terça-feira, 2 de março de 2010

Rank Cinza de Fevereiro

Estamos subindo

É ótimo termos uma notícia deste tipo já no início de Março. O blog Área Cinza lançou seu já tradicional rank para esse mês de Fevereiro. Depois de um 17º lugar no rank de janeiro, atingimos o 15º lugar no rank de fevereiro. Duas coisas me deixam muito feliz com isso. A primeira é que temos tido um ótimo resultado com as iniciativas de assuntos e materiais que temos proposto. A segunda é que estamos aparecendo em um rank que, além de blogs, coloca na corrido sites e editoras. Assim conseguimos dividir espaço com sites como o da Jambô e da Devir e nos colocar junto de ótimos blogs, como a Taverna do Goblin.

Valeu pelo apoio de todos!!

Zumbis em Porto Alegre - Anotação 2: Achando minha filha


Anotação 2 – Achando minha filha
Vamos continuar as lembranças. Quero aproveitar que não terei de sair nos próximos dias. Estamos com a dispensa cheia e esses dias frios de inverno não me dão coragem de colocar o nariz para fora.

Quando chegamos à ex-Faculdade Porto Alegrense notamos uma grande movimentação militar. Eles estavam preparando uma barricada com alguns tanques e um considerável número de soldados. Nada exagerado, mas poderia resistir de forma adequada, eu achava.

Alguns soldados nos informaram que as zonas críticas eram o centro da capital seguindo até a zona norte, como já havíamos constatado, a zona sul entre o bairro Cristal até próximo do Guarujá e algumas parcelas do bairro Partenon. A cidade de Viamão, uma possível rota de fuga em direção ao litoral também estava tomada já. Segundo eles muitas barreiras estavam sendo feitas para tentar frear aquelas coisas enquanto esperavam novas ordens e reforços. Disseram que teríamos uma certa tranquilidade dali até o bairro Intercap, nosso destino. As orientações era para que todos tentassem permanecer em suas casas se protegendo como desse. A evacuação tinha sido um fracasso e mais gente nas ruas seria um prato feito para os zumbis.

Segui rápido pela avenida Manoel Elias até a Protásio, e dali até a avenida Antônio de Carvalho. Realmente não havia muito problema de trânsito. Para falar a verdade o movimento era de carros militares enquanto carros civis estavam espalhados aqui e ali, abandonados ou batidos. Mas nem tudo eram flores. Enquanto fui descendo em alta velocidade a Antônio, em direção à Intercap, o Raul mostrou algumas daquelas coisas saindo de uma esquina perseguindo dois jovens que logo foram capturados. A cena foi hedionda, mas não podíamos parar naquele momento. O que tinha certeza era que nem o exército sabia a amplitude daquilo tudo e que eles estavam enganados se achavam que as coisas estavam restritas à zonas específicas.

Acelerei mais ainda e entrei na contra-mão da Ipiranga para chegar mais rápido onde desejava. Quanto mais perto chegava mais ansioso estava. As coisas pareciam calmas por ali. Todas as casas fechadas, algumas famílias claramente preparando seus carros para fugirem, mas nada de zumbis em lugar algum. Era um alívio.

Quando cheguei à frente de casa tive o primeiro susto. Tudo estava fechado. Tinha a esperança de que minha filha estaria ali, protegida e me esperando. Mas estava enganado. Tão logo entramos pelo portão eletrônico e saltamos do carro com todo o cuidado e entramos na casa percebemos que estava vazia.

Paulo continuou tentando falar com sua casa, mas a ligação não se completava. Raul ainda estava preocupado com as notícias que os soldados haviam dito sobre os problemas na zona sul. Ambos estavam ansiosos para irem para casa. Tentei acalmá-los ao máximo enquanto não consegui manter eu mesmo a calma. Onde ela estaria a minha filha?

Disse para eles pegarem meu outro carro, um Palio e irem para a zona sul. Era o máximo que eu poderia fazer por eles naquele momento. Enquanto eles iam passando suas coisas da caminhonete para o carro e corri pela casa para ver se estava tudo bem e se havia algum sinal da filha. Por sorte ela havia deixado um bilhete na geladeira – “Não quis ficar sozinha. Estou na casa das gurias. Peguei um dos rádios.

