Lá e de novo outra vez
- ou como enlouquecer seus jogadores no tempo -
Vamos falar de
modos novos de enlouquecer nossos jogadores. Isso parece mau, mas no fundo é o
que todo rpgista mais ama, seja de qual lado estaja do escudo. Uma das melhores
formas de fazer isso é lidar com a noção do tempo. Doctor Who, Projeto
Almanaque, Efeito Borboleta e Os 12 Macacos nos ensinaram o quanto é perigoso
mexer com ele. Mas estou mais interessado no efeito visto no filme No Limite do
Amanhã, mais como uma versão futurista de Feitiço do Tempo.
O filme No
Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow),
de 2014, baseado no mangá All You Need is Kill, de Hiroshi Sakurazaka,
protagonizado por Tom Cruise e Emily Blunt, conta sobre os dias finais uma
invasão alienígena (chamados de mimetizadores) feroz e praticamente impossível
de ser repelida. Foram cinco anos de luta e resistência que chegam à um ponto
crucial. O personagem de Cruise, William Cage, um simples assessor de imprensa militar,
é obrigado à ir para a frente de batalha para cobrir a invasão da França após
se recusar à ingressar espontaneamente. Ele passa um dia “infernal” em uma base
para um treinamento rápido já que não possui conhecimento de combate e na manhã
seguinte está desembarcando com seu pelotão em praias francesas. Infelizmente
os alienígenas como que antecipando o ataque chacinam as tropas humanas. Em
meio ao combate Cage morre ao explodir um alienígena, sendo banhado em seu
sangue no momento da explosão. Mas não é o fim. Cage acorda na manhã do dia
anterior, quando está chegando á base, exatamente vinte e quatro horas do
momento de sua morte. Sem saber o que está acontecendo ele é levado a reviver
aquele dia.
O filme passa
com Cage tentando aprender o que está acontecendo com ele e como isso
influencia os acontecimentos à sua volta. À cada novo retorno ele acumulou um
pouco mais de experiência e conhecimento. O transcorrer do filme não nos
interessa aqui. O que nos importa é que ele morre e volta sempre aprendendo um
pouco mais sobre aquele dia e sobre aquilo que deveria (ou poderia) fazer para
chegar a um resultado que ele buscava – a derrota dos alienígenas.
Se olharem bem
esse conceito perfeito para um bom jogo de RPG. Mas como lidar com isso?
Imaginemos um
grupo de aventureiros no ápice da sua missão. A luta contra o vilão máximo está
à pleno vapor. A vitória é uma vaga possibilidade, pois o grupo percebe que o
inimigo é muito pior é mais numeroso do que imaginavam. A derrota naquele
momento é a sentença de morte para o grupo e, quem sabe, para todo o reino. Mas
eles não são páreos e sucumbem (ou apenas um dos membros do grupo sucumbe).
Os jogadores
imaginam que a sessão ou a aventura terminou. Use isso como achar melhor. Em
seu recomeço, no mesmo dia ou na próxima sessão, sem aviso, os mesmos personagens
voltam para a manhã daquele dia (ou algum outro ponto muito próximo à critério
do Mestre). É uma nova chance do grupo conseguir atingir a vitória.
Notem que isso
nos trás possibilidades de diversão quase infinitas e dificuldades múltiplas
como mestres.
Conforme nosso
cuidado e
capricho na construção da aventura e do cenário eles tendem a se
tornarem épicos para o grupo. O grupo será estimulado a sair de sua posição de
confortavelmente vivenciar a aventura, muitas vezes linear, e procurar
alternativas malucas para desvendar a sua realidade. Isso, se bem aplicado, sempre
trás ótimos resultados. Além disso, o grupo será levado a investigar mais com a
possibilidade de se arriscar mais. Por falar em risco, vocês não imaginam as
loucuras que um grupo de jogadores faz quando perceberem a mecânica da morte e
retorno.
Dificuldades
Mas as
dificuldades são grandes e podem levar ao fracasso facilmente. O grande
problema pode ser resumido ao eixo preparação e foco. O Mestre precisa ter claro o
esqueleto da aventura. Essa é uma das raras situações onde o Mestre deve ter
alinhavado (quase determinado) como se passará a aventura até o seu final e
como esse final acontecerá. Ora, estamos trabalhando com a noção de tempo,
então podemos o dobrar como quisermos e também já saberemos como tudo acaba.
Mas isso tem de ser usado com cuidado no sentido de que nosso ponto de chegada
como mestres, mais do que em outras aventuras, é a diversão do grupo com a
experiência. Essa é uma daquelas situações onde com toda a certeza a diversão
está na jornada – na descoberta de como juntar as peças e encontrar uma saída
para seu problema - e não no resultado final.
A preparação
dessa aventura, em termos de enredo, começa muito antes do momento de retorno.
