Dicas do Mestre
Jogando no escuro
ou o jogador com amnésia
Vamos
combinar que uma das coisas mais divertidas em RPG é inventar, mudar,
transgredir e quando eu estava despretensiosamente lendo um e-mail de um amigo
canadense rpgista eis que minha memória me trouxe uma lembrança que servirá de
base para a dica de hoje.
Nossos
jogadores estão acostumados em construírem suas fichas com todo o zelo e
cuidado, levando em consideração cada detalhe, cada elemento sinergético, cada
possível combo, cada junção de raça com classe, tudo para que tenham o melhor
desempenho. Eles constroem essa ficha e saem para a aventura percorrendo o
cenário com um considerável grau de segurança sobre o que e como podem agir
dentre as muitas situações que os mestres colocam em seu caminho. Mas e se eles
não soubessem do que são capazes?
Vamos
aos dois casos que recordei!
Lá
no meio dos anos noventa, em minhas sessões de GURPS, na verdade a primeira vez
que mestrava GURPS Supers para meus irmãos e amigos, decidi fazer algo novo
para eles. Eles criaram a ficha básica de seus personagens sem poderes (pois
eles não sabiam que seria uma aventura de supers) e eu fiz uma versão secreta
dessas mesmas fichas, mas acrescentando poderes especiais. Começamos o jogo em
um cenário misturando fantasia medieval e futurismo com eles acordando em um
laboratório, nos porões de um castelo, após uma explosão decorrente de um
atentado. Todos os cinco personagens acordaram simplesmente sem saber o que
estava acontecendo ou mesmo quem eram. Seu único autoconhecimento era aquilo
que estava na ficha que eles mesmos haviam criado. Ao longo do jogo, conforme
interagiam com o cenário e com as situações propostas por mim, cada um foi
descobrindo poderes e habilidades especiais (que já tinham, mas desconheciam)
que iam acrescentando em suas fichas.
O
segundo caso aconteceu quase duas décadas depois. Em um PBF (play by forum) que
aconteceu em um fórum de uma editora de RPG nacional, desta vez como jogador, começamos
uma aventura de Mutantes e Malfeitores. Por incrível que parece o mote era
quase o mesmo. Acordávamos após uma experiência científica sem saber o que
havia sido modificado em nosso corpo. Ao longo da aventura íamos descobrindo
nossas capacidades e nossas novas habilidades. Neste caso as fichas já haviam
sido previamente criadas por nós mesmos, mas como todos éramos experientes de
longuíssima data, conseguimos entrar no espírito da aventura sem criar qualquer
problema. Foram alguns anos de muita aventura e uma ótima experiência.
O
que proponho? Proponho uma nova experiência para os jogadores de suas mesas.
Imaginem aventureiros que desconhecem suas capacidades, qualidades e
conhecimentos por qualquer motivo escolhido. Como eles agiriam em um mundo seja
de fantasia medieval, seja de ficção científica? A experiência imersiva não
estaria apenas na relação dos jogadores com o ambiente, mas também na busca de
um autoconhecimento. Percorrer uma dungeon com seus perigos e armadilhas sem
saberem exatamente o que têm capacidade de fazer e como. Entrar em uma luta sem
ao certo saber se será capaz de enfrentar o perigo proposto. Tentar persuadir
alguém sem imaginar sem tem esse dom.
Sim,
usei a palavra “dom” não por acaso ou por falta de vocábulo melhor. No latim
dom (dōnum) significa dádiva ou doação. Ora, nossos jogadores são agraciados,
em última análise, com a dádiva de terem capacidades
especiais extraordinárias em graus variados – seja no manejo da espada, da
pistola laser, do arco, da gazua, da lábia, de superpoderes, do sabre de luz,
da inteligência, do machado, etc. Eles possuem esses dons e os desenvolvem a
partir do uso em suas aventuras. Nada impede que descubram possuir outros ou
aprendam de forma mecânica. Não temos um manual do usuário para saber quais
nossos dons e seus graus de desenvolvimento. Nos acostumamos à testá-los até os
dominarmos da forma mais ampla no melhor estilo de tentativa e erro. E é exatamente
isso que proponho - lançar seu jogador em uma jornada de aventura, mas também
de busca de si mesmo.
