Resenha Blades in the
Dark,
da Redbox
Vamos sair do lugar comum.
Normalmente entramos em cada sessão de RPG esperando sermos os heróis, os
salvadores da cidade ou os redentores do reino. Em tempos de sucesso de La Casa
de Papel, Blades in the Dark, de
John Harper, chega como o contraponto tão necessário para uma arejada nos ares
de nossos sistemas de RPG. A Redbox acertou na mosca com esse lançamento que
chegou, até certo ponto, sem muito estardalhaço por aqui. Curioso? Então junte
a mim e vamos escrutinar esse interessante e promissor cenário que emula
vigarice e golpes de um grupo nada bem intencionado.
Um RPG como esse merece atenção
especial em seus dois polos – cenário e sistema – e já posso adiantar que eles
se casam muito bem na tentativa de entregar o que prometem. Fugindo tanto do
cenário tradicional, quanto das mecânicas usuais, Blades in the Dark nos joga
em um mundo sombrio onde vividamente percorremos suas ruas e vielas atrás de
uma nova tramoia, um novo golpe, um ardil definitivo para dar sentido à nossa
vida.
Cenário e Estrutura
Blades in the Dark se passa na
cidade assombrada de Doskyol. Uma cidade que como o próprio livro conceitua é “de
fantasia urbana-industrial”. É a mescla de elementos diversos para a criação de
um cenário ímpar, onde à primeira vista tem tudo para dar errado, mas que
surpreendentemente cria um amálgama sensacional.
Há mil anos um cataclisma
despedaçou o sol. Desde então o mundo vive na escuridão quase completa, já que
apenas em alguns momentos do dia – amanhecer e alvorada – fragmentos da estrela
iluminam o ambiente. Além disso, com o cataclisma os Portões da Morte foram
destruídos, permitindo que fantasmas assolem o mundo. A sociedade teve de se
adaptar, organizando seu dia a dia e sua sobrevivência à esse novo mundo. Com a
tecnologia equivalente ao final do nosso século XIX, essa sociedade tem a
eletricidade engatinhando enquanto ainda vivem sobre a tutela das máquinas à
vapor. A engenhosidade sob a forma de uma gigantesca barreira elétrica abastecida
com sangue ectoplásmático de leviatãs mantém a cidade protegida dos horrores de
fora. Isto é Blades in the Dark. Isto é Doskvol. Sombria e com segredos,
perigosa e enigmática, fria e chuvosa na maior parte do tempo, com uma neblina
insistente e um colorido em tons das lâmpadas da rua e velas. Aqui se passará
sua aventura. Claustrofóbica, perigosa e sombria. Aqui viverá um drama criminal
de fantasia vitoriana.
Nesta cidade, onde a elite
exploradora age apenas para manter a população à sua mercê, nossos personagens se
negam a serem usados ou manipulados. O submundo é o lar de quem decidiu fazer
da contravenção uma possibilidade de futuro para um destino mais aprazível.
Isso não torna o personagem um vilão, mas alguém que encontra uma alternativa
em meio à um sistema que não lhe trás possibilidades. Se você terá que roubar,
enganar, iludir ou quem sabe coisa pior, são imposições desse mundo. O
personagem é quase um empreendedor. Galgando um degrau de cada vez os
personagens criarão um bando e ascenderam dentro da hierarquia das muitas
facções das ruas. Eles terão de ser espertos, pois não há chance de dar uma
fugidinha da cidade “até as coisas esfriarem”. Aliado à isso temos os horrores
que vivem do outro lado da barreira e que, por que não, são extremamente rentoso
se você for louco o suficiente para ir atrás de sangue ectoplasmático.
Tudo isso está dito nas duas
primeiras páginas do livro. Mas ao irmos mais além, explorando e aprendendo
sobre o cenário, percebemos que John Harper tomou o cuidado de montar um
ambiente que justifique e reforce cada uma das possíveis características dos
personagens e aventuras. Mais do que uma sandbox, o cenário é a referência da
mecânica do jogo (que veremos depois) e da construção dos personagens. Ao mesmo
tempo ele é talentoso ao não se preocupar em esgotar os elementos do cenário.
