Perseguido na escuridão
- micro-conto futurista pós-apocalíptico -
A
chuva chocava-se contra o seu rosto insistentemente enquanto ele corria pelos
escombros do que já fora, muito tempo atrás, uma rua movimentada de uma grande
cidade. Os escombros, ao mesmo tempo que serviam de proteção, também o
atrasavam e isso era um problema. Ao menos eles também lhe propiciavam as sombras
para obscurecer seu traçado irregular pela rua.
Ele
escorou-se de costas contra um pedaço de parede para tomar ar e tentar ver
alguma coisa. Esta parte da cidade tinha ainda energia elétrica. Ele nem
imagina como nem por que, mas alguns postes ainda iluminavam parcelas menos
destruídas da cidade. A chuva fina e fria nublava sua visão juntamente com o
vapor que saia de sua boca. E nem era inverno ainda.
Ele
fixou os olhos enquanto passava a palma da mão sobre a fronte para tirar o
excesso de água. Um som metálico e algumas lascas de concreto denunciaram que
ele escapara por pouco de ser alvejado na cabeça. O susto o lançou sentado no
chão úmido, mas ele não tinha tempo para lamentar ou mesmo para agradecer por ter
escapado. Pegou sua mochila e seu rifle e voltou a correr. Ainda faltavam
algumas quadras para se considerar relativamente seguro. Eles nunca tentaram atacar
qualquer um dentro daquela área e lá ainda teria apoio, seu refúgio.
Ele
corria como um louco, mas de forma ordenada. Os anos o treinaram para ser veloz
mesmo com um terreno impeditivo como este. Saltar, escorregar, se arrastar.
Tudo era feito com velocidade e maestria, mesmo com uma longa e pesada arma nas
mãos e outra às costas, além da mochila. Alguns anos atrás o que ele estava fazendo
seria chamado de parkour. Hoje era uma lembrança esquecida e sem referências.
Mais
um disparo zuniu ao lado de sua cabeça. Eles não estavam brincando e duas vezes
já era sorte demais para um dia. Teria que procurar mais proteção. Estava
chegando à área escura da cidade, que circundava o reduto da resistência, o que
significava mais proteção das sombras mas, ao mesmo tempo, menos velocidade.
Um
relâmpago ao longe iluminou um estacionamento que ele conhecia bem. Seria um
ótimo atalho, lhe poupando pelo menos duas quadras de percurso. Seu coturno
estava ensopado, mas era um problema ínfimo frente ao resto e ele só pensava em
correr o máximo possível.
Ele
corria e corria. O parkour teve que dar espaço para uma corrida mais segura e
cadenciada dentro daquele breu. Duas ou três vezes ele esbarrou em carros
abandonados ou outros destroços, lhe ferindo. A roupa grossa o protegia até
certo ponto e ele sabia que enquanto não sangrasse não teria perigo de ser mais
facilmente rastreado.
Para
entrar no estacionamento teve que desfiar e escalar vários carros destruídos,
além da vegetação que estava tomando conta de certos pontos das ruas e avenidas.
Ele já esteve ali, embora em um momento bem menos tenso, mas se lembrava muito
bem da área e do ambiente ali dentro.
No
interior do estacionamento a escuridão seria completa e ele
tinha de ser rápido para chegar ao terceiro andar e passar para o prédio dos
fundos, chegando na rua em questão. A escuridão seria um problema para ele e
para os outros também.
Ele
posicionou o dispositivo de visão noturna. Ali dentro seria menos perigoso
deles rastrearem o seu dispositivo eletrônico e mesmo assim seria quase
impossível percorrer o estacionamento sem ele. Antes de entrar ele olhou para a
rua atrás dele e os viu se movimentando rapidamente em três sou quatro pontos
diferentes, no chão e nos prédios em ambos os lados.
Ele
apenas respirou fundo e entrou.
Com
o rifle nas costas, ele preferiu seguir com o fuzil, menor e mais eficiente à
curta e média distância. Queria percorrer todo o térreo o mais rápido possível.
