quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Diário de um Escudeiro 41



Terceiro dia de Cyd de 1393

Meses se passaram desde minha última oportunidade de escrever no diário que recebei de presente de meu avô. Foram cinco meses. A última escrita aqui narrou os acontecimentos em Tollon onde acabei por aprender na carne um pouco sobre o que realmente é ser um “cavaleiro”.

Khalmyr que me perdoe, mas o que menos há neste mundo é justiça. Não entendo como meu Deus pode permitir que isso aconteça já que dizem que ele é o senhor do Panteão.

De qualquer forma, após os acontecimentos que vivenciei passei a repensar minha vida. Minha vida como cavaleiro e como homem. Nem preciso dizer que fui abatido por uma depressão que me impossibilitou de escrever novamente e quase me tirou da academia.

Aos poucos fui recobrando a fé em nós, cavaleiros, e em meu Deus, Khalmyr. Nesses meses passados conversei muito com Sir Constant, sendo constantemente requisitado por ele para ações fora de Bielefield. Hoje percebo que isso servia como uma espécie de tratamento para minha depressão. Uma espécie de remédio para minha auto-estima.

Fiz parte de uma ação militar rápida em Tirondyr contra um agrupamento da Aliança Negra, resolvemos alguns problemas diplomáticos em Yuden e visitamos Valkaria escoltando importantes documentos. Em cada uma dessas missões tive sempre a presença e assistência constante de meu senhor. Conselhos, lições e histórias permeavam cada uma de nossas noites, em tavernas ou ao relento, tendo como pano de fundo o agradável calor de um fogo amigo e todos os recrutas, ou apenas eu, como ouvintes.

Mas pode-se dizer que ações valem mais do que mil palavras e se hoje estou escrevendo aqui novamente é porque presenciei uma ação que mudou minha noção sobre cavaleirismo em Arton.

O motivo foi Sir Timothy “Relva” Graywood, ou apenas “O Relva”, como os amigos o chamavam. Um típico Cavaleiro da Luz, honrado, vigoroso, corajoso. Mas além disso ele tinha uma característica peculiar que acabou por lhe dar sua alcunha. Ele não podia ver um rabo de saia que perdia a compostura e corria para galantear a donzelas até as seduzir e arrastar para um aconchegante gramado. Sim, gramado. Ele dizia que não existia nada melhor do que fazer amor deitado sobre a grama e à luz do escudo de Tenebra, a Lua. Por isso mesmo era comum ele retornar de sua empreitada amorosa cheio de pedaços e tocos de grama pelo cabelo, corpo e roupas. Aos poucos foram o chamando de 'relva' por brincadeira. Ele mesmo diz que não poderiam o chamar de 'grama' pois outro colega de armas já detinha o título. Mas de qualquer forma eu apenas o conhecia por sua fama de galanteador.

Mas como disse, um exemplo vale mais do que mil palavras.

Estávamos numa patrulha de alguns dias pelas fronteiras entre Wynlla e Tyrondir antes do Dia do Duelo. Quando chegamos à cidade de Cundrin, ao sul da famosa Escola de Anões, soubemos que um Cavaleiro da Luz, o “Relva” havia partido para uma missão em direção à uma pequena vila perto do Golfo do Albatroz, já dentro do território de Tyrondir. Aparentemente essa vila estavam em segurança das forças da Aliança Negra, mas de alguma forma ocorreram alguns problemas com globinóides.

Pelo que o taverneiro nos contou fazia mais de uma semana que o cavaleiro havia deixado os braços de uma adorável rapariga das imediações para investigar o que estava acontecendo. Como ele não havia dado nenhum sinal de vida nem novas notícias haviam retornado da vila resolvemos fazer uma visita à comunidade.

Foram dois dias de cavalgada tranquila. Nessas últimas semanas tenho olhado para meu diário com desejo de escrever, mas sem ânimo. Algo que mudo profundamente hoje.

Na patrulha estavam eu, Arlan, Gustav, Sir Tussant e Sir Argnal. Na segunda noite, pouco antes de nossa chegada à vila, que deveria acontecer até o final da próxima manhã, percebemos vestígios de um acampamento globinóide. Eram evidentes as fogueiras apagadas e a grande quantidade de marcas de pés. Ficamos surpresos pois não era uma meia dúzia de membros da Aliança Negra, mas um pelotão inteiro.

