domingo, 1 de abril de 2018

Desilusão com a comunidade de RPG... ou ainda há espaço para desilusão?


Desilusão com a comunidade de RPG...
...ou ainda há espaço para desilusão?


Vamos ao tema mais que necessário do momento. Durante essa semana, tivemos uma postagem muito esclarecedora e clara da Cecília Reis Braga em sua conta particular do Facebook. Nessa postagem ele narrava sua atual relação com o meio de RPG e o quanto essa relação à estava desgastando – assim como à muitas outras pessoas. O motivo desse desgaste é algo que já comentamos muito aqui na Confraria.

Leia abaixo a postagem da Cecília:

O vídeo do Luciano me colocou pensando na minha estafa geral com RPG. Já faz mais de ano que rolaram as coisas que me afastaram, mas ainda assim eu não venci o cansaço pra produzir mais coisas pra esse meio.

O problema do RPG é que a comunidade vocal é bem meh, saca? Tirando a galera que rodeia esse povo que fala e discute espaços seguros, que são produtores e militantes muito carinhosos e respeitosos, na medida do possível, o resto é... cansativo. Você passa seis meses, um ano, fazendo o treco, com todo o stress que "fazer trecos" envolve, que é se desdobrar pra arranjar tempo livre, pesquisar, escrever, deixar de pegar freela pra não ficar doente com tudo isso, superar a insegurança, aguentar o conjuge segurando firme pra não dizer que ta com saudade de passar tempo com você, pagar revisor... Você posta, tem tipo 30 downloads, um silêncio ensurdecedor... Eu ainda dou a sorte de não ser alguém polêmico e que não chove hater na minha vida...

Eu postei meu compendio de fantasia urbana, teve cinco comentários positivos e, sem brincadeira, 40 discutindo adaptar Mundo das Trevas pra Savage. E nenhum deles nem deu uma olhada no material nacional grátis que tava ali.

E quem quer se profissionalizar com isso vê uma discussão de 600 comentários de gente reclamando desse desejo.

Esse ano eu perdi uma amiga que passou anos produzindo pra RPG e convivendo com a pouca recompensa de fazer isso. E a ida dela colocou muita coisa pra pensar. Tipo, sério, que vontade que dá de usar a pouca energia que a gente tem, todo o stress de superar todas as neuras, pra produzir pra isso, saca? Vale a pena?

Eu não preciso do tutorial de ninguém de como produzir, como aquele tal Diogo parecia super disposto a dar. Eu faço algo, ainda que seja cinco minutos na hora do almoço, todos os dias, de algum projeto. Ultimamente tem sido artesanato e literatura. Compensa mais.

Edit 1: Então assim, antes de falar bosta de pq "minoria não produz", tenta entender por quê” [link]

Recentemente abordei o tema quando falamos sobre a importância da representatividade africana e negra no RPG e como isso era omitido ou deturpado na grande maioria dos títulos e sistemas de RPG do Brasil e do mundo [Link]. Sejamos claros – quase proibidos. Mas dois pontos são cruciais nesta fala da Cecília e que devem ser exaltados – o mito da falta de produção das minorias e o real perfil excludente da comunidade rpgistica.

Cecília é uma produtora de conteúdo de RPG que passa pelo problema que a grande maioria dos produtores de conteúdo em RPG, quando pertencentes à minorias ou quando com produção focada em minorias passa – exclusão e incompreensão. Em seu texto ela narra dolorosamente como está se ejetando da produção de conteúdo para RPG por uma atuação perniciosa da comunidade em si. Essa é uma ação consciente de proteção de uma pessoa que está sendo vencida na batalha contra a comunidade rpgistica e de seus pré-conceitos e preconceitos. Todos temos a perder com isso!

Ela esclarece algo que todos percebemos de uma forma ou de outra – minorias não tem espaço no meio rpgistico. Mas isso é muito diferente da ilusão que a maioria da comunidade rpgistica insiste em acreditar de que as minorias não produzem. Quando falo em minorias falo em mulheres, negros e toda a comunidade LGBT. E não só produtores de conteúdo dentro deste perfil, mas também quem produz centrado em temas ligados à esses perfis.

