quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Dicas do Mestre: Um contra todos

Dicas do Mestre
- Um contra todos -


A cabeça de um rpgista está sempre conectada com qualquer coisa que possa se transformar em jogo. Comigo não é diferente. Uma das coisas que mais gosto no Netflix são os documentários. Há um conjunto de documentários muito interessantes sobre castelos britânicos – “Secrets of Great British Castles”.

Nesses documentários são apresentados todos os elementos sobre os castelos, sua história e motivação de construção, características, peculiaridades e lendas. À cada episódio um castelo. Um prato cheio para a mente inquieta de um rpgista.

Num desses episódios, o quarto da primeira temporada, foi apresentado o Castelo de Caernarfon, construído entre 1283 a 1294, o bastião do poder inglês em Gales e o elemento principal do chamado Anel de Ferro (conjunto de castelos construídos em território galês). Por sua própria história, antiga e moderna, ele já seria muito interessante - ponto chave do poderio inglês em Gales, peça fundamental para minar a resistência dos galeses frente o invasor inglês, residência do rei Eduardo I, possuidor do inexpugnável Portão do Rei, entre tantas outras coisas.

De todas as histórias referentes a este castelo mostradas no documentário a que mais me chamou a atenção foi a ocorrida durante o reinado de Henrique IV, quando da rebelião encabeçada por Owain Glyndwr, que usava a bandeira e símbolo de Uther Pendragon, ninguém menos que o lendário pai do Rei Artur. Em 1403 apenas vinte e oito soldados conseguiram impedir a invasão decorrente da rebelião galesa reforçada pelo poderio francês. Um pouco devido a arquitetura inovadora e funcional graças ao trabalho do arquiteto militar francês mestre James de St. Geroge de Savoia, um pouco devido à falta de equipamentos pesados apropriado para o ataque. O que importa é que aqueles bravos soldados mantiveram a integridade do castelo e sua fama de inexpugnável.

Histórias desse tipo sempre me encantaram, tanto que este tema foi usado por mim no capítulo 38 da série de historias Diário de um Escudeiro. Isso me reavivou o sentimento de falar desse tema como uma fonte de inspiração para uma aventura ou parte de campanha.

Em nossas aventuras normalmente somos o grupo que invade os lugares atrás de algum item ou para matar algum vilão. Vamos inverter esse viés. E se estivéssemos em um lugar, sendo atacados, sem a possibilidade de sair ou tendo que ficar para protegê-lo? E se tudo estivesse contra nós - números, armas, tempo?

A proposta é simples. Uma aventura onde o grupo de aventureiros é levando a enfrentar um desafio contra todas as possibilidades de sucesso, seja pelo número, seja pela localização. Pode não parecer lá muito inovador já que normalmente os personagens enfrentam, sessão à sessão, perigos que desafiam suas vidas. O que proponho e jogar esse perigo com um bom e traumático enredo.

Em RPG podemos dizer que as situações são sempre muito semelhantes. Normalmente envolve um mistério, que leva à descoberta de uma caminho, que exige uma jornada (viagem) com testes à vidas dos personagens em graus de dificuldades crescentes, novas descobertas, evolução dos personagens e uma batalha final, concedendo-lhes os louros da vitória ou uma belíssima lápide. O diferencial para não cairmos na mesmice é a história criada, a ambientação estudada e rebuscada pelo mestre e sua condução.

Como juntar essa minha ideia em uma aventura então? Os pontos centrais devem ser a ambientação e a emulação da situação. Crie uma situação onde o envolvimento dos personagens é fundamental, perturbador e, principalmente, crível. Eles têm de ser obrigados à enfrentar a situação não importa as consequências mesmo que sejam gritantemente injustas. E o mais importante de tudo – eles devem ignorar tal situação até o último instante.

Ainda muito vago? Vamos à exemplos práticos:


- Os personagens precisa de um item mágico poderoso, única arma capaz de livrar a região de um ser maligno. Eles descobriram que tal item está na fortaleza de seguidores de tal ser, justamente para proteção do item de algum desafeto de seu senhor. Depois de uma luta feroz e desgastante o grupo vence, mas descobre que para retirar o tal item de seu “cofre” precisam de um ritual que levará algumas horas para ser realizado pelo feiticeiro do grupo. É início da noite e as forças das milícias, que vão servir de reforço para o grupo chegarão apenas pela manhã, na hora exata em que o cofre será aberto. Infelizmente não será tempo de paz ou momento para recobrar as forças. As principais forças do ser maligno pretendem entrar na fortaleza e recuperar o item mágico. Cabe apenas ao grupo garantir, sozinho, que a fortaleza fique segura por tempo suficiente para abrirem o cofre e fugirem ou até o amanhecer. Como eles defenderão os três portões, únicas entradas da fortaleza, contra um exército?

- A vila de Athyruac está no meio do caminho das intenções expansionistas e cruéis do conde que comanda a região. Ele tem usado de todos os meios, mesmo os sombrios, para colocar seus planos de crescer em andamento e poder reivindicar a coroa. O grupo de aventureiros foi contratado para chegar rapidamente à vila e garantir alguma proteção enquanto uma milícia melhor armada é organizada e enviada. O que aprecia ser apenas uma missão de segurança mostra-se um desesperador capítulo na vida deles e da vila. Ao chegarem à vila os aventureiros descobrem que as forças sombrias do conde compostas por seres poderosos e em número considerável estão se preparando para investir contra a vila na manhã seguinte. Sem homens adultos – a maioria morta ou fora para as lutas contra o conde – o grupo é a única coisa que pode impedir a chacina da população indefesa repleta de crianças. Mesmo sendo uma vila murada, há muito o que defender!

