Terceiro dia de Lunaluz de 1392
É incrível que eu tenha conseguido escrever em meu diário dois dias seguidos. Fazia meses que isso não acontecia. Paramos nossos treinamentos três dias atrás quando fomos informados por nosso instrutor, Sir Tussan, de que teríamos nossa primeira missão. Embora fosse uma missão burocrática seria a primeira vez que andaríamos pelo reino como aspirantes ao posto de cavaleiro.
O treinamento tem sido duro. Logo que fui agraciado pelo auxílio e tutela de Sir Tussan fui encaminhado para a Academia de formação de cavaleiros. É impressionante a quantidade de aspirantes dentro da academia, ou cadetes como eles gostam de se autodenominar. Ali será nossa casa por um longo tempo.
A formação de um cavaleiro é muito díspar. Alguns cavaleiros simplesmente pegam um jovem e o instruem durante suas jornadas e aventuras. Esses normalmente são aquelas têm uma vida mais itinerante. Outro modo de formação de um cavaleiro é ele seguir na Academia. Esta segunda forma é utilizada quando o cavaleiro que tutela o cadete reside ou está sediado na cidade de Norm. Assim ele tem um treinamento técnico na Academia, sem perder o contato e a instrução com seu senhor.
No meu caso Sir Tussan está longe de ser uma alma aprisionável, muito menos de se submeter à um posto burocrático. Ele vomitaria impropérios sobre qualquer um que lhe sugerisse isso. Mas como ele possui alguns assuntos pendentes em Norm, ele passará sediado lá um certo tempo saldando essa dívida de honra e amizade. Assim ele achou bom que eu freqüentasse, pelo menos por enquanto, a Academia. E é o que estou à fazer.
A Academia é uma amostra do que se encontra por aí quando se fala em cavaleiros. A grande maioria são filhotes da nobreza, com suas armaduras e armas caras e narizes empinados. Esses aspirantes vem para cá seguindo a ‘tradição’ da família vislumbrando altos postos e ganhos. Normalmente são de famílias que vivem em Norm e, por isso, se torna compreensível que freqüentem a Academia ao invés de aprenderem na prática do dia a dia de aventuras. Poucos são aqueles que não se enquadram nessa mesmice empolada. Dos vinte e tantos cadetes vindos de famílias ricas conta-se apenas três que são de uma origem mais humilde ou vislumbram algo de diferente da vida de cavaleiro. Neste grupo estamos eu, Gustav e Arlan.
Gustav veio Deheon tentando seguir o sonho de seu pai que sempre sonhara em ser um cavaleiro mas que a vista ruim não lhe permitiu ser. Já Arlan é filho do reino de Tyrondir. Ele está aqui por uma questão muito mais prática, servir na defesa de sua terra natal contra as hordas da Aliança Negra que investem contra suas fronteiras. Cada um, assim como eu, possui um cavaleiro como tutor dotado de grande honra e respeitado mais pelos feitos que pelos títulos. Tivemos sorte.
Assim correram os meses de treinamento. Muito exercício físico no início. Eu mal conseguia erguer uma espada de lâmina um pouco mais robusta nos primeiros dias. Hoje já a sustento com certa facilidade. Junto com as horas intermináveis de exercícios aprendíamos técnicas de combate e manejo de armas variadas, mas ainda de forma rarefeita. Além disso, freqüentávamos seguidamente o grande templo de Khalmyr ouvindo as palestras de sacerdotes e iniciados sobre os desígnios do deus da justiça. Ao fim da tarde e noite ficávamos ao serviço e orientação de nossos tutores. Como Sir Tussan, Sir Argnal e Sir Thelleon, meu tutor e de meus amigos, eram também muito próximos, passamos muitos momentos treinando entre nós seis, juntos. Isso criou muito mais do que uma ligação entre professores e aprendizes, mas criou laços. Fortes e resistentes.
Por este longo período de treinamento, termos a oportunidade de deixar a cidade para uma jornada, era demasiado atraente. Eu sempre tive uma vida livre percorrendo os campos de Namalkah cuidando dos cavalos da família. Está sendo muito desgastante esse longo período dentro de uma cidade tão grande quanto Norm. A viajem que iniciará amanhã será desopilante.
Sir Argnal nos informou durante o dejejum que estavam selecionando uma comitiva para representar a Academia de Cavaleiros da Luz de Bielefield na grande feira de Tollon e que ele nos havia indicado. Seriam vinte e cinco alunos, cinco cavaleiros e um professor, além de alguns sacerdotes do deus da justiça. Algo totalmente burocrático, mas que serviria como uma ótima experiência inicial para cadetes tão crus quanto nós.
Fizemos festa como crianças pequenas que ganham um brinquedo muito aguardado, e passamos o dia inteiro comentando sobre o fato. Os riquinhos já estavam planejando como representar suas famílias, impressionar filhas de clãs ricos da região e outras dessas bobagens. Nós três estávamos pensando na diversão, na honra de colocarmos nossas armaduras pela primeira vez e no orgulho de levar o brasão da espada e do escudo sobre a túnica branca.
À noite, agora pouco antes de me retirar para meu aposento para escrever antes de dormir, tivemos uma reunião com nossos tutores para receber informações sobre como proceder na jornada de amanhã. Mas acabou virando uma animada conversa no início. Sir Tussan e Sir Argnal lembraram da última vez que estiveram nas terras da madeira mágica e de como consumiram quase um barril de cerveja anão envelhecida em vasilhas de madeira de Tollon. Depois disso não se lembram nem como chegaram aos quartos. Já Sir Thelleon só sabia repetir como as mulheres da região eram fartas e belas, com crinas negras e cheiros gostosos, e de como arrancou muitos suspiros em suas estadias por lá. Todos rimos muito enquanto bebíamos canecas de um chá que era uma das especialidades de Sir Argnal, vinda dos elfos, segundo ele.
Na segunda parte da conversa, mais séria, fomos orientados da honra que estávamos ganhando em representar nosso deus, Khalmyr, numa jornada deste tipo. De que deveríamos levar as marcas do deus sobre nosso peito como se fossem a nossa verdadeira pele e que deveríamos viver seus ensinamentos em cada passo que déssemos, prezando a justiça e a verdade acima de tudo. Não importava o que outros fizessem ou dissessem. Nós éramos cavaleiros e deveríamos provar isso com todo o nosso ser.
As palavras entusiasmadas, embora comedidas, dos três tutores tocavam fundo em nosso peito. Por mais de uma vez tive a impressão de sentir o amuleto que meu avô me deu antes da vinda para Norm como se aquecido. Deve ter sido apenas impressão.
Estou escrevendo agora, antes de dormir, mas apenas consigo pensar no dia de amanhã. Espero o dia de poder contar essa primeira aventura para minha família ao redor da lareira da sala de casa.