Como
fazer isso? Vou dar aqui duas dicas que os mestres podem adequar aos seus
grupos, conforme o perfil de seus jogadores. A primeira delas é deixar os
jogadores no escuro. Eles não têm acesso à sua ficha completa ignorando tudo ou
partes do que podem fazer ou saber. Algo como se estivessem sofrendo de amnésia
(o plot da aventura se encarregará disso). O mestre rolará os dados conforme os
jogadores decidem suas ações no decorrer da aventura. Notem que é muito
trabalhoso, mas isso deixará os jogadores centrados na interpretação e ação de
seus personagens. Conforme a sessão se desenrola as informações vão sendo “descobertas”
pelos jogadores numa clara estratégia de tentativa e erro.
A
outra possibilidade, mais adequado à grupos de jogadores experientes ou que
tenham o perfil de não estragar a brincadeira, seria deixá-los cientes de sua
ficha mas com destaque para as lacunas que os personagens “ignoram” e que serão
“descobertas” ao longo da aventura. Aqui não haverá necessidade de “esconder” a
ficha ou do mestre jogar pelos jogadores, pois o mote será a interação do grupo
e a interpretação dentro da aventura.
Independente
da opção que você escolha, o certo é que isso deve ser introduzido com todo o
cuidado. Leve em consideração algumas coisas:
-
Uma aventura como esta tem de ser preparada com todo o cuidado. Note que a
intenção não é testar a capacidade de sobrevivência dos jogadores e sim
possibilitar sua evolução. Um mestre sem muita noção disso, pode erroneamente
achar que a aventura deve apenas testar os limites e sorte do grupo. Errado.
Isso fará com que o grupo se desinteresse ou desanime. A intenção não são
mortes prematuras.
-
Avalie bem em qual grupo de jogadores introduzir esse estilo de jogo. Muitos
jogadores não gostam de áreas cinzentas. Você como mestre tem um bom
entendimento e conhecimento do grupo. Use-o.
-
Esteja pronto para enfrentar uma gravitação do grupo ao redor do menor risco.
Eles estarão sem base e segurança para enfrentar cada desafio – seja luta ou
enigma. Estimule-os ao contrário com quests adequadas (veremos isso adiante).
-
Outro problema é a possibilidade de passividade grupo frente ao incerto (ou ambiente
aberto demais). Normalmente quando não há diretrizes específicas – uma jornada
indicada por um velinho na taverna, por exemplo – um grupo de jogadores tende a
perder interesse ou se dispersar em temas e quest inexistentes ou fantasiosas.
Mas
como efetivamente introduzir uma aventura nesses moldes e como proceder no
transcorrer do jogo? A introdução é a parte mais fácil e é resolvido com plot
interessante. O mais indicado é que seja em um novo jogo, já que seria muito
difícil fazê-lo no transcorrer de uma aventura – embora possível. Se você
pretende que o desconhecimento da ficha e a jornada de autoconhecimento seja o
elemento central da aventura eu sugiro uma campanha curta, não tão curta à
ponto de ser um one-shot, nem tão longa a ponto de tornar-se cansativa e
enfadonha para o grupo com uma jornada
interminável. Pense em algo que culmine com a descoberta de tudo com o clímax
de enfrentamento de uma ameaça. Se a escolha for uma aventura longa eu sugiro
que use a amnésia como um arco dentro da campanha onde descobrir sobre a ficha
(o autoconhecimento) é apenas um passo no caminho para enfrentar e vencer o
nêmesis ou antes da próxima quest do grupo.