Para que todo esse nosso esforço tenha sucesso é preciso que nosso grupo de
jogadores abrace a ideia. E como isso é conseguido? Com um motivo lógico para
todos esses acontecimentos. O grupo só vai ter uma verdadeira e ótima
experiência se pontas não estiverem soltas (e vou voltar à isso mais tarde).
Por mais que eles possam seguir a aventura mesmo que de forma mecânica, se eles
sentirem uma história bem amarrada, a experiência será ainda maior e eles
compartilharão do esforço de que ela dê certo. Faça com que esse retorno seja
resultado de algo que aconteceu algum tempo antes (darei exemplos mais tarde)
para que eles percebam que há ligação entre os plots tornando a aventura ainda
maior. Com isso você poderá inserir coisas entre esses dois pontos e que
poderão ser uteis. Lembram que eu disse que a jornada é a chave dessa
experiência?
Tendo isso em
mente – a jornada – e já tendo um motivo “plausível” para que tudo aconteça, vamos
criar algo como um roteiro. Nosso ponto de partida neste roteiro
é o momento do retorno. Daí em diante alinhavamos como chegaremos deste ponto
até nosso ponto de conclusão – eliminar o boss, por exemplo. Isso pode parecer
simples, mas aí é que está a grande sacada. Imagine exceções que precisem ser
cumpridas pelos aventureiros: objetos impensados que precisem para a vitória,
rituais que devam ser feitos antes da batalha, pessoas que precisem levar
junto, alavancas que devam ser puxadas, de tudo um pouco. Todas essas ‘exceções’
é que serão o quebra-cabeça a ser montado pelo grupo, um quebra-cabeça que deve
ser montado no escuro. Esse rol de possibilidades atendidas faz com que crie-se
a condição ideal para que os aventureiros cheguem ao resultado esperado. Embora
eu não concorde com aventuras direcionadas, em alguns casos, como este em
especial, isso é uma ferramenta muito interessante.
Exemplo
Existem muitas
formas de fazermos esse ‘roteiro’. Minha dica é fazer isso por blocos. Cada
bloco seria como um conjunto de situações que o grupo deve solucionar para entender
sua situação e descobrir como chegar ao seu resultado. Mas acho que isso será
melhor entendido se exemplificado.
Vamos partir
da situação de uma campanha. O grupo de aventureiros precisa destruir um lich
poderosíssimo que está isolado em uma fortaleza no centro de uma grande cidade tentando
abrir um portal para outro plano, de onde arregimentará um exército de seres
malignos coma intenção de usá-los para dominar o reino e posteriormente todo o
continente. O grupo foi convocado por um mago que teve uma visão aterradora do
futuro com a destruição do reino se o lich conseguir abrir esse portal. O grupo
parte para uma série de missões menores para investigação, arrecadar artefatos
e para descobrir onde e quando o lich fará a abertura do portal. Eles descobrem
o local e com informações erradas pensa ter condições de destruir o inimigo. Ao
chegar o momento da derradeira batalha eles falham ou por terem morrido em
combate ou por não conseguirem impedir o processo de abertura do portal mesmo
com a morte do lich, resultando também em suas mortes. A frustração tomará
conta da mesa.
O grupo então
acorda na manhã daquele dia cuja luta acontecerá apenas à noite. Desorientados
com o que está acontecendo eles começarão a investigar. A saída mais lógica
será procurar um templo de algum deus ou um mago, que lhes informará que há uma
aura estranha ao seu redor e que eles devem procurar o mago que os contratou.
Infelizmente esse mago está à alguns dias de viagem deles. Chegando lá, ao
falarem com o mago ele os informará que numa das missões que eles realizaram, provavelmente
receberam a raríssima benção (ou maldição) do deus fulano, lhes permitindo que
sempre retornem à manhã do mesmo dia até que consigam matar o lich. Sabendo
disso eles devem começar a investigar o que é preciso para matar o lich, como
cancelar o encantamento, qual a verdadeira quantidade de tropas inimigas e tudo
mais que o Mestre quiser acrescentar.
Parece fácil?
Então, a cereja do bolo é que sempre que a noite chega, eles lutando ou não com
o lich, eles sempre morrem – ou em combate ou por um colapso no momento do
encantamento, levando uma vasta região pelos ares. Com isso após determinado
horário, eles voltam a acordar sempre naquela manhã. Quer complicar ainda mais?
Crie alguma regra para a benção/maldição funcionar, do tipo que eles não possam
usar qualquer tipo de cura mágica para qualquer tipo de ferimento ou quando
morrer será definitivo (naquela noite, provavelmente).