Isso me aliviou. Pelo menos eu sabia onde procurar e era perto dali. Além disso, ela havia sido muito esperta. Além de nossos celulares normais, eu também tinha um daqueles celulares que possibilitava uma comunicação rádio e sem depender muito de sinal das operadoras, para quando eu estava em campo. Corri no escritório e peguei ele.

Beeep – “Alô Pam.... Está aí?”

A resposta demorou um pouco mas veio.

Beeep – “Siimmm.... Está em casa?”

Beeep – “Sim.... Está no apartamento das gurias?”

Beeep – “Sim, está tudo bem contigo?” [choro]

Beeep – “Como estão as coisas por aí?”

Beeep – “Tudo calmo por enquanto, vem logo!”

Beeep – “Estou indo. Arrumem as coisas da melhor maneira possível. Peguem tudo o que tiver de comida e o que for necessário. Vamos sair da cidade!”

Beeep – “Ok.”

Desliguei o aparelho no mesmo momento que Paulo e Raul voltaram. Já haviam terminado de arrumar o carro e já iam sair. Disse o que iria fazer e se eles não queriam ficar ali conosco, mas eles estavam ansiosos para encontrar seus parentes.

Aproveitei que eles iriam sair e combinamos de sairmos juntos. A casa das amigas da Pam era num edifício pequeno bem em frente ao Carrefour, apenas dois ou três minutos de carro. No mesmo caminho que eles teriam de pegar para ir para a zona sul. Dali eles iriam sozinhos.

Não ficamos mais do que vinte minutos na minha casa e, quando saímos, as coisas já estavam diferentes. Aquele silêncio todo já estava sendo incomodado por sons de tiros vindo de locais indistinguíveis. Já havia mais gente na rua, de curiosos à pessoas apavoradas tentando fugir. Mas pelo menos ainda não haviam aquelas coisas.

Trocamos um longo abraço e desejos de sucesso à todos nós. Deixei claro para eles onde me encontrar se precisassem – estaria indo para uma casa na praia de Cidreira e depois subir o litoral. Tiramos os carros, fechando o portão eletrônico logo atrás de nós.

Partimos com cuidado por dentro do bairro Intercap em direção ao Carrefour. O caminho foi rápido e quase sem problemas – fora dois ou três motoristas desesperados que quase nos atingiram. Quando nos aproximamos ao Carrefour as coisas estavam diferentes, com muitos carros circulando. Nos aproximamos pela rua detrás do hipermercado, que dava na frente do prédio. Minha filha já estava me esperando na frente do prédio, pelo lado de dentro das enormes grades frontais. Foi um momento de alívio vê-la. Fui parando enquanto desviava dos muitos carros que aparentemente estava interessados no Carrefour enquanto o Raul e Paulo passaram por mim buzinando e se direcionando para a avenida Ipiranga. A jornada deles seria muito mais longa e perigosa.

Mal eu abri a porta da caminhonete e minha filha já estava se jogando em meus braços. Foi uma sensação tranquilizadora. Algo de que eu precisava naquele momento.

Ela me contou que ia ficar em casa, mas resolveu na última hora vir para o apartamento de suas amigas para se sentir mais protegida e não ficar sozinha. Até pensou em voltar para casa, mas a loucura que estava começando a fez esperar.

Realmente as ruas ao redor do Carrefour estavam uma loucura. Aqui o trânsito estava muito diferente daquele que eu havia percorrido até chegar em casa. Muitas pessoas queriam ter uma reserva de suprimentos e a procura deste hipermercado era algo natural. Havia um grande engarrafamento nas entradas do Carrefour, correria e brigas.

Eu a tranquilizei como pude. Colocamos a caminhonete no estacionamento do prédio e pedi que fossem colocando as coisas dentro. Enquanto isso eu iria até o Carrefour para tentar trazer algo de comida e qualquer coisa que precisássemos. Tudo o que eu conseguisse seria lucro nesse momento.

Muitos carros tentando entrar no hipermercado ao mesmo tempo geraram um engarrafamento sem solução. Nada se movia. Alguns veículos até já estavam abandonados por seus donos desesperados. E algumas pessoas já tentavam passar por cima dos capôs.

