sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Diário de um Escudeiro - 20

Trigésimo dia de Cyd de 1392.

Tive uma noite merecida de sono. Depois dos acontecimentos de ontem meu corpo já não respondia mais. Todos os meus músculos estavam tensos ainda. E doloridos. Logo pela manhã, após aprontar a refeição de meu senhor ele disse-me que ficaríamos aqui por pelo menos dois dias, pois ele desejava ver o grande festival e resolver alguns assuntos pessoais. Deixou-me livre para fazer o que desejasse após terminar minhas tarefas com nosso equipamento, e depois que comprasse os mantimentos para o resto da jornada à Norn. Avisou-me que só voltaria à noite e saiu.

No meio da manhã, e graças às indicações do taverneiro, que era um pouco mais amistoso do que os anteriores aqui por Yuden, adquiri tudo o que precisava e aprontei todas as nossas coisas. Tinha, então, o resto do dia livre.

Queria conhecer a cidade, mas desta fez tinha claro os cuidados que deveria tomar. Este povo é muito diferente de tudo o que já havia visto e sabia que para manter-me vivo deveria estar sempre alerta e usar a inteligência. Meu trunfo é que como o grande festival do Dia do Duelo acontecerá amanhã, a cidade estaria repleta de inúmeras pessoas de muitos lugares. Minha presença não seria tão notada como foi naquela vila quase dez dias atrás.

A hospedaria em que estávamos, “Gládio Sangrento” – nome sugestivo aqui nesta terra – ficava ao lado da praça destinada para a grande feira do Dia do Duelo. Este festival é muito conhecido por toda a Arton. Ele marca o final do verão e o início do outono bem entre o mês de Cyd, reverenciando o Deus Keenn, e o mês de Sallizz, reverenciando o Deus Khalmyr.

A praça do festival era enorme. Acho que maior do que a praça dos mercadores de Suth Eleghar. Toda a sua extensão era marcada por vias cuidadosamente marcadas e medidas de forma simétrica. Todas as tendas e barracas tinham a mesma cor e haviam sido disponibilizadas pela guarda daqui. Todas cinzas. Era estranho que algo tão vivo quanto uma feira fosse de aspecto tão rude e inóspito.

Mas ainda era uma feira. E certas coisas não mudam em nenhuma feira que se preze. A gritaria era uma delas. Era uma verdadeira disputa de quem conseguia chamar mais a atenção dos clientes aos berros. Eram mercadores de várias idades e origens. Uns carregavam amostras de suas mercadorias enfiando na cara de qualquer um que passava por ali. Outros não tinham medo de pegar alguém pelo braço e quase que arrasta-lo até a sua barraca para mostrar um pechincha. Mesmo os yudeanos carrancudos não estavam livres de tais estratagemas de venda. Claro que os mercadores tomavam um cuidado mais evidente com os nativos desta terra.

Não sei quantas barracas existem nesta feira, mas com certeza precisarei de mais de um dia para conseguir visitar todas. Mesmo as tendas sendo cinzas e frias a proliferação das cores dos produtos e mercadorias inundava minha visão. E isso já era um alívio para minha mente.

Acabei por esbarrar nos conhecidos de outro dia.

“- Jovem aventureiro...” – ouvi o grito sair do meio da multidão, mas a turba me impedia de ver de onde vinha o chamado. Custei em enxergar. Mas na segunda vez consegui discernir. Era Sullion que estava sobre um enorme tonel segurando numa mão um grande pedaço de tecido cintilante e noutra algumas aljavas vazias.

Me aproximei da enorme barra de Karbos & Sullion e percebi que era umas das mais disputadas. Eles vendiam de tudo. Tinham de aljavas à Avelãs da Boa Sorte. De elmos de segunda mão à mecanismos cuspidores de fogo. Sullion só conseguiu me fazer alguns sinais mímicos representando um abraço. Karbos, de dentro da barraca, me jogou uma maça e fez um caloroso aceno. Eram realmente duas pessoas incríveis.

Claro que reencontrei meus amigos aventureiros que estavam fazendo um trabalho de vigilância da barraca. Mas eles chegaram sorrateiramente.

“- Olha só... uma miniatura de aventureiro!” – disse Trícia parando de repente ao meu lado.

- Quem diria.... tão jovem e já nesta vida!” – respondeu Mikail em resposta surgindo do outro lado.

Eles conversavam descontraidamente como se não me conhecessem.

“- É verdade... e dizem que ele já tem a reverência de todo o povo anão!”

“- Ouvi dizer que ele foi presenteado com um artefato raríssimo ao salvar todos os anões de uma cidade.”

“- É mesmo?” – Trícia exclamou teatralizando uma cara de espanto.

“- Sim.... e dizem que um dia ele será quase que tão bom quanto um tal de Mikail!” – disse Mikail não segurando as gargalhadas, acompanhado das largas risadas da aventureira.

Passei alguns bons momentos com eles. Disseram-me que Kalla já estava bem melhor e que em um ou dois dias já poderia sair de sua barraca.

Já era além da hora de almoçar e o Deus Azgher estava feliz inundando à tudo com seu calor. Depois de um lanche rápido continuei percorrendo a cidade. E acabei por esbarrar nele. De um dos lados da praça central estava lá, imponente, majestoso e gigantesco. O Templo de Keenn. Ele era frio e duro como a face do Deus da Guerra e da Luta. Keenn era impiedoso e seu templo não fugia à sua aparência. As pedras de suas paredes pareciam ainda mais fortes, mais frias e mais sem emoção.