Agora vamos
analisar nosso amálgama de informações básicas:
-
O grupo sempre acorda na manhã do mesmo dia - após morrerem ou após um dos
membros morrer ou após o encantamento do portal colapsar;
-
Eles têm de doze a quatorze horas para fazer o que precisam;
-
A única solução que leva a quebrar a benção é derrotar o lich e também desfazer
o encantamento;
-
Sempre que eles acordam na manhã do mesmo dia eles guardam as experiências e
informações adquiridas.
Com isso entendido
o próximo passo é criar vários eixos para que o grupo se debruce, obrigando-os
a vivenciar o dia por várias e várias vezes nas tentativas de descobrir e
solucionar os problemas. Quer dicas?
O primeiro
passo lógico do grupo será investigar o que está acontecendo (ou quem sabe eles
ainda tentem enfrentar o lich mais algumas vezes com táticas diferentes antes
de desistirem). O exemplo que dei de serem obrigados a procurar o mago que os
contratou, mas este estar à alguns dias de viagem, mostra o tipo de problema
que temos que colocar nas mãos do grupo para que solucionem. Eles não têm como
viajar até onde o mago está, pois inevitavelmente morrerão ao cair da noite.
Eles terão de investigar alternativas que o Mestre já tem que ter pensado –
teleprote, viagem astral, mensagem telepática. Quem sabe o mago dá uma dica
para uma próxima investigação como, por exemplo, da arma ideal para essa
situação e como forjá-la ou encontrá-la.
Se eles
precisam de uma arma encantada que está em um determinado local obrigue-os a
investigar por mais de um dia, quem sabe numa primeira tentativa com um ataque
suicida. Assim eles podem descobrir falhas da segurança e garantir o sucesso na
segunda tentativa. Se eles precisam da ajuda de alguém faça-os terem de
descobrir como incentivar essa ajuda (ou chantagem) em mais de uma tentativa. Se
eles precisam descobrir mais sobre o covil do lich faça-os perder dias com isso
através de investigação, contratando pessoas para ajudar, invadindo o lugar
etc. Se precisam achar a fraqueza do lich, que eles tenham de usar a camiseta
na pesquisa, quem sabe descobrindo algo e procurando outras pessoas que possam
os ensinar. O que quero deixar claro é que cada um desses vários eixos deverá
levar um bom tempo para ser realizado.
Outra coisa
muito interessante e promissora, tal qual acontece no filme e no mangá, é que
os antagonistas estejam cientes dessa sua benção/maldição e tentem tanto
dificultar o trabalho do grupo quanto acabar com o efeito que os faz retornarem
após a morte.
Mais dificuldades
Com tudo isso
claro até aqui chegou o momento do alerta. Para que todo esse esforço dê
resultado é imperativo que dois cuidados devam ser tomados. Primeiro, essa
mecânica de repetições pode facilmente tornar-se enfadonha e cansativa. Para
que isso não aconteça é muito importante manter o ritmo no dia a dia dos
jogadores. Se as coisas começarem a empacar, rapidamente o grupo perderá o
interesse. Não crie dificuldades extremas. A própria mecânica de retorno já é
uma dificuldade considerável para o grupo. Auxilie (ou incentive) que a ação
sempre aconteça ou que eles não se demorem em becos sem saída. Com o andamento
constante da ação, os jogadores terão a impressão de que tudo está andando.
Segundo, tenha
capricho e preocupação na preparação desse conjunto de sessões. Não basta achar
que isso funcionará por obra dos deuses ou por interesse e boa vontade dos
jogadores. Todo o cuidado aqui será importante. Como eu disse anteriormente,
todos os eixos devem ser preparados com antecedência e isso significa ter o
mapeamento completo dos eixos, lista de ocorrências e encontros que podem se
dar em cada eixo, quais personagens estão em cada eixo - inclusive com as falas
que deverão ser repetidas. Prepare a maior parte da ação para ocorrer em uma
mesma cidade ou nas suas proximidades (pois temos aquele limite de tempo de
algumas horas). Ainda, para temperar
ainda mais o jogo, coloque dicas de outras ações que o grupo deverá realizar em
cada eixo, para que o grupo de jogadores consiga ir montando as peças de coisas
que eles ainda não pensaram.
Como sempre
Eu faço agora
as mesmas recomendações que faço em todos os outros artigos da Dicas do Mestre.
Perceba que tipo de grupo você tem nas mãos. Conforme o perfil do grupo esse
tipo de aventura pode funcionar ou não. E mesmo que seja um grupo que vá
aproveitá-la, esforce-se para perceber qual o caminho que sua aventura deverá
seguir: mais investigação, ou mais luta, ou quem sabe mais enigmas, ou algo mais
longo, ou mais curto, menos ou mais intrincado. Esse tipo de aventuras tem tudo
para dar certo, desde que planejada, estudada, preparada e executada com
empenho e cuidado!
Bom jogos!