemos um grupo de aventureiros no ápice da sua missão. A luta contra o vilão máximo está à pleno vapor. A vitória é uma vaga possibilidade, pois o grupo percebe que o inimigo é muito pior é mais numeroso do que imaginavam. A derrota naquele momento é a sentença de morte para o grupo e, quem sabe, para todo o reino. Mas eles não são páreos e sucumbem (ou apenas um dos membros do grupo sucumbe).

Os jogadores imaginam que a sessão ou a aventura terminou. Use isso como achar melhor. Em seu recomeço, no mesmo dia ou na próxima sessão, sem aviso, os mesmos personagens voltam para a manhã daquele dia (ou algum outro ponto muito próximo à critério do Mestre). É uma nova chance do grupo conseguir atingir a vitória.

Notem que isso nos trás possibilidades de diversão quase infinitas e dificuldades múltiplas como mestres.

Conforme nosso cuidado e capricho na construção da aventura e do cenário eles tendem a se tornarem épicos para o grupo. O grupo será estimulado a sair de sua posição de confortavelmente vivenciar a aventura, muitas vezes linear, e procurar alternativas malucas para desvendar a sua realidade. Isso, se bem aplicado, sempre trás ótimos resultados. Além disso, o grupo será levado a investigar mais com a possibilidade de se arriscar mais. Por falar em risco, vocês não imaginam as loucuras que um grupo de jogadores faz quando perceberem a mecânica da morte e retorno.


Dificuldades
Mas as dificuldades são grandes e podem levar ao fracasso facilmente. O grande problema pode ser resumido ao eixo preparação e foco. O Mestre precisa ter claro o esqueleto da aventura. Essa é uma das raras situações onde o Mestre deve ter alinhavado (quase determinado) como se passará a aventura até o seu final e como esse final acontecerá. Ora, estamos trabalhando com a noção de tempo, então podemos o dobrar como quisermos e também já saberemos como tudo acaba. Mas isso tem de ser usado com cuidado no sentido de que nosso ponto de chegada como mestres, mais do que em outras aventuras, é a diversão do grupo com a experiência. Essa é uma daquelas situações onde com toda a certeza a diversão está na jornada – na descoberta de como juntar as peças e encontrar uma saída para seu problema - e não no resultado final.

A preparação dessa aventura, em termos de enredo, começa muito antes do momento de retorno. Para que todo esse nosso esforço tenha sucesso é preciso que nosso grupo de jogadores abrace a ideia. E como isso é conseguido? Com um motivo lógico para todos esses acontecimentos. O grupo só vai ter uma verdadeira e ótima experiência se pontas não estiverem soltas (e vou voltar à isso mais tarde). Por mais que eles possam seguir a aventura mesmo que de forma mecânica, se eles sentirem uma história bem amarrada, a experiência será ainda maior e eles compartilharão do esforço de que ela dê certo. Faça com que esse retorno seja resultado de algo que aconteceu algum tempo antes (darei exemplos mais tarde) para que eles percebam que há ligação entre os plots tornando a aventura ainda maior. Com isso você poderá inserir coisas entre esses dois pontos e que poderão ser uteis. Lembram que eu disse que a jornada é a chave dessa experiência?

Tendo isso em mente – a jornada – e já tendo um motivo “plausível” para que tudo aconteça, vamos criar algo como um roteiro. Nosso ponto de partida neste roteiro é o momento do retorno. Daí em diante alinhavamos como chegaremos deste ponto até nosso ponto de conclusão – eliminar o boss, por exemplo. Isso pode parecer simples, mas aí é que está a grande sacada. Imagine exceções que precisem ser cumpridas pelos aventureiros: objetos impensados que precisem para a vitória, rituais que devam ser feitos antes da batalha, pessoas que precisem levar junto, alavancas que devam ser puxadas, de tudo um pouco. Todas essas ‘exceções’ é que serão o quebra-cabeça a ser montado pelo grupo, um quebra-cabeça que deve ser montado no escuro. Esse rol de possibilidades atendidas faz com que crie-se a condição ideal para que os aventureiros cheguem ao resultado esperado. Embora eu não concorde com aventuras direcionadas, em alguns casos, como este em especial, isso é uma ferramenta muito interessante.




Exemplo
Existem muitas formas de fazermos esse ‘roteiro’. Minha dica é fazer isso por blocos. Cada bloco seria como um conjunto de situações que o grupo deve solucionar para entender sua situação e descobrir como chegar ao seu resultado. Mas acho que isso será melhor entendido se exemplificado.

Vamos partir da situação de uma campanha. O grupo de aventureiros precisa destruir um lich poderosíssimo que está isolado em uma fortaleza no centro de uma grande cidade tentando abrir um portal para outro plano, de onde arregimentará um exército de seres malignos coma intenção de usá-los para dominar o reino e posteriormente todo o continente. O grupo foi convocado por um mago que teve uma visão aterradora do futuro com a destruição do reino se o lich conseguir abrir esse portal. O grupo parte para uma série de missões menores para investigação, arrecadar artefatos e para descobrir onde e quando o lich fará a abertura do portal. Eles descobrem o local e com informações erradas pensa ter condições de destruir o inimigo. Ao chegar o momento da derradeira batalha eles falham ou por terem morrido em combate ou por não conseguirem impedir o processo de abertura do portal mesmo com a morte do lich, resultando também em suas mortes. A frustração tomará conta da mesa.

