segunda-feira, 23 de março de 2009

Diário de um Escudeiro - 21

Dia do Duelo de 1392.

Desde os primeiros olhares do deus Azgher que as trombetas de tempo em tempo aludiam sobre o dia especial. Toda a cidade acordara cedo e isto era evidente por todo o burburinho vindo da rua. Nem parecia o clima de uma cidade bem no meio de Yuden. Por mais que seus habitantes não concordassem, a enxurrada de estrangeiros e a excitação pelas disputas do dia transformavam o ânimo de todos.

Meu senhor, logo após alimentar-se pela manhã, já iniciou sua preparação para as festividades do dia. Disse-me apenas que eu deveria estar impecável, assim como a sua vestimenta.

Ainda era cedo da manhã quando saímos em direção à grande arena. Parecia que todo o povo ia para a mesma direção. Todos procuravam o mesmo caminho. Conforme íamos chegando à arena escutávamos cada vez mais gritos e vivas da festividade.

A arena era uma estrutura de linhas relativamente simples – como tudo por aqui – e de madeira, mas enorme. Tinha facilmente a altura de três casas. Pelo visto fora construído apenas para a festividade.

Haviam muitos cavaleiros de Khalmyr, aqui e ali, afinal as principais disputas seriam entre eles e representantes de Keenn. Os estandartes de Yuden ornavam toda a volta da enorme arena e mais dois – de tamanho um pouco maior – estavam de cada lado do portão de entrada.

Quando entramos todo gigantismo daquela arena de madeira se abriu para mim. No seu centro uma disputa já estava sendo concluída. Dois cavaleiros – um de Keenn e um Khalmyr – colocavam seus pontos de desacordo em ordem. A torcida feita em sua grande maioria de yudeanos convulsionava em delírio com cada golpe desferido por seu compatriota. Próximo haviam o que pareciam ser os juízes. Eram três paladinos vestidos em suas armaduras – um do deus da guerra, um do deus da justiça e um de Tanna-toh.

Após alguns minutos de luta o representante de Keenn consegue desarmar e derrubar o cavaleiros de Khalmyr. Nisso a luta para. Os dois permanecem em suas posições muito ofegantes. O paladino de Tanna-toh move-se na direção dos dois e proclama:

“- Eis mais uma luta encerrada! A contenda foi finalizada antes que o último grão descesse na ampulheta” – ele gritou enquanto o público permanecia em silêncio – “meu Deus nunca mente, meu Deus é o amante da verdade e do conhecimento, então vos digo em nome de meu todo poderoso” – uma pausa – “o Cavaleiro de Keenn, conhecido por Arthyuk,s tem a vitória sobre o cavaleiro de Khalmyr, conhecido por Sir Hernnan. Que nada mais se fale de suas rixas. Que nada mais se comente sobre sua disputa” – ele levanta a mão num gesto chamando um escriba que carregava um enorme livro e uma pena com tinta – “que seja escrito como prova da verdade!”

A população que abarrotava as arquibancadas explodiu em delírio. O cavaleiro vencedor deu um sorriso de escárnio e virou-se para o paladino de Keenn e lhe fez uma mesura.

“- O que aconteceu meu senhor?” – perguntei à Sir Constant.

“- Mais uma disputa foi resolvida hoje. A primeira de uma enorme fila. Siga-me agora em silêncio” – Sir Constant começou a caminhar em direção à uma tribuna enorme. Ela era protegida por muitos cavaleiros e soldados de menor posto. Todos seguidores de Keenn – “fique quieto e não me siga agora. Estás livre para circular por aqui mas não desapareça. Tenho assuntos para resolver”.

Meu senhor apenas disse aos guardas que queria ver o representante do sumo-sacerdote de Keenn e que ele o aguardava. Uma entrada foi então aberta para ele e ele passou.

Não sabia muito bem o que fazer então resolvi subir para poder ver melhor as disputas. Encontrei um lugar alguns metros acima me dando um ótimo visual de tudo. Mais ou menos na minha frente ficava a tribuna onde meu senhor houvera entrado. Eu consegui vê-lo de longe. Ele estava sentado bem próximo de um outro cavaleiro de rosto mal encarado. Ambos pareciam cochichar.

Nem sei porque motivo, quando dei por mim, estava com o medalhão em minhas mãos.

“- Belos presentes estes que carrega consigo senhorzinho!” – o comentário quase me jogou ao chão de susto.

“- Obrigado, senhor!” – respondi e depois vi ser um representante de Khalmyr ficando sem jeito – “desculpe senhor, não percebi que era um cavaleiro, perdoe-me a insolência” – e pus-me a fazer uma reverência.

Ele gargalhou muito e me deu um tapa no ombro me deslocando do lugar – “deixe disso rapaz. Quem pensas que sou... Um empolado qualquer? Sou um cavaleiro de Khalmyr, e que eu saiba não existe nada nos códigos falando qualquer coisa sobre reverências!”

Ele me deixou sem saber o que fazer, mas aos pouco me explicou que ser cavaleiro não lhe dava nenhum título que o deixasse acima de qualquer outra pessoa. Explicou-me muitas coisas sobre o que é ser igual e sentir-se igual. Falou-me também que muitos cavaleiros acham uma obrigação dos outros de demonstrarem um respeito que ele não entendia o porque. Aquilo tudo me deixou confuso. Mas mesmo assim tivemos quase uma hora de animada conversa entre uma luta e outra que ele comentava a cada lance.

“- Senhor. Por que chamam este dia de Dia do Duelo? Por que se duela hoje?” – era uma coisa que me intrigava desde que soube deste evento, mas nunca havia recebido nenhuma resposta clara de Sir Constant.

“- Nós estamos numa época de mudança. Ontem encerrou o período de Cyd, regido pelo Deus Keenn. Amanhã inicia o período de Sallizz, regido por Khalmyr. Estamos, então, saindo de um período marcado pela violência e entrando num período de equilíbrio. Nada mais normal que passemos por um momento – hoje, no caso – em que as disputas, os problemas e as incertezas, sejam resolvidas. Khalmyr exige isso.” – disse-me o grande paladino de forma calma e prestativa.

“- E tu. Aspiras ser um cavaleiro?”

“- Sou um aspirante à escudeiro, senhor. Meu mestre é aquele” – apontei para a figura de Sir Constant ao longe, na tribuna.

O cavaleiro de Khalmyr, que acabei me esquecendo de perguntar o nome, olhou-o e teve as feições alteradas. Ele passou alguns instantes em silêncio e por fim falou – “rapazinho, como já lhe disse existem cavaleiros e cavaleiros. Qualquer um pode tornar-se um cavaleiro, mas muito poucos o são de verdade e de coração. Tenho certeza de que não lhe digo nenhuma novidade, mas muitas vezes é difícil de nós os diferencia-los. Khalmyr sabe como faze-lo, mas nem sempre nós o sabemos. Não siga ninguém pelo título, mas sim pelo coração.”

Ele parou um instante e continuou – “Mas acho que quem carrega um anel e um medalhão como esses saberá ter sabedoria.”

Eu passei o resto do dia pensando nesta conversa. O que é realmente ser um cavaleiro? Se irei seguir um pelo resto de minha vida deveria saber. Minha mente me força a pensar nas experiências das últimas semanas.

É verdade que tenho conhecido alguns cavaleiros e que existe muita diferença entre eles. Até esses últimos dias não imaginava que algo que parece ser tão simples como ser um cavaleiro e seguir os preceitos de Khalmyr pudesse gerar tanto problema.Vou descansar e tentar pensar nisso amanhã.