quinta-feira, 20 de março de 2008

Diário de um escudeiro - 1

Quinto dia de Cyd de 1392.

Estou completando dezessete anos hoje. Na verdade não estou. Faço aniversário daqui exatos 30 dias. Mas como não estarei mais por aqui resolvi começar a usar meu presente. A maioria de nós, quando completa mais um ano de vida não têm muita chance de ganhar algo. Algo material, quero dizer. Somos pessoas simples - pelo menos por aqui. Mas muito felizes, com a graça de Lena e a benção de Allihanna.

Mas neste ano foi diferente. Já estava acostumado com o nosso tipo de festividade nos aniversários. Todos os moradores da vila vão para a casa da família do aniversariante. Cada um leva algo para realizarmos uma bela e farta janta. A alegria é nosso presente.

Mas este ano foi diferente. Talvez por ser o começo de algo diferente também. De qualquer forma foi diferente. Acordei nesta manhã com meu avô sentado aos pés de minha cama. Tinha nas mãos um embrulho um pouco maior do que um palmo. Era de uma cor vermelha viva, meio desgastada, mas ainda conservando uma certa beleza. Era um retalho na verdade. Percebi quando tive o embrulho nas mãos. Não tínhamos o costume de dizermos muito um ao outro. Mas isso não significava que não éramos ligados. Muito pelo contrário. De tão próximos, diziam, bastava nos olharmos para sabermos o que fazer ou o que o outro estava pensando.

Recebi o embrulho em silêncio e em silêncio o abri. Era um livro. Quando o folhei o percebi com as páginas em branca. Vazias. Logo o olhei com uma pergunta em mente. Mas a resposta veio antes das primeiras palavras saírem de minha boca.

“- Não é um livro. É um diário. Amanhã toda a sua vida será diferente. E isso não pode se perder na memória. Hoje podes lembrar de tudo o que fizeste desde que ainda engatinhava por entre as patas dos cavalos lá fora. Mas com o tempo pequenas fatias, pequenos detalhes vão sendo guardados cada vez mais no fundo do baú de nossas lembranças. Quem me dera eu tivesse um deste nos meus bons tempos!”

Meu avô era o orgulho de nossa pequena vila. Havia servido por muitos anos como escudeiro de um grande cavaleiro servidor de Khalmyr. Havia participado de grandes aventuras e sobrevivido para envelhecer junto da família e para contar histórias aos pés da lareira de nossos vizinhos. Mas sempre reclamara de que muitos detalhes de grandes aventuras estavam aos poucos escapando por entre os dedos da memória e se perdendo no vazio.

De dentro do diário escorregou algo que caiu sobre o cobertor, no meu colo. Era uma pedaço de metal redondo preso em uma corrente. Ambos prateados. Olhando com mais cuidado vi duas figuras, uma de cada lado. Eram imagens perfeitas. Quase que pinturas em alto relevo sobre a placa de metal. Olhando com maior cuidado percebia que não era uma simples placa de metal. Era um medalhão finamente talhado.

De uma lado estava havia a imagem de um imponente cavalo com um igualmente imponente homem segurando fortemente as rédeas. Era como todos nós, destas paragens, imaginávamos Hippion, Deus dos Cavaleiros. Do outro lado havia uma espada sobreposta à uma balança – o símbolo do deus da justiça, Khalmyr.

Num de meus últimos anos de trabalho junto de meu amado mestre, tivemos a satisfação de ajudar, junto de outros Cavaleiros da Khalmyr, um vilarejo às margens do Rio Vermelho, em Callistia. Não vou contar está história hoje. Na tua volta, quem sabe. Mas, naquele dia passamos por maus bocados e até eu tive meu momento de herói salvando um velho anão – e para ele ter braba tão branca deveria ser velho mesmo. Cerca de um ano depois, quando voltamos àquela vila para ver como estavam as coisas Turak (esse era nome do anão) me presenteou com esta medalha. Ele disse que um anão, embora orgulhoso, nunca esquece daqueles que lhe demonstra honra e valor. Turak contou-me que a confeccionou de próprio punho colocando de um lado Hippion, em homenagem à minha terra de origem, e de outro Khalmyr, em homenagem a meu ato. Disse também que havia ido passar alguns meses em Doherimm e pedira para os sacerdotes do Templo do Deus da Justiça, da cidade dos anões, abençoarem esta medalha” – disse meu avô.

Eu olhava a medalha cuidadosamente imaginando cena por cena tudo o que meu avô ia contando-me. Era realmente um trabalho maravilhoso. Era pesada como umas cinco ou seis moedas de prata. Era meio espessa também. Olhando-a lateralmente percebi que haviam vinte espaços demarcados por toda a sua extensão. Todos do mesmo tamanho. E cada qual com uma pequena marca.

Essas marcas representam todos os vinte templos dos vinte deuses que Turak visitou antes de me entregar este medalhão. Ele pediu a benção em todos os vinte templos dos vinte deuses.... e não adiante me olhar assim, vinte mesmo. Quando passares em Valkária, a capital de Deheon, entenderá o que quero dizer com vinte. O anão me disse que muitos amigos lhe deviam favores e assim foi acumulando bênçãos nesta jóia. Nem quero saber como ele conseguiu os favores da deusa da escuridão ou do Senhor das Víboras” – terminou por dizer meu avô.

Não vou negar que fiquei muito impressionado com o presente. Passei horas olhando-o e pensando em como meu avô teve sorte em seus anos de aventura. Será que terei a mesma sorte?

Vamos ver. Ah.... Só para quem quiser que esteja lendo isto, em não sei qual época, saber.... Meu nome é Tyrias. E amanhã irei para Bielefeld. Serei um escudeiro.