Nono dia de Lunaluz de 1392
Esta manhã o teleporte mágico nos deixou bem no centro da praça principal de Vallahim, como era de costume. Eu notei que uma à uma cada voz foi calando frente à nossa imagem. Era o primeiro dia de torneio e a cidade devia estar com o triplo da sua capacidade de população.
Mas o silêncio não era por nossa aparição repentina. Tão pouco pela nossa imundice com as camadas de lodo e sangue seco sobre nossas armaduras. Todos nós, aspirantes à cavaleiros seguidores de Khalmyr, estávamos com seis corpos aos nossos pés. Os corpos dos seis valentes aldeões que tombaram protegendo suas terras e seus pares.
Do outro lado da praça Sir Constant e os nossos outros instrutores nos aguardavam com Platek e seus membros da guarda da cidade para saudar nossa vitória já anunciada.
O sorriso no rosto de Sir Constant desapareceu com a nossa imagem. Ele não deve ter entendido, naquele momento, o que estava acontecendo. O que deveria ser um retorno triunfante de vitória para um grupo de cadetes que haviam saído para uma missão sem maiores perigos estava completamente diferente.
Platek tomou a dianteira em nossa direção – “Ora... que bom que retornaram vivos e detentores da vitória. Isso deve ser um grande orgulho para seu senhor e seus professores” – ele fez uma pausa enquanto olhava, é verdade que com respeito, para os corpos no chão – “pena que tenhamos tido baixas, mas são coisas da vida”. Ele então virou-se para seus homens e ordenou que levassem os corpos para serem enterrados onde os fosse de direito.
Quando os milicianos começaram a se encaminhar para os corpos eu desembanhei minha espada e sem saber com que coragem me postei à frente dos corpos. Os soldados pararam sem saber o que fazer. Platek virou-se com ar de surpresa e diversão.
“- O que está havendo?” – perguntou.
“- Esses homens não vieram aqui para serem enterrados como simples baixas de guerra” – Platek fez um ar de realmente desentendido – “eles não são simples baixas... eles são cavaleiros e serão enterrados como tal!” – eu disse.
“- Mas eles são simples aldeões! Não podem ter este privilégio” – ele disse, ainda com calma.
A multidão aguardava em silêncio com cada vez mais curiosos se abarrotando uns sobre os outros.
“- O que os diferencia de cavaleiros? Khalmyr diferencia suas coragens e honra frente à seus títulos? Khalmyr pesa com outra balança o seu sangue derramado no campo de batalha? O grande deus da justiça fecha os olhos se não houver tributo e louros antes do funeral?”
“- Não blasfeme criança. Ainda cheiras à leite e se teu senhor não te ensinou respeito ao deus da justiça eu posso me encarregar disso!” – disse Platek com o rosto rubro da raiva crescente que minhas palavras lhe causaram.
Ante essas palavras Gustav e Arlan também puxaram suas espadas de forma ameaçadora. Eu não pretendia um combate, mas se este fosse o caminho para garantir a honra daqueles homens eu estava disposto, naquele momento, ao preço.
Eu me aproximei de Platek baixando minha espada. Craveia com raiva no chão, aos seu pés, causando um certo susto na multidão. Retirei meu elmo com calma e fiquei olhando para suas plumas por alguns instantes.
“- Se eles ...” – apontei para os corpos – “... não são cavaleiros e não merecem ser enterrados como tal, como eu poderei manter-me vivo e orgulhoso de seguir um deus que se diz protetor da justiça? Se aquilo que eles fizeram no campo de batalha, que era seu próprio quintal, não vale de nada, como eu poderei honrar o nome dessa nobre instituição que é ser um seguidor de Khalmyr? Eu prefiro não ter nunca mais de usar esse símbolo e esta espada...”
Eu então me abaixei e postei meu elmo aos seus pés, junto de minha espada. Virei de costas e me encaminhei para os corpos. Logo depois Gustav e Arlan fizeram o mesmo. Para nossa surpresa Philip, Bruy e Seneval fizeram o mesmo. Cada um de nós pegou a ponta de uma das macas improvisadas e junto de suas esposas e filhos fomos abrindo caminho pela multidão.
“- Esperem!” – gritou a voz forte de Platek – “esperem... antigos ensinamentos podem ser esquecidos ou soterrados pelas areias do tempo e as preocupações do momento. Uma das primeiras coisas que aprendi é que o verdadeiro cavaleiro leva sua nobreza não na ponta da espada ou no brilho da armadura, mas na honra de suas ações. Nos acostumamos em ver primeiro os título e as marcas, para depois vermos os valores” – ele fez uma pausa – “peço desculpas! E não quero que tão prestimosa ordem perca valorosas cavaleiros como vocês, mas antes disto, valorosas pessoas.”
Ele então se virou para a multidão – “os jogos estão adiados por dois dias ... temos que enterrar cavaleiros que tombaram no campo de batalha!!!”
A multidão dividiu-se entre aplaudir e urrar as palavras de Platek, pois depois eu descobriria que funerais, principalmente de cavaleiros, são quase uma festa para eles.
Platek virou-se de costas para nós e caminhou até Sir Constant. Depois ele disse alguma coisa para meu mestre e então deu um forte aperto de mão nele e em Sir Telleon e Sir Argnal. Sir Telleon foi o primeiro a se aproximar de nós. Ele abraçou Gustav e Bruy. Sir Argnal chegou sorridente – “bando de abostados ... chegaram roubando toda a cena, heim?!”
Sir Constant foi o último a se aproximar. De cenho rijo ele chegou bem perto de nós. Instintivamente nos perfilamos de forma próxima para podermos escutá-lo.
“- Nunca imaginei que fossem aprender tão rápido o que muitos de nós não aprendem numa vida inteira.”