- A caravana dos tecelões da aurora contratou o grupo para realizar o percurso mais perigoso da sua viagem – o Desfiladeiro da Serpente. Eles devem chegar à Cidade do Despertar para realizar o ritual de cura da deusa menor, a fonte de vida de todos na cidade. Caminhos tortuosos e estreitos que serpenteiam por uma área repleta de pântanos de gases venenosos, penhascos e desolação será o percurso realizado por ser mais rápido. O caminho segue tranquilo quando os batedores da caravana chegam com a notícia de que três frentes estão formadas para impedir a chegada da caravana ao seu destino. Os rufiões são asseclas das três grandes cidades que à centenas de anos disputam a hegemonia com a Cidade do Despertar. Cada um deles virá de um dos três caminhos que levam ao desfiladeiro, fortemente armados e sedentos de sangue. Lutar contra os três juntos protegendo a caravana seria suicídio. Ao mesmo tempo a caravana não tem como andar muito mais rápido. A solução é atacá-los, tal qual guerrilheiros, antes que eles consigam sair dos penhascos e chegar ao desfiladeiros, atrasando-os e dando chance da caravana chegar ao seu destino. A vida de todos depende deles, já que todas as suas famílias também são da Cidade do Despertar.

São três exemplos simples e que podem ser introduzidos na maioria das aventuras. Notem os elementos que introduzi nos três exemplos. Primeiramente o grupo de heróis esta sozinho para enfrentar o perigo. Claro que necessariamente não precisam ser apenas eles, podendo haver algum tipo de auxílio, mas os personagens serão os capacitados para realmente enfrentar o perigo. Eles serão testados por suas capacidades frente à um perigo muito maior do que eles. Eles podem ter ajuda? Sim, mas o foco da resistência ou combate são eles. Por exemplo, seria muito interessante se no exemplo da vila algumas crianças, ou idosos ou algum clérigo resolvesse se juntar à luta sendo um verdadeiro sidekicks dos heróis como que ajudando-os trazendo flechas, apagando pequenos incêndios, lhes alcançando pergaminhos de cura e tantas coisas quanto o mestre bolar ou os jogadores inventarem. Ao mesmo tempo eles seriam um sensacional elemento para atrapalhar a atenção do herói que já estará sobrecarregado.

Outra coisa que está nesses exemplos é que eles devem se separar. Por quê? Fica muito mais interessante. Na maioria das vezes os grupos são pensados para serem equilibrados. Temos aqueles para ataque direto, aqueles para ataque à distância, os que curam, os que furtivamente ajudam, os que lançam magias. Em conjunto eles são extremamente versáteis, se adaptando para a maioria das situações. Mas se eles forem obrigados à se separarem terão que criar formas de vencer a luta por si sós. Por exemplo, no primeiro exemplo que apresentei, na Fortaleza, o grupo poderia ser obrigado a cobrir três entradas para impedir a invasão. Imaginando que o grupo tenha seis membros disponíveis para isso poderíamos ter duplas em cada entrada. Como eles se dividiriam para que tivessem sucesso? Nisso temos que ter uma grande atenção e cuidado do Mestre. Seria aconselhável o mestre estudar bem o grupo para que as opções sejam adequados à cada tipo de personagem. Não estou dizendo que devem haver facilidades, mas algo que torne a cena ainda mais épica e divertida. Pode haver uma das entradas onde claramente alguém de ataque à distância, como um arqueiro, teria uma certa vantagem (uma torre ou sacada, algo no estilo torre da igreja em o Resgate do Soldado Ryan... lembram?!) enquanto outra entrada precise de alguém pesado para defesa direta. Lógico que isso só dará certo se as entradas não forem em maior número do que de personagens.


Outro ponto importante é o envolvimento dos personagens. Para uma carga de dramaticidade os personagens devem entender o que uma falha pode acarretar. A proteção do companheiro feiticeiro no primeiro exemplo, defender inocentes de uma chacina no segundo exemplo ou garantir a vida de suas famílias no terceiro exemplo. Esses são apenas algumas formas para isso, mas o importante é que todos (ou a maioria) estejam dispostos à lutar até a morte se necessário. Serão ótimos momentos para interpretações, narrações de ações e tantas outras coisas que farão da cena algo para guardarem na memória. Inclusive as mortes nessas situações serão momentos épicos para a continuidade da aventura daqueles que permanecerem de pé.

Uma coisa que o Mestre pode fazer é deixar algum ajudante com o aventureiro e que a ficha desse NPC seja usada pelo jogador em questão, principalmente quando esses jogadores forem enfrentar o desafio sozinhos.

Uma pergunta que já me fizeram com relação à essas dicas é como levar a sessão quando os focos estão fragmentados. Seria um erro mestrar em separado, pois a cena é simultânea, embora esteja acontecendo em pontos diferentes da estrutura. Conforme o tamanho da estrutura inclusive, jogadores podem trocar de lugar conforme os perigos se alternam em cada ponto. Eles podem se comunicar mesmo que à distância (desde aos berros ou usando NPCs para isso) ou mesmo se ajudar, avaliando sair de seu lugar para ajudar outro em pior situação. Mas a condução da sessão deverá ser feita pouco à pouco com cada núcleo. Uma boa ideia são umas duas rodadas de combate antes de passar para outro núcleo. Pesar no suspense também é ótimo. Logo antes de algum clímax mude para outro núcleo deixando o jogador em questão surtando de expectativa.



Como eu disse, o mais importante é fazer com que os jogadores se sintam intimamente ligados à situação e tenham um sentido de urgência. Lógico que isso cabe ao mestre ao longo da construção de sua narrativa da aventura e de uma boa dose de cumplicidade dos jogadores. Mas tendo isso em mãos, e com o enredo bem construído, a situação à qual os jogadores terão de enfrentar tornar-se-á épica.

Bom jogos!!!