Sabia que se conseguisse se esconder no próximo andar ele estaria quase à salvo
pois eles tinham muito menos mobilidade em ambientes fechados. Levemente
abaixado e com a arma em posição ele andou velozmente pelo saguão até a entrada
da rampa. O dedo tremia encostado no gatilho, pronto para um disparo à qualquer
sinal deles.
Todo
o ambiente era visto em tons de verde com um pequeno zumbido ao fundo representando o funcionamento do visor noturno. Ele dava cada passo sempre a espera do sinal sonoro que
representasse que alguma coisa estava se movimentando próximo à ele, dentro de
um alcance de pelo menos vinte metros. Mas o silêncio, tanto natural quanto do
dispositivo, era insuportável. Não fosse por algum gotejar aqui e ali o
silêncio seria completo.
Ele
subiu a primeira rampa em semicírculo adentrando uma área ampla e praticamente
vazia. Quando ainda dominavam esta área ele e seus colegas tinham arranjado os
carros abandonados nas laterais do prédio para proteção de ataques externos.
Mesmo tanto tempo depois de terem saído dali os carros continuavam no mesmo
lugar. Os cadáveres quase desfeitos pelo tempo também.
Ele
subiu mais um andar pela rampa e o primeiro sinal estridente soou em seu ponto,
no ouvido. Um deles acabava de entrar em raio alcance e seu sinalizador de
movimento o estava avisando. Ele deveria estar, provavelmente, no andar debaixo.
Era muito perto e, por isso mesmo, muito perigoso. Teria que tomar todo o
cuidado possível. Sua melhor opção era diminuir a velocidade para reduzir a
chance de fazer qualquer barulho. Eles o estavam procurando e perderiam
algum tempo no andar de baixo. Com sorte ele alcançaria o terceiro andar e
faria a passagem antes de ser detectado.
Ele
deu mais alguns passos cuidadosos e um segundo sinal sonoro apontou outro deles
próximo. Isso era muito ruim, mas ainda assim não tinha opção e continuou pela
rampa.
Mais
dois passos e o inferno sonoro começou. Um sinal, e outro, e outro, e outro.
Ele perdeu a conta de quantos deveriam ser. Seu marcador de pulso estava louco
com tantos elementos em movimento. Cinco. Dez. Vinte. Não tinha como saber. E o
que mais impressionava ainda era o silêncio total.
Acabaram-se
as estratégias pensou suspirando.
Ele
começou a correr não se preocupando mais com o silêncio. Seria um milagre sair
dali vivo. Enquanto engatilhava o fuzil ele puxou da cintura um cinto com
algumas granadas e depois fez um disparo à esmo. Tirou o pino de uma delas e
jogo o cinto inteiro rampa abaixo. Isso poderia lhe dar alguns instantes
preciosos se pegasse-os desprevenidos.
Ele
saiu da rampa e correu o mais rápido que podia pelo terceiro andar em direção à
uma abertura na parede do tamanho de um carro. Na verdade a abertura tinha sido
feita por um carro com ajuda dele e de seus companheiros. Quando ele estava alguns metros à
frente veio a explosão. Aquelas granadas de fragmentação eram potentes e
faziam um bom estrago, assim como sua onda de choque não ser pouca coisa. Mas a
explosão foi ainda maior do que o esperado. Ele imaginou que eles deveriam
estar carregando explosivos também. O impacto o lançou ainda mais em direção à
abertura na parede fazendo-o rolar pelo chão. Seu treinamento o possibilitou
cair de joelhos, pronto para continuar a corrida. Mas sua visão, pelo
dispositivo noturno, ficou desativada devido ao clarão intenso da explosão. Ele
levantou o visor e só o que via era a luminosidade fraca que vinha pela
abertura na parede.
Atrás
dele sons estranhos e incompreensíveis denunciavam que ele havia conseguido
acertar muitos deles. Pode não os ter matado, mas tinha conseguido causar um
bom estrago. O silêncio estava quebrado por completo e ele começou a reconhecer
ordens berradas junto do som típico de armas sendo engatilhadas e outros tantos
sons incompreensíveis.
