sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Dicas do Mestre: Eu não quero salvar o mundo!


Dicas do Mestre
Eu não quero salvar o mundo


Esse é um debate que muito se tem feito em rodas de conversas sobre RPG. Por que existe a necessidade quase que insaciável das aventuras de RPG serem construídas sobre eventos cataclísmicos, apocalípticos ou que atinja todo o universo?

Quando damos uma boa olhada nas mesas em qualquer evento nos deparamos com uma grande quantidade de salvadores do mundo. Os grupos de aventureiros enfrentam deuses, seres celestiais, demônios ou implementos científicos que invariavelmente tem por objetivo destruir tudo. Uma falha do grupo resultará no fim da existência não só deles, mas de tudo e de todos.

Alguns artigos de fora têm debatido sobre essa necessidade de aventuras que joguem o grupo em uma arena para realizar coisas digna de deuses. E isso não é culpa dos mestres. Os jogadores já procuram mesas com a intenção de encontrar jogos com este mote. É quase uma cumplicidade. Mas a grande questão é – isso é realmente necessário para um bom jogo de RPG? A resposta é não, e todos sabem disso.

Para vermos rapidamente esse assunto vamos passar por dois pontos – o por quê e uma alternativa.

O por quê? Ora, seria um pouco de presunção minha ter a resposta pronta e acabada para isso. O que tenho são impressões retiradas de observação e debates.

Tenho visto nas mesas de RPG um quase transporte do que vemos na sociedade como um todo, e quando falo isso me concentro no Brasil é claro, mas muito bem poderia ser adequado à qualquer sociedade ocidental. Não é de hoje que temos vivenciado, que para a maioria dos rpgístas, o que interessa é a chegada, o climax, o final e, além disso, a vitória incontestável. A jornada, o caminho percorrido, parece ter caído no esquecimento. Não por menos que muitos rpgístas 'das antigas' reclamam da falta de apreciação e interesse de muitos das gerações mais novas em passar por todo o processo tanto de roleplay quanto pelo necessário desenvolvimento do personagem. Tenho para mim que o lançamento da D&D 4E foi quase que um erro de entendimento desse cenário do mercado por parte dos executivos e designers da Wizard, mas esta é uma outra discussão.

De qualquer forma esta característica é bem clara. Como professor eu tenho percebido que o brasileiro tem duas grandes dificuldades – a derrota e a falta de espetáculo. Não é admitido ser derrotado. Temos quase que tatuada a visão de que não importa de que forma, mas temos que sair vencedores, ou pelo menos temos que ser mais do que os outros. E não só isso. Para a grande maioria não basta ser vitorioso, mas tem de ser uma vitória avassaladora, com direito à espetáculo, show, além de ovação e reconhecimento por todos.


Muitos rpgístas se perdem em horas de estudo para que seu personagem seja o mais motherfucker de todos, quebrando os recordes de combos e totais de dano causado. Mesmo que ele seja de um nível inicial, ela terá combos inconcebíveis, embora possíveis, pois ele não pode ser igual... ele tem de ser o melhor. Os backgrounds, que normalmente deveriam ser um ponto de partida para um personagem, passam a ser o resultado de um personagem que foi construído artificialmente e as fichas são apresentadas e esfregadas nas caras dos outros com uma arrogância e orgulho disfarçados de humildade e camaradagem.

Com este contexto fica óbvio que os rpgístas, não todos é claro, não pretendem gastar seu tempo, ou seu personagem ultra-ultrapoderoso em uma aventura que não lhes renda os louros devidos da vitória, além do reconhecimento que ele espera, e tudo isso para ontem!

Isso também não é possível com aventuras de pouco impacto ou que não sejam realmente relevantes. É uma situação que espelha e corrobora muito bem a noção de que além do sucesso, eles precisam estar acima dos outros e dando espetáculo. Isso é consciente? Acredito que sim. Isso está enraizado no modus operandi da sociedade brasileira muito profundamente.

Quais os problemas que temos com este tipo de procedimento? Podemos colocar alguns. Quando temos jogos assim estamos simplesmente banalizando o elemento “épico” das aventuras. Ora, se tudo é épico, nada na realidade será épico. Com isso perde-se muito a possibilidade de evolução de uma aventura. Começar uma aventura “por cima” obriga-a a ser horizontal, fazendo-a manter sempre sua estrutura e impossibilitando que o mestre a leve para patamares superiores (ora, já estamos no clímax dela!). Isso engessa as possibilidades do mestre e acabará por torná-la chata e relativamente curta. Um exemplo que pode parecer banal são as aventuras de Harry Potter. Embora ele tenha começado a série de livros como uma criança, os desafios e problemas eram condizentes com ele, embora seu nêmeses fosse o todo poderoso Valdemort. Com o desenvolvimento e crescimento do personagem também foi crescendo a dificuldade, o perigo e a abrangência da aventura, culminando em um verdadeiro clímax épico que poderia mudar todo o mundo... e tudo na hora certa. Agora imaginem se tudo começasse com o último livro/filme? O impacto sobre nós seria muito menor ao mesmo tempo que não comportaria tantos livros/filmes, impedindo que a história fosse contada como deve para ser apreciada por todos. Com uma história já ‘épica’, para onde iremos depois de um tempo? Para onde a desenvolveremos?

Um segundo problema é com a relação jogador/personagem. Quando começamos com um PC desenvolvido e poderoso temos a tendência de não nos apegarmos tanto à ele pois já o recebemos acabado. Tememos por sua morte? Sim, mas por que não queremos colocar fora algo tão precioso e poderoso. Temos uma proximidade muito maior, verdadeiramente o adotamos, quando participamos de seu desenvolvimento. Com isso temos a possibilidade do estreitamento de laços, de forma que nos preocupamos com os perigos que ele corre, com as escolhas que ele fará para seu desenvolvimento e evolução e lutando para mantê-lo vivo.


Juntando esses dois elementos – desenvolvimento da história e desenvolvimento do personagem – nos possibilita chegar à um terceiro elemento. Em menores escalas podemos aliar o desenvolvimento do personagem com um microuniverso onde podemos dar rosto para aqueles que desejamos ajudar. É muito mais proveitoso quando sabemos exatamente quem estamos ajudando, salvando, ao invés da descontextualização de um universo/nação inteiro. O impacto, em um jogo bem conduzido, faz com que criemos um sentido de responsabilidade que possibilitará uma maior afinidade de nosso personagem com o problema a ser resolvido. Da mesma forma, se enfrentamos um adversário, esse conflito será muito mais impactante do que se enfrentamos, fora do momento certo, algo grandioso.

Tudo isso que proponho como debate aqui visa, é claro, quando pensamos em campanhas. As nossa seções one-shot possuem um outro foco – serem rápidas -  e por isso mesmo nos impõe outro tipo de tratamento e enfoque. Mas quando pensamos em campanhas, é imperativo que as vejamos além do clímax, mas sim como um caminho a ser percorrido para que sua conclusão não seja em vão. Você, como mestre, prepare aventuras mais direcionadas ao desenvolvimento do personagem à longo prazo, possibilitando, com isso, que o personagem desenvolva-se aventura após aventura, criando um vínculo com o jogador. É mais trabalhoso? Sim! Será mais proveitoso? Com certeza!

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