Eu coloquei nas costas uma grande mochila de acampar vazia que já havia trazido propositalmente para uma eventualidade deste tipo. Tive de subir em mais de um carro para conseguir alcançar o outro lado da rua. As pessoas corriam para todos os lados. Muitos vinham do hipermercado trazendo sacolas e mercadorias nas mãos. Muito mais gente tentava entrar do que sair de lá.

Poucos policiais tentavam acalmar a multidão enquanto seus próprios rostos se faziam apavorados. Quando alcancei a entrada do portão para rua pude vislumbrar o enorme estacionamento abarrotados de carros espalhados de forma irregular. Muitos acidentes. Brigas. Entre eles uma multidão em forma de formigueiro em movimento irregular.

Por sorte, eu acho, consegui me espremer por um canto onde o fluxo de entrada pelo portão fluiu mais rapidamente. Tão logo cheguei ao pátio tentei correr como um louco para dentro. As pessoas estavam transtornadas. Muitos dos que saiam com compras eram atacados e roubados já na porta por outros desesperados.

Os seguranças, na entrada, quase não conseguiam segurar aquela turba. Disparos começaram a ser ouvidos vindos da multidão, de quando em quando. Nem todos podiam entrar. As coisas foram ficando pior quando começaram a permitir a entrada apenas de quem fosse pagar com dinheiro vivo. Isso revoltou muitos dos que estavam espremidos nas portas de vidro da entrada. Eu tentei aproveitar a confusão e passei por dois deles gritando que tinha dinheiro.

As coisas estavam completamente fora de controle.

Lá dentro tudo estava muito mais confuso. A ordem já estava perdida à algum tempo. Todos queriam passar ao mesmo tempo pelos caixas. Seguranças tentavam controlar os pagamentos. Realmente não tenho ideia de como havia gente que com toda aquela calamidade ainda tinha tempo para pensar em dinheiro. Isso sem contar naqueles que ainda tinham a intenção de levar aparelhos eletrônicos. O ser humano, quando não é louco, é maluco.

Corri na direção dos corredores de alimentos. Com toda a certeza tinha muito mais gente do que a estrutura comportava normalmente. Disputas eclodiam aqui e ali, a correria com os carrinhos era geral.

Passei mão num carrinho esquecido num canto. E comecei a pegar o que eu conseguia. Tudo tinha um valor inestimável de agora em diante, e não sabia quando conseguiria comida novamente. Enlatados e comida desidratada eram meus alvos. Sabia que a validade deles era muito mais longa. Mas mesmo assim, eu acabava pegando o que encontrasse fosse o que fosse. Nessas horas de desespero coisas básicas são esquecidas. Pilhas, baterias, fósforos, remédios, antisépticos. Coisas que não damos muita importância no dia a dia, que provavelmente passariam a ser úteis. Água já não tinha mais. Foi a primeira coisa que acabou nas prateleiras. Acabei levando algumas caixas de suco que estavam caídas no chão esquecidas na confusão.

Comecei a correr e disputar as coisas com os outros. No momento do desespero, por mais que sejamos, ou tentemos ser frios, acabamos sendo influenciados pela irracionalidade dos outros.

Quando estava começando a me direcionar para o caixa o pior aconteceu. De algum lugar do interior do hipermercado começaram gritos que destoavam do alvoroço que havia. Um momento de silêncio calou muitos que estavam ali. Logo em seguida, num segundo grito, veio a confirmação – “Zumbiiiissss!”. Isso foi o suficiente para criar uma espécie de estouro da boiada. Agora todos queriam sair de uma só vez. Se atropelavam. Se pisoteavam. Se agrediam.

Eu estava perto dos últimos caixas, logo ao lado do corredor dos refrigerantes. Ali o fluxo de carrinhos era um pouco menor e tive tempo de pensar. Com aquela confusão eu tinha de ser prático. Para o inferno pagar qualquer coisa. Tinha de sair dali e iria fazer isso de qualquer forma.

Com a confusão armada os seguranças correram para o meio dos corredores deixando a frente de caixa quase que livre. Haviam somente os seguranças nas portas de entrada mas, estranhamente, de onde eu estava percebia que mesmo o número de pessoas do lado de fora havia diminuído muito.