Isso nos deixou preocupados e consegui ver nos rostos de nossos instrutores a apreensão. Mas decidimos por dormir já que de nada adiantaria correr perigo em meio à madrugada. Seríamos muito mais úteis descansados e vivos e andar por uma floresta cheia de globinóides à noite era um risco demasiado.

Dormimos nos revezando em vigias duplas, para não corrermos nenhum risco. Logo que o sol despontou no horizonte levantamos acampamento e apressamos o passo. Íamos rápido mas com todo o cuidado possível.

Enquanto nos encaminhávamos para a pequena vila Sir Argnal ia demonstrando suas habilidades de rastreio e leitura dos vestígios deixados pelo chão. Ele sempre nos disse que esta era uma melhores qualidades que um ranger tinha para acrescentar à um grupo de aventureiros e que ele se intrigava tanto com isso que acabou por aprender com um meio-elfo de Collen.

Sir Argnal disse que as marcas eram claras. Uns três dias passados o pelotão de globinóides, com duas carroças pesadas de combate passaram por essa estrada. Provavelmente eles haviam saído do acampamento que havíamos encontrado. De qualquer forma eles se encaminharam diretamente para a vila como se nada os pudesse impedir.

Alguns minutos de cavalgada e Sir Argnal encontrou os primeiros sinais de sangue, mas globinóide. Três corpos estavam em meio à vegetação com estacas de madeira perfurando seus corpos. Descemos dos cavalos e encontramos os restos de uma armadilha artesanal feita de madeira. Era uma armadilha padrão que aprendíamos na Academia. Sir Graywood havia agido.

Esta informação foi um alento para todos e algumas piadas forma ditas sobre o azar dos globinóides esbarrarem em um cavaleiro experiente.

Continuamos nossa jornada ainda com calma sob os olhos atentos de Sir Argnal. Enquanto avançávamos ele ia contando-nos o que via pelos rastros no chão.

Ele disse que os globinóides, mesmo depois da armadilha, continuaram avançando de forma rápida. Todos sabíamos que mesmo sendo da aliança Negra eles ainda eram globinóides e isso significavam que eram um pouco mais que estúpidos.

Mas conforme fomos nos aproximando mais e mais da vila, ainda antes de a vermos ao longe, Sir Argnal mudou sua feição.

“- Temos algo estranho aqui!” – ele disse enquanto descia do cavalo para ficar mais próximo do chão e dos rastros – “quando eles chegaram aqui neste ponto alguma coisa mudou, eles mudaram o ritmo de seu avanço. Esses não eram globinóides comuns ... parece que eles começaram a se organizar ...  um grupo mais pesado na linha de frente e um mais leve, arqueiros de certo, mais atrás por entre a vegetação.”

Ele avançou um pouco mais rápido, meso estando fora de sua montaria e diante de nosso silêncio ele continuou narrando o que enxergava como um tom de horror.

“- A vila não deve estar longe, pois eles diminuíram o passo ... queriam chegar em silêncio” – ele olhou para um lado e para outro e deu uma corrida à frente alcançando alguns arbustos – “ali está a vila” – ele apontou para frente – “eles iam começar o ataque daqui, mas algo os atacou primeiro”

Ele afastou alguns galhos e vislumbramos alguns corpos de goblins atingidos por flechas artesanais.

“- Esses foram os primeiros a cair. Foram espertos em tentar acabar com o apoio dos arqueiros antes de mais nada. Ali tem mais alguns. Este pelotão, pelo que conheço das formações da Aliança Negra, não deveria ter mais do que uma dezena de arqueiros e besteiros. Temos três aqui, quatro ali e mais uns cinco ali adiante. Todos mortos.”

Avançamos mais um pouco e saímos detrás da vegetação atingindo uma enorme clareira que estava entre a vegetação e a vila. Agora conseguíamos ver o verdadeiro campo de batalha. Muitos corpos espalhados por todos os lados. Ao longe uma pequena paliçada com os portões fechados.

Todos estávamos à pé seguindo Argnal tal qual ele fosse um mórbido guia. Caminhávamos lentamente por entre os corpos de muitos globinóides.

“- Para atingir os arqueiros que estavam na floresta eles tiveram de se aproximar muito. Foi um verdadeiro suicídio, mas a única chance de enfraquecer as forças da Aliança Negra. Foi um verdadeiro caminho sem volta.”