Minorias produzem sim e isso não é um fenômeno recente. A noção errada de que a produção de minorias e para minorias é rarefeita ou recente é sintomático de uma sociedade que é excludente em sua raiz. E o RPG espelha isso da pior forma possível. O meio está acostumando com sistemas e cenários que privilegiam um perfil padrão que acaba por tornar-se o exemplo do que seria “o correto”. E isso não é uma característica “de fora”, mas do meio como um todo... quase uma característica do hobby. Essa mesma característica do RPG em sua gênese o fez ingressar pelo alto na sociedade e no Brasil isso não foi diferente. Ora, é só puxarmos pela memória e lembrarmos de como o RPG ingressou no Brasil. Aquele nosso amigo (ou o amigo do amigo) que tinha trazido de fora um “jogo” que era novidade, em inglês e que precisava ser importado e traduzido.

A era Xerox tinha início... e isso não fez do jogo mais inclusivo já que ainda assim estava centrado em um perfil da sociedade, aquele perfil que tinha como ter conhecimento do jogo, que tinha como traduzir o jogo ou mesmo que tinha como arcar com a cópia do jogo. Isso criou nichos específicos e muito bem delimitados, nichos esses que apenas foram se fortalecendo e aumentando seus muros ao longo do tempo. Qualquer um que desejasse entrar nesse mundinho fechado e que não fosse do perfil “nerd padrão” acabava por ter que provar diariamente que merecia estar ali, nem que fosse pela benevolência dos rpgistas do grupo.

Todo esse modus operandi da comunidade rpgistica acaba por se refletir na visibilidade de tudo o que está fora “do padrão”. A parcela consumidora dos rpgistas não tende a procurar por uma produção que não se encaixe naquilo que estão acostumados a consumir, consumo este regrado por esse mesmo modus. Ao mesmo tempo, editoras e produtores de conteúdo não tendem a ser muito incisivos em trabalhar ou investir naquilo que está fora do “perfil padrão” tanto por meio da repercussão quanto por causa da visibilidade que esse tipo de ação causa. Para ser ainda mais direto, vemos muita indignação de editoras e pessoas de “renome” no meio, mas pouca ação concreta, permanente e construtiva. O resultado é que temos uma produção (de e para minorias) que passa desapercebida da grande maioria da comunidade rpgistica, criando a impressão de que essa produção é rarefeita, quando na verdade ela anseia por mais espaço.

Um segundo efeito extremamente desagradável é a falsa impressão de que falta conhecimento para que essas minorias tenham sua produção visível e atingindo o grande público. Desculpem-me se exagero no uso do termo, mas é quase como se a comunidade rpgistica padrão se valesse do mansplaining para “mostrar para as minorias como elas devem fazer”. É uma incrível demonstração de superioridade que apresenta-se de forma assustadoramente natural e, muitas vezes, inconsciente (sugiro uma lida na retratação de um rpgista que respeito muito e que percebeu seu equívoco neste caso – Link). Não falta qualidade, criatividade e conhecimento para a produção dessa parcela que representa as minorias – falta espaço sem preconceito e condições de exercerem seu desejo de produzirem.

Quem acompanha o meio rpgistico à mais tempo, digamos décadas, sempre se deparou com um ambiente machista e excludente... isso não é novidade agora, nem nunca foi. Os não tão recentes debates sobre ambientes seguros não são um movimento novo, mas uma agenda de um grupo que cansou de sofrer. Volta e meia fico sabendo de pessoas do meio, todas pertencentes à essas “minorias”, que estão desistindo, deixando de participar, que estão entregando os pontos, pois aquilo que deveria ser motivo de realização, alegria e empoderamento esta se tornando doloroso e até traumático. Estamos perdendo muito com isso ao perdermos o material produzido que com toda a certeza enriqueceria a comunidade rpgistica. Mas estamos perdendo ainda mais ao deixarmos de lado a possibilidade de sermos uma comunidade agregadora.

A pergunta que vem depois dessa fala é óbvia: Como mudar isso?

As respostas não são fáceis, mas são atitudes possíveis. Primeiramente, e antes de tudo, algo simples, uma palavrinha que parece ter perdido muito do seu sentido nos últimos tempos – respeito. Pode parecer piegas, mas é a pura verdade. Quero dizer respeito ao outro, respeito ao diferente de você, respeito àquilo que possa inicialmente fugir do que você – cara pálida – considera “normal”. Tenha respeito à produção do outro, tenha respeito ao alvo da produção do outro, respeito ao tema da produção do outro e àquilo que o “outro” eleja como prioridade. Apenas isso já seria uma revolução significativa. Esse é um conselho geral, fora do simples RPG, algo para o dia a dia neste mundo conectado... e que claro, influenciaria nas relações dentro do RPG.