A
questão da ficha precisa ser vista
com atenção. Nas duas experiências que relatei – uma com os personagens
desconhecendo totalmente suas fichas e noutra com as fichas abertas, dependendo
apenas de nossa interpretação – o resultado foi satisfatório, mas correndo
grande risco de não funcionar adequadamente. No primeiro caso, uma ficha totalmente
às escuras, pode ou levar tempo demais para ser descoberta pelo jogador ou
tornar-se desinteressante. Felizmente naquela situação o meu interesse era com
os superpoderes (do meu suplemento novinho de GURPS) e me importei mais em
incentivar sua descoberta. No segundo caso relatado, com a ficha de
conhecimento dos jogadores e dependendo de nossa interpretação e interesse em
manter o jogo, o perigo residia nos jogadores manterem o foco ou não na
proposta – que naquela situação foi perfeito. Atualmente acho que a melhor
estratégia é a utilização de um esqueleto de
ficha (parafraseando o mestre John Four).
O
que significa isso? Vamos adotar um meio termo. Forneça aos seus jogadores
fichas parciais. Imaginando sistemas como Old Dragon, Pathfinder, D&D e
outros que tenham uma mecânica e sistemática semelhante, uma boa opção é que as
fichas tenham pelo menos os atributos básicos, mas não muitos exagerados
naquele que será fundamental para o personagem. Deixe os valores próximos para
causar pelo menos um bom grau de incerteza. Não forneça valores de salvamentos
(à não ser que queira facilitar um pouco) ou índices de ataque, defesa ou iniciativa.
Apresente algumas perícias – aquelas que não deem dicas exageradas sobre o todo
da ficha. Feitos e semelhantes também podem ser uma dica, então forneça (ou
apresente) apenas aqueles são mais genéricos. O uso da ficha parcialmente
preenchida será uma pequena âncora de certeza para os jogadores. Além disso,
com essa base, eles terão melhor condição de ponderar com um pouco mais de certeza
sobre a sua ficha.
A
descoberta dos elementos obscuros da ficha não possui mistério. Conforme o jogador vá ultrapassando os desafios
propostos, acrescente à sua ficha os detalhes “novos” da maneira que você
considerar mais divertido para a aventura. Você pode simplesmente acrescentar
de forma direta o novo elemento, ou pode acrescentar aos poucos, conforme o
desafio ou necessidade aumentam.
A
forma de proceder ao longo do jogo também requer alguns cuidados. Como eu já
disse esta é uma opção que dependerá muito do grupo que você tem em mãos, mas
se for um grupo que aceite bem essa novidade, a fórmula do sucesso se chama
‘preparo’. É muito fácil perdermos o controle da ação ou transformarmos os
jogadores em coadjuvantes em sua própria aventura, onde passivamente eles
esperem que as coisas aconteçam ou se resolvam. Mais do que nunca a aventura
tem de estar desenhada para se encaixar neste estilo.
Tenha um esquema de como você pretende que as
descobertas aconteçam. Não é um pré-determinismo da aventura, pois isso a
tornaria previsível e chata, mas tenha em mãos uma linha das situações que
desencadearão as descobertas para os aventureiros.
Planeje os encontros e situações-chave
que revelarão os elementos das fichas de cada personagem. Isso tem de ser bem
planejado, pois se cada situação puder ser resolvida simplesmente pelo combate
todos acharão que são apenas guerreiros. Ao mesmo tempo, se as situações forem
todas resolvidas sem combate e com enigmas, eles poderão imaginar serem
ladinos... e por aí vai. O certo é que as situações precisam que todos os
membros se envolvam para que um deles (ou mais) acabe despontado.
Não
tenha medo de ajudar os jogadores interferindo na aventura se
a situação assim pedir. A ajuda não precisa ser direta. Ela pode vir com
pequenas dicas em situações que o personagem vê (“isso não parece estranho para você!” ou “você sabe que isso está sendo feito errado” ou ainda “não é assim que se usa isso!”) ou pode
vir por meio de flashbacks. O importante é lembrar que mais do que nunca o
importante é a jornada que está sendo percorrida.
Para
encerrar lembre que o fim último do RPG é a diversão. Proporcione uma boa
experiência aos seus jogadores. Bons jogos!