Dicas do Mestre
Eu não quero salvar o
mundo
Esse
é um debate que muito se tem feito em rodas de conversas sobre RPG. Por que
existe a necessidade quase que insaciável das aventuras de RPG serem
construídas sobre eventos cataclísmicos, apocalípticos ou que atinja todo o universo?
Quando
damos uma boa olhada nas mesas em qualquer evento nos deparamos com uma grande
quantidade de salvadores do mundo. Os grupos de aventureiros enfrentam deuses,
seres celestiais, demônios ou implementos científicos que invariavelmente tem
por objetivo destruir tudo. Uma falha do grupo resultará no fim da existência
não só deles, mas de tudo e de todos.
Alguns
artigos de fora têm debatido sobre essa necessidade de aventuras que joguem o
grupo em uma arena para realizar coisas digna de deuses. E isso não é culpa dos
mestres. Os jogadores já procuram mesas com a intenção de encontrar jogos com
este mote. É quase uma cumplicidade. Mas a grande questão é – isso é realmente
necessário para um bom jogo de RPG? A resposta é não, e todos sabem disso.
Para
vermos rapidamente esse assunto vamos passar por dois pontos – o por quê e uma
alternativa.
O
por quê? Ora, seria um pouco de presunção minha ter a resposta pronta e acabada
para isso. O que tenho são impressões retiradas de observação e debates.
Tenho
visto nas mesas de RPG um quase transporte do que vemos na sociedade como um
todo, e quando falo isso me concentro no Brasil é claro, mas muito bem poderia
ser adequado à qualquer sociedade ocidental. Não é de hoje que temos vivenciado,
que para a maioria dos rpgístas, o que interessa é a chegada, o climax, o final
e, além disso, a vitória incontestável. A jornada, o caminho percorrido, parece
ter caído no esquecimento. Não por menos que muitos rpgístas 'das antigas'
reclamam da falta de apreciação e interesse de muitos das gerações mais novas
em passar por todo o processo tanto de roleplay quanto pelo necessário
desenvolvimento do personagem. Tenho para mim que o lançamento da D&D 4E
foi quase que um erro de entendimento desse cenário do mercado por parte dos executivos
e designers da Wizard, mas esta é uma outra discussão.
De
qualquer forma esta característica é bem clara. Como professor eu tenho
percebido que o brasileiro tem duas grandes dificuldades – a derrota e a falta
de espetáculo. Não é admitido ser derrotado. Temos quase que tatuada a visão de
que não importa de que forma, mas temos que sair vencedores, ou pelo menos
temos que ser mais do que os outros. E não só isso. Para a grande maioria não
basta ser vitorioso, mas tem de ser uma vitória avassaladora, com direito à
espetáculo, show, além de ovação e reconhecimento por todos.
Muitos
rpgístas se perdem em horas de estudo para que seu personagem seja o mais motherfucker de todos, quebrando os
recordes de combos e totais de dano causado. Mesmo que ele seja de um nível
inicial, ela terá combos inconcebíveis, embora possíveis, pois ele não pode ser
igual... ele tem de ser o melhor. Os backgrounds, que normalmente deveriam ser
um ponto de partida para um personagem, passam a ser o resultado de um
personagem que foi construído artificialmente e as fichas são apresentadas e
esfregadas nas caras dos outros com uma arrogância e orgulho disfarçados de humildade
e camaradagem.
Com
este contexto fica óbvio que os rpgístas, não todos é claro, não pretendem
gastar seu tempo, ou seu personagem ultra-ultrapoderoso em uma aventura que não
lhes renda os louros devidos da vitória, além do reconhecimento que ele espera,
e tudo isso para ontem!
Isso
também não é possível com aventuras de pouco impacto ou que não sejam realmente
relevantes. É uma situação que espelha e corrobora muito bem a noção de que
além do sucesso, eles precisam estar acima dos outros e dando espetáculo. Isso
é consciente? Acredito que sim. Isso está enraizado no modus operandi da
sociedade brasileira muito profundamente.
Quais
os problemas que temos com este tipo de procedimento? Podemos colocar alguns.
Quando temos jogos assim estamos simplesmente banalizando o elemento “épico”
das aventuras. Ora, se tudo é épico, nada na realidade será épico. Com isso
perde-se muito a possibilidade de evolução de uma aventura. Começar uma
aventura “por cima” obriga-a a ser horizontal, fazendo-a manter sempre sua
estrutura e impossibilitando que o mestre a leve para patamares superiores
(ora, já estamos no clímax dela!). Isso engessa as possibilidades do mestre e
acabará por torná-la chata e relativamente curta. Um exemplo que pode parecer
banal são as aventuras de Harry Potter. Embora ele tenha começado a série de
livros como uma criança, os desafios e problemas eram condizentes com ele,
embora seu nêmeses fosse o todo poderoso Valdemort. Com o desenvolvimento e
crescimento do personagem também foi crescendo a dificuldade, o perigo e a
abrangência da aventura, culminando em um verdadeiro clímax épico que poderia
mudar todo o mundo... e tudo na hora certa. Agora imaginem se tudo começasse
com o último livro/filme? O impacto sobre nós seria muito menor ao mesmo tempo
que não comportaria tantos livros/filmes, impedindo que a história fosse
contada como deve para ser apreciada por todos. Com uma história já ‘épica’,
para onde iremos depois de um tempo? Para onde a desenvolveremos?
Um
segundo problema é com a relação jogador/personagem. Quando começamos com um PC
desenvolvido e poderoso temos a tendência de não nos apegarmos tanto à ele pois
já o recebemos acabado. Tememos por sua morte? Sim, mas por que não queremos
colocar fora algo tão precioso e poderoso. Temos uma proximidade muito maior,
verdadeiramente o adotamos, quando participamos de seu desenvolvimento. Com
isso temos a possibilidade do estreitamento de laços, de forma que nos
preocupamos com os perigos que ele corre, com as escolhas que ele fará para seu
desenvolvimento e evolução e lutando para mantê-lo vivo.
Juntando
esses dois elementos – desenvolvimento da história e desenvolvimento do
personagem – nos possibilita chegar à um terceiro elemento. Em menores escalas
podemos aliar o desenvolvimento do personagem com um microuniverso onde podemos
dar rosto para aqueles que desejamos ajudar. É muito mais proveitoso quando
sabemos exatamente quem estamos ajudando, salvando, ao invés da
descontextualização de um universo/nação inteiro. O impacto, em um jogo bem
conduzido, faz com que criemos um sentido de responsabilidade que possibilitará
uma maior afinidade de nosso personagem com o problema a ser resolvido. Da
mesma forma, se enfrentamos um adversário, esse conflito será muito mais impactante
do que se enfrentamos, fora do momento certo, algo grandioso.
Tudo
isso que proponho como debate aqui visa, é claro, quando pensamos em campanhas.
As nossa seções one-shot possuem um outro foco – serem rápidas - e por isso mesmo nos impõe outro tipo de
tratamento e enfoque. Mas quando pensamos em campanhas, é imperativo que as
vejamos além do clímax, mas sim como um caminho a ser percorrido para que sua
conclusão não seja em vão. Você, como mestre, prepare aventuras mais
direcionadas ao desenvolvimento do personagem à longo prazo, possibilitando,
com isso, que o personagem desenvolva-se aventura após aventura, criando um
vínculo com o jogador. É mais trabalhoso? Sim! Será mais proveitoso? Com
certeza!