Pensando em RPG há algumas iniciativas que poderiam ser adotadas. Falando diretamente: mais ação das editoras. Os discursos de apoio poderiam ser substituídos por ações concretas. É muito bonito editoras e selos apoiarem lutas sem arregaçarem as mangas ou colocarem a cara à tapa. Chega de tokenismo nesses assuntos e vamos promover uma verdadeira integração em que a linha de corte seja apenas a qualidade e a criatividade e não a cor ou gênero de quem produz, ou o status da editora frente seu “cliente padrão” e muito menos o alvo “padrão” de seus produtos.

Está na hora das editoras e selos pensarem na comunidade rpgistica como um todo em que mulheres, negros e a comunidade LGBT também desejam serem representados e estarem presentes, onde possam sentar em uma mesa de jogo sem ter a necessidade de criarem regras de última hora para poderem ser eles mesmos em um grupo de aventureiros. E que isso seja abordado nos sistemas e cenários nacionais de uma forma respeitosa e não como uma nota de rodapé ou box de canto de página. Onde os cenários que tenham ligação com esses grupos e que sejam respeitosos e não um fan service para a comunidade atual que já tem tanto ao seu dispor.

Também está na hora de percebermos que a omissão e, mais do que isso, a falta de reação real, são formas de reforçar as ações excludentes e preconceituosas. Editoras e autores em RPG têm de perceber sua responsabilidade quando seu produto é usado como fonte de desrespeito, preconceito ou fomento ao ódio, assim como os produtores de eventos de RPG devem ficar atentos às ações negativas (que são muitas) que ocorrem em suas atividades. Queremos ver mais ações positivas como a do projeto Jogarta, que realizou uma retratação pública após uma ação de transfobia em uma mesa em um evento promovido por eles [Link].

Outra forma muito interessante na qual o RPG pode começar a solucionar esse problema é promover nos eventos regulares espaço para um debate real e aberto desses problemas, com pessoas reais que os vivenciam e que sofrem com isso. Isso já tem melhorado aos poucos, mas ainda estamos engatinhando neste tipo de abordagem. Ainda vemos os mesmos rostos fazendo os mesmos discursos sem ampliarmos realmente o debate. Embora eu saiba que os eventos servem realmente para promoção e lançamento de sistemas, autores e cenários, seria bom que ele mudasse seu foco para servir ao RPG e não à editoras. A comunidade rpgistica deve ser confrontada com esse problema para que aqueles que o promovem se sintam acuados, e para aqueles que reproduzem essa prática sem noção real de seus atos, sejam alertados. Fala-se tanto em profissionalização do RPG, e muitos inclusive brincam e fazem pouco desse termo, sem pensar que bons eventos são muito mais do que mesas e mais mesas de jogo (normalmente para promover sistemas, cenários ou editoras). Eventos de RPG deveriam ser o momento para debate, discussão e aprendizado, para troca de experiências reais e solução de problemas igualmente reais. Deveriam ser o momento para integração de todos os membros da comunidade como um só corpo em um amálgama. Isso seria a real profissionalização do RPG. Infelizmente eles ainda são personalistas, excludentes e corporativistas.

Muitos podem dizer – “ah, esse assunto de novo!?”. Sim, esse assunto de novo, pois não temos melhorado muito. Os erros têm sido repetidos. As ações têm sido superficiais, quando ocorrem. E muitos ainda parecem surpresos quando tocamos nesse assunto. Não quero mais ver amigas (mesmo que digitais) dizendo que abandonaram o meio do RPG por esses problemas. Não quero ver amigos que mesmo não tendo sofrido esses horrores preferem se afastar, pois ver outros sofrendo os enoja. Não quero ver mulheres editoras se afastando do meio e de nosso convívio, pois seu trabalho, traduções e opiniões de qualidade não agrada à uma parcela masculina e machista. Não quero ver minha amiga e colega transexual tendo medo de exercer aquilo que tanto ama – mestrar RPG. Não quero ver um de meus melhores amigos, negro, tendo de se contentar com um sistema e cenário que não o vislumbra como personagem real. Não quero ver mais esse debate como uma pauta necessária, pois isso poderá significa que as coisas estão começando a ser ajeitar.

Desculpem pelo tom ácido e irritado em algumas passagens, mas sempre vi o RPG como uma maravilhosa oportunidade de expor nossa criatividade, como uma forma de visitar outros mundos e, mais do que tudo, uma forma de diversão universal.

Bons jogos!