Ele
se levantou o mais rápido que pode e começou a correr novamente. O prédio
vizinho ficava a cerca de três metros de distância da garagem e eles haviam
criado um sistema de rampas para atravessar, mas desta vez ele não teria tempo
de arrumar nada. Atrás dele o primeiro disparo zuniu perto de seu joelho. Um
segundo passou a centímetros de sua cintura. O terceiro acertou exatamente na
parede ao seu lado no exato momento do pulo.
Enquanto
ele pulava, atravessando aqueles três metros, apenas pensava - “cinco vezes
sortudo”.
Ele
despencou no terraço do outro prédio rolando na laje e parando de joelhos
virado de frente para o buraco que acabara de passar. Engatilhou o lançador de
granadas de seu fuzil e disparou duas vezes para a escuridão no exato momento
que um deles apareceu na abertura. A primeira granada o atingiu em cheio
despedaçando-o. A segunda explodiu na escuridão, mas ele não tinha nem tempo
nem pretensão de descobrir o resultado.
Continuou
correndo mais alguns metros até a lateral destruída do pequeno prédio e
jogou-se escorregando pela parede derrubada e inclinada. Atrás dele os sons demonstravam
que ainda tinha perseguidores e que eles estavam também pulando. Seu peito
doía. As pernas doíam. O ar faltava. Mas seu destino estava cada vez mais
perto. Cerca de quinhentos metros.
Ao
dobrar uma esquina ele se virou e disparou mais duas granadas de seu fuzil além
de alguns disparos simples, mesmo sem ter um alvo na mira e continuou a correr.
Logo
depois de dobrar a esquina ele viu uma grande e forte muralha fechando a
passagem à sua frente. O pequeno portão estava fechado e holofotes vasculhavam
cada centímetro do perímetro rapidamente. As explosões e a algazarra haviam
alertado à todos. O som de homens correndo e cuspindo ordens era audível mesmo
de onde ele estava. Disparos começaram a acontecer de ambos os lados causando
pequenos flashs na escuridão e lhe dando cobertura.
Ele
foi se aproximando cada vez mais, mas seus perseguidores também. Já não virava para olhar qual a distância deles, pois o som dos passos denunciava a sua
proximidade.
Do
nada um novo disparo soou próximo à sua cabeça, mas desta vez vindo de seus
aliados. Com o canto do olho ele percebeu que o disparo o salvara de um deles que estava muito próximo, deixando seu corpo estatelado no chão.
Mas
ele nem teve tempo de agradecer, pois saindo, nem imagina de onde, um deles
saltou derrubando-o. Seu fuzil caiu alguns metros à frente e ele só teve tempo
de girar o corpo para cair de costas para ter uma chance de escapar. Tão logo
bateu de costas no chão o atacante saltou sobre ele lhe obrigado a esticar as
pernas para o ar freando seu bote. Com as mãos ele tateou à procura da pistola
e tão logo conseguiu lançá-lo no ar, disparou repetidas vezes. “Seis escapadas”,
pensou ele
Os
disparos dos aliados ainda tentavam lhe dar cobertura, deixando a maioria deles
afastados. Ele se levantou e começou a correr enquanto escutava os gritos de
amigos e colegas, acima do som dos disparos, lhe incentivando. À sua frente o
portão começou a abrir enquanto os disparos de ambos os lados intensificaram.
Do
pequeno portão surgiram três aliados disparando e fazendo sinal para que
corresse ainda mais. Isso como lhe deu um novo ânimo e seus passos pareciam
ainda mais decididos.
Mas,
e sempre há um ‘mas’ em tudo, os olhares de seus três aliados mudaram da raiva
para a surpresa enquanto olhavam para algo atrás dele. Ele não pensou em se
virar, mas um frio percorreu sua espinha.
Ainda
mais próximo ele saltou em direção ao portão, para mãos espalmadas prontas para
pegá-lo.
No
entanto seu saltou foi freado no ar com um forte tranco, embora tenha sido agarrado
pelos amigos. Um mísero instante que pareceu congelado no tempo. Do canto de
sua boca um filete de sangue escorreu ao mesmo tempo que suas pupilas se
dilatavam.
Ele
apenas pensou – “bem que poderiam ter sido sete” – antes de ser violentamente
puxado para a escuridão por aquela coisa.