Era um prédio cinza mais parecendo um gigantesco quartel do que um templo. Poucas janelas e todas elas afinadas e longelíneas. Não haviam adornos ou enfeites. As paredes eram lisas de uma ponta à outra. Uma longa escadaria subia desde a rua até a enorme porta principal de pesada madeira e escura feição. Era uma estrutura fria, sem adornos, tal como seu povo e seus seguidores.

De cada lado da porta principal estavam postados um par de Paladinos de Keenn. Eram rapazes enormes, mas de rosto ainda juvenil. Suas pesadas armaduras davam ainda mais altura ao seus corpos. Suas espadas de longa lâmina, seguras pela empunhadura com ambas as mãos, e equilibradas pela ponta no chão seguindo a linha do corpo, reluziam ao sorriso de Azgher. Suas feições frias e imóveis os confundiam com qualquer estátua ornamental – se é que um templo de Keenn tivesse alguma.

Era um quadro verdadeiramente imponente. Não posso negar que tudo o que está relacionando com Keenn tem uma imponência inata. De qualquer forma subi as escadas. Desta vez tentei não chamar a atenção de ninguém. Para isso nada melhor do que erguer o queixo, fixar os olhos no objetivo – que para mim era a enorme porta – e não olhar para os lados. Com pés firmes, em cada pisada, fui ao topo.

As portas eram ainda maiores de perto, assim como os quatros Paladinos de cada lado. Achei que não conseguiria move-las. Mas ao mesmo tempo em que o Templo de Keenn – o maior e principal templo desse deus em todo o Reinado – era uma estrutura fria e austera, era também um belíssimo trabalho de engenharia. A porta moveu-se macia com pouco esforço. O interior era ainda maior.

Sua estrutura interna era uma peça única indo de ponta a outra, do chão ao teto. Era impressionante. O topo quase que perdia-se no escuro das alturas. A pouca luminosidade vinda das janelas era auxiliada por tochas enormes e candeeiros suspensos aqui e ali. Os móveis eram em número rarefeito e muitos deles feitos de rocha pura.

Os sacerdotes com suas longas túnicas por sobre as pesadas cotas de malha espalhavam-se por toda a extensão deste enorme salão. As festividades do Dia do Duelo reuniam muitos adeptos deste deus, que por lógica se reuniriam aqui.

Percorri a extensão inteira do salão até alcançar o que seria um enorme trono de rocha. Não sei como, mas conseguia sentir algo. Uma energia que emanava de tudo ao meu redor. Ajoelhei-me sobre um dos joelhos para fazer uma reverência respeitosa ao poderoso membro do panteão artoniano e resolvi sair.

Quando cheguei próximo da porta ouvi uma voz – “quase me enganas-te, tu não és seguidor do grande senhor da guerra!”.

Eu gelei num instante. Uma coisa era ter enfrentado um garoto seguidor de Keenn num templo dentro de uma pequena vila. Outra seria estar na verdadeira casa deste deus e enfrentar qualquer um que fosse. Virei-me e tive uma visão que me bastará por toda a vida.

Era a mais bela das moças que já havia vislumbrado até aquele momento. Ela não deveria ter mais do que quinze anos. Vestia uma cota de malha leve sob uma veste sacerdotal branca. Um cinto negro acinturava a túnica dando contornos ao seu corpo e servindo de suporte para um gládio num ornamentado suporte. Seus olhos grandes e verdes moviam-se de forma lenta e inquiridora, sem perder aquele ar de desafio. Eles me estudaram de ponta a ponta como querendo ouvir meu silêncio. Ela andou lentamente, saindo do escuro, e aproximando-se em movimentos medidos, embora leves. Seus cabelos dançavam ao meu redor enquanto andava. Seu queixo sempre erguido em uma superioridade latente lhe daria um ar de antipatia não fosse sua beleza gritante.

Ela deu quase que duas voltas ao meu redor antes de falar novamente – “bem que tentas-te, mas não és um verdadeiro seguidor de Keenn. O que fazes aqui?”.

Eu me mantinha mudo. Não sei se o que me manteve assim era o temor por um novo combate ante um de seus seguidores ou se era paralisia frente à moça. Mas, de qualquer forma, não saiam palavras de minha boca. Eu só não queria tirar os olhos dos dela.

Ela parou, por fim, bem em minha frente. Num movimento medido e certeiro levou a mão ao meu peito e puxou meu medalhão para fora. Olhou-o por instantes de um lado e de outro - “Eu deveria saber, mais um seguidor de Khalmyr” – disse de forma desdenhosa com um meio sorriso nos lábios enquanto colocava o medalhão de volta no mesmo lugar.

Depois me olhou firme nos olhos e virou-se saindo lentamente de volta às sombras – “Saia daqui, este lugar santo não é para ti”.

“- Como soubeste que não era um seguidor do deus da guerra?” – consegui falar quase que numa súplica, mas querendo que a conversa não se encerra-se nunca mais.

“- Um seguidor verdadeiro nunca se ajoelharia nem mesmo aos pés do próprio Keenn. Meu deus não o perdoaria nunca frente tamanha prova de fraqueza. Algo típico de um deus como Khalmyr” – disse virando levemente o rosto para mim antes de sumir na escuridão.

Fiquei parado por alguns instantes antes de perceber que membros daquele templo, que entravam e saiam à todo o momento, começavam a me notar. Sai da forma mais rápida possível.

Passei o resto do dia percorrendo o mercado da cidade e os arredores da feira. Mas não consegui esquecer aquele encontro rápido. Até agora, escrevendo isto aqui em meu quarto, não consigo tirar seu rosto de meus pensamentos.Tenho certeza de que meu avô daria boas gargalhadas se lhe contasse isto.