Respirei fundo e corri com o carrinho, seguido de um ou outro que perceberam o que eu ia tentar. No caminho de minha corrida ainda tive tempo de ver alguma coisa subindo num caixa e pulando sobre uma das atendentes sob o olhar pasmo de todos os que estavam em volta.

Eu literalmente atropelei os seguranças jogando os dois que estavam em meu caminho para os lados. Com a distração muitas pessoas correram para dentro atropelando o resto. Era tudo o que eu precisava. Atrás de mim mais alguns desesperados vinham com seus carrinhos abarrotados. Estranhamente havia menos pessoas na porta do que antes e eu não entendi naquele momento. De qualquer forma aproveitei para correr para fora e subir a rampa que dava acesso à rua Albion.

Somente quando eu cheguei à metade da rampa foi que me dei conta que aquela multidão havia se dispersado. Olhei para trás e tive a confirmação. O pátio de estacionamento do Carrefour tem o feitio de enorme panela. Tanto ele quanto o prédio do hipermercado ficam abaixo do nível da rua na frente e dos lados. A extremidade oposta da rampa em que estava subindo haviam pelo menos umas três dezenas de zumbis descendo pelas escadas em direção ao estacionamento. Mais à frente, próximo a primeira porta do Carrefour já haviam alguns zumbis se esbaldando com uns pobres coitados. Esse era o motivo da dispersão.

Não sei como eles chegaram até ali. Para isso eles teriam de ter vindo do lado oposto aos bloqueios e passando pela minha casa. Nunca fiquei sabendo ao certo como eles vieram daquele lado. O certo era que eu tinha tido uma grande sorte de estar na rampa oposta à eles.

Me concentrei no que tinha de fazer e parti para o prédio com o carrinho abarrotado até onde consegui empurrá-lo. Agora um novo problema – entre eu e o prédio haviam muitos carros abandonados, fora o corre-corre daqueles que tentava fugir desesperada. Não dava tempo de encher a mochila e eu não pretendia perder nada daquilo que havia conseguido juntar. Minha única opção foi costear os carros tendo de fazer quase o triplo da distância para conseguir chegar ao meu destino.

Comecei a descer a rua, em direção à Ipiranga, até achar um vão entre a tropa de carros uns cem metros do prédio. Foi mais fácil do que eu imaginara inicialmente. Mas tão logo eu contornei os carros e comecei meu caminho ao meu destino vi minha filha gritando algo que eu não escutava naquela balburdia e apontando para trás de mim. Quando virei percebi que eram alguns zumbis vindo pelas minhas costas, mas ainda um pouco distantes.

A minha sorte é que eles, pelo menos uma grande maioria, são relativamente lentos. Mesmo assim, naqueles primeiros dias eu ainda não sabia desse detalhe. Corri o máximo que pude, aos trancos e barrancos, perdendo alguns produtos no trepidar do carrinho. Mas, de qualquer forma, cheguei à frente do prédio. Eu até tive a falsa ideia de que aquilo não seria tão complicado assim - combater e sobreviver aos zumbis. Se eu imaginasse...

Pouco depois que eu entrei e que o portão se fechou atrás de mim os zumbis passaram por nós. Eles passaram reto pelo portão focando as pessoas que ainda estavam próximas, na rua. Essa foi outra característica que aos poucos fomos aprendendo – eles focalizam naquilo que está mais fácil para eles atingirem. A correria e o desespero das pessoas na rua só aumentava. Em alguns instantes a frente do prédio estava praticamente vazia com a população tentando escapar dos monstros correndo em direção à avenida Bento Gonçalves. Alguns policiais disparavam suas armas, mas o efeito era pouco efetivo.

Mesmo sem pessoas na rua, os carros estavam todos ali, abandonados. Tudo estava bloqueado. Não teríamos como sair. Em frente àquele quadro decidimos que o melhor seria continuar no prédio até as coisas acalmarem.

Eu já estava maquinando os próximos passos ao ficarmos ali. Teria de voltar à minha casa para pegar o que eu havia deixado por lá.  Principalmente minhas pistolas que até hoje não imagino por que as deixei por lá quando saí.

[Originalmente escrito em 02/03/2010. Revisado em 29/08/2022]