O grupo então acorda na manhã daquele dia cuja luta acontecerá apenas à noite. Desorientados com o que está acontecendo eles começarão a investigar. A saída mais lógica será procurar um templo de algum deus ou um mago, que lhes informará que há uma aura estranha ao seu redor e que eles devem procurar o mago que os contratou. Infelizmente esse mago está à alguns dias de viagem deles. Chegando lá, ao falarem com o mago ele os informará que numa das missões que eles realizaram, provavelmente receberam a raríssima benção (ou maldição) do deus fulano, lhes permitindo que sempre retornem à manhã do mesmo dia até que consigam matar o lich. Sabendo disso eles devem começar a investigar o que é preciso para matar o lich, como cancelar o encantamento, qual a verdadeira quantidade de tropas inimigas e tudo mais que o Mestre quiser acrescentar.

Parece fácil? Então, a cereja do bolo é que sempre que a noite chega, eles lutando ou não com o lich, eles sempre morrem – ou em combate ou por um colapso no momento do encantamento, levando uma vasta região pelos ares. Com isso após determinado horário, eles voltam a acordar sempre naquela manhã. Quer complicar ainda mais? Crie alguma regra para a benção/maldição funcionar, do tipo que eles não possam usar qualquer tipo de cura mágica para qualquer tipo de ferimento ou quando morrer será definitivo (naquela noite, provavelmente).

Agora vamos analisar nosso amálgama de informações básicas:

- O grupo sempre acorda na manhã do mesmo dia - após morrerem ou após um dos membros morrer ou após o encantamento do portal colapsar;

- Eles têm de doze a quatorze horas para fazer o que precisam;

- A única solução que leva a quebrar a benção é derrotar o lich e também desfazer o encantamento;

- Sempre que eles acordam na manhã do mesmo dia eles guardam as experiências e informações adquiridas.

Com isso entendido o próximo passo é criar vários eixos para que o grupo se debruce, obrigando-os a vivenciar o dia por várias e várias vezes nas tentativas de descobrir e solucionar os problemas. Quer dicas?

O primeiro passo lógico do grupo será investigar o que está acontecendo (ou quem sabe eles ainda tentem enfrentar o lich mais algumas vezes com táticas diferentes antes de desistirem). O exemplo que dei de serem obrigados a procurar o mago que os contratou, mas este estar à alguns dias de viagem, mostra o tipo de problema que temos que colocar nas mãos do grupo para que solucionem. Eles não têm como viajar até onde o mago está, pois inevitavelmente morrerão ao cair da noite. Eles terão de investigar alternativas que o Mestre já tem que ter pensado – teleprote, viagem astral, mensagem telepática. Quem sabe o mago dá uma dica para uma próxima investigação como, por exemplo, da arma ideal para essa situação e como forjá-la ou encontrá-la.

Se eles precisam de uma arma encantada que está em um determinado local obrigue-os a investigar por mais de um dia, quem sabe numa primeira tentativa com um ataque suicida. Assim eles podem descobrir falhas da segurança e garantir o sucesso na segunda tentativa. Se eles precisam da ajuda de alguém faça-os terem de descobrir como incentivar essa ajuda (ou chantagem) em mais de uma tentativa. Se eles precisam descobrir mais sobre o covil do lich faça-os perder dias com isso através de investigação, contratando pessoas para ajudar, invadindo o lugar etc. Se precisam achar a fraqueza do lich, que eles tenham de usar a camiseta na pesquisa, quem sabe descobrindo algo e procurando outras pessoas que possam os ensinar. O que quero deixar claro é que cada um desses vários eixos deverá levar um bom tempo para ser realizado.

Outra coisa muito interessante e promissora, tal qual acontece no filme e no mangá, é que os antagonistas estejam cientes dessa sua benção/maldição e tentem tanto dificultar o trabalho do grupo quanto acabar com o efeito que os faz retornarem após a morte.


Mais dificuldades
Com tudo isso claro até aqui chegou o momento do alerta. Para que todo esse esforço dê resultado é imperativo que dois cuidados devam ser tomados. Primeiro, essa mecânica de repetições pode facilmente tornar-se enfadonha e cansativa. Para que isso não aconteça é muito importante manter o ritmo no dia a dia dos jogadores. Se as coisas começarem a empacar, rapidamente o grupo perderá o interesse. Não crie dificuldades extremas. A própria mecânica de retorno já é uma dificuldade considerável para o grupo. Auxilie (ou incentive) que a ação sempre aconteça ou que eles não se demorem em becos sem saída. Com o andamento constante da ação, os jogadores terão a impressão de que tudo está andando.

Segundo, tenha capricho e preocupação na preparação desse conjunto de sessões. Não basta achar que isso funcionará por obra dos deuses ou por interesse e boa vontade dos jogadores. Todo o cuidado aqui será importante. Como eu disse anteriormente, todos os eixos devem ser preparados com antecedência e isso significa ter o mapeamento completo dos eixos, lista de ocorrências e encontros que podem se dar em cada eixo, quais personagens estão em cada eixo - inclusive com as falas que deverão ser repetidas. Prepare a maior parte da ação para ocorrer em uma mesma cidade ou nas suas proximidades (pois temos aquele limite de tempo de algumas horas).  Ainda, para temperar ainda mais o jogo, coloque dicas de outras ações que o grupo deverá realizar em cada eixo, para que o grupo de jogadores consiga ir montando as peças de coisas que eles ainda não pensaram.


Como sempre
Eu faço agora as mesmas recomendações que faço em todos os outros artigos da Dicas do Mestre. Perceba que tipo de grupo você tem nas mãos. Conforme o perfil do grupo esse tipo de aventura pode funcionar ou não. E mesmo que seja um grupo que vá aproveitá-la, esforce-se para perceber qual o caminho que sua aventura deverá seguir: mais investigação, ou mais luta, ou quem sabe mais enigmas, ou algo mais longo, ou mais curto, menos ou mais intrincado. Esse tipo de aventuras tem tudo para dar certo, desde que planejada, estudada, preparada e executada com empenho e cuidado!

Bom jogos!