Argnal deu uma pequena corrida, já livre de seu cavalo que um dos outros cadetes levava – “como eu disse, um suicídio” – ele apontou para quase uma dúzia de corpos de humanos mortos, literalmente trucidados por espadas e machados. Ao lado dos corpos estavam seus arcos, aljavas e flechas.

“- Pelas pegadas os aldeões já estavam esperando o ataque à meio caminho, quando o avanço dos globinóides começou eles correram para este ponto e atacaram com toda a força que tinham até o último momento”.

Sir Tussan disse que Graywood deve ter organizado as defesas da melhor forma que poderia. Ele não sacrificaria vidas se não fosse extremamente inevitável.

Argnal continuou – “depois deste grupo de arqueiros humanos mortos os globinóides correram como loucos para a direção do portão. Aqui começou a verdadeira batalha. As pegadas mostram que humanos e globinóides se degladiaram ferozmente. Os globinóides estavam em maior número e isso foi fazendo a diferença contra um grupo de aldeões destreinados.”

Corpos de homens e mulheres estavam espalhados, ensanguentados, por todos os lados. Em menor número também haviam corpos de globinóides.

Estávamos todos seguindo Sir Argnal em um silêncio profundo. Ainda assim não entendíamos como os portões ainda estavam fechados e intactos.

“Enquanto os humanos iam caindo ele corriam ainda mais para a direção do portão” – ele continuou narrando parando por um momento como quem olha com mais atenção – “aqui temos pegadas de uma bota típico de um cavaleiro ... só pode ser de Sir Graywood!”

Próximo ao portão havia um pequeno monte de globinóides enquanto Argnal continuava sua narrativa – “eles começaram a cercar nosso amigo que lutou bravamente. Haviam pelo menos trinta contra um. Pelo que vejo aqui à cada golpe haviam um globinóide morto, mas mesmo assim ele foi sendo obrigado à recuar.”

Ele parou em silêncio por uns momentos. Depois andou rápido de um lado par ao outro e voltou lentamente para a frente da pilha de corpos de globinóides.

“- Sir Graywood lutou como nunca se viu. Ele protegeu a paliçada com toda a sua força. Ele era a última linha de defesa. Quanto mais os aldeões iam perecendo, mais ele tinha de correr contra todos os adversários que avançavam e ele fez isso de forma exemplar” – Argnal fez uma pausa – “aos poucos toda a atenção dos globinóides se fixou em Graywood e ele foi sendo cercado ... pelas pegadas ele pulou, girou e matou cada orc e góblin que se aproximou”.

Argnal se abaixou e tocou o chão com os dedos – “mas ele também foi atingido várias vezes ... mas isso não o abateu ... ele continuou lutando e lutando até que não houvesse mais nenhum globinóide.”

Argnal fez uma pausa em frente da pilha de corpos.

“- Mas se matou todos, onde ele está?” – perguntei.

“- Aqui!” – Argnal começou a afastar os corpos dos globinóides até encontrar a armadura de Graywood. Ela estava suja e coberta de sangue seco, seu e de globinóides. Mas seu rosto estava sereno e tranquilo – “foi uma morte boa e digna.”

Ele protegeu com sua vida a paliçada da vila. Morreu, mas não deixou nenhum inimigo vivo. Lá dentro encontramos o motivo de tanto empenho, dele e dos aldeões – doze crianças, todas com certas aptidões mágicas, como tudo o que vem da Wynlla.

Elas estavam muito assustadas, mas intactas. No caminho de volta os mais velhos nos contaram que Graywood chegou alguns dias antes do combate e que mal teve tempo para arrumar uma estratégia de defesa. Elas contaram também que ele jurou pelo túmulo de sua mãe que mesmo que tivesse que morrer e reviver cem vezes nenhum globinóide entraria na vila.

E cumpriu.

Ele era um cavaleiro de verdade. Viveu com seus defeitos, mas morreu como um verdadeiro e digno cavaleiro. Por isso resolvi voltar a escrever em meu diário. Ainda temos com o que nos orgulhar quando vestimos nossas túnicas e armaduras, quando empunhamos nossas espadas e lançamos ao ar nossos estandartes. Estou de volta e irei honrar a espada que carrego e honrar Khalmyr, deus da justiça.