Uma das maiores críticas à quem tenta criar um cenário fechado é tentar mostrar
todos os vieses e detalhes de cada esquina. É um equívoco causado por uma
insegurança de esgotamento ou limitação
das aventuras, considerando que um ambiente fechado precisa ter elementos
atrativos. Harper vai pelo caminho contrário. Para cada bairro ele não gasta
mais do que duas páginas de informações em um formato sucinto e claro, com
alguns poucos pontos de interesse, detalhes narrativos, pessoas notáveis
daquela região e um engenhoso quadro graduando riqueza, segurança e
influências. Em apenas duas páginas temos tudo o que precisamos sobre o
ambiente, além de elegantes imagens exemplificando a arquitetura local e mapas.
Tudo muito funcional, rápido e prático, dando ênfase ao que será necessário e
importante no momento do jogo.
Todos os elementos do cenário
seguem a mesma dinâmica – praticidade. Seja sobre a alimentação, o serviço de
polícia, as facções criminosas, fantasmas ou os rumores, tudo vem de forma
clara e enxuta. E isso não torna a informação rala, pois a construção do
cenário, como um todo, e a retroalimentação na própria mecânica e aventura, dão
sentido na medida certa.
E tudo isso comporta apenas o
elemento urbano do cenário. Não esqueçamos que ele também é de fantasia. Temos as
‘forças estranhas’, todos os elementos sobrenaturais do cenário que são uma das
engrenagens chave da concepção do cenário. Fantasmas vingativos, demônios,
vampiros, pessoas que se associam à eles ou que são apenas suas ferramentas, ou
mesmo os cobiçados e mortais leviatãs. Você pode jogar uma campanha inteira sem
nunca citar ou cruzar por eles, mas eles estão ali, espreitando, agindo.
Mecânica e Aventura
Blades in the Dark é um RPG que
numa olhada rápida pode parecer pouco desafiador aos jogadores. Ele se vale de
dados de seis lados (d6) em quatro tipos de rolagens – Ação, Folga, Sorte e
Resistência. Resultados de 1 a 3 são um resultado ruim com grandes
consequências, uma jogadas de 4 a 5 representam um sucesso, mas com um custo, e
uma jogada 6 significa um sucesso completo. O jogador rola quantos dados uma
características associada ao que deseja fazer determina e avalia apenas o dado
de valor mais alto.
Rapidamente podemos nos enganar
achando que a rolagem tem cinquenta por cento de chance de sucesso ou falha.
Aqui está a pegadinha. Na verdade a emoção do jogo começa no ‘mas’ que há nas
jogadas de sucesso parcial e acabará sendo o sucesso mais vezes alcançado pelo
jogador (por uma questão estatística). Esse ‘mas’ será o motor da diversão. Aqui
é que o mestre assume e agrega um problema, uma consequência imediata ou uma falha
à cena. Isso gera tensão, pois mesmo que as coisas deem certo haverão (e quase
sempre há) problemas.
Como exemplo para esse motor,
em jogadas de Ação, o mestre determina um Nível de Efeito (no que resultará a
ação, entre Limitado, Padrão ou Sensacional) e uma Posição (entre Controlada,
Arriscada e Desesperada). Quanto pior a posição pior serão as consequências em
caso de falha ou sucesso parcial. O interessante, e que vai nos ajudar a
construir a noção do papel dos jogadores no sistema, é que da mesma forma que o
mestre apresenta a Posição, os jogadores podem questionar e assumir elementos
que modifiquem essa Posição ou otimizem o efeito aumentando a posição. Tudo
isso porque quase sempre há um ‘mas’.
E mesmo que tudo dê errado, o
jogador ainda pode fazer uma rolagem de Resistência gerando Estresse. O que
mais gostei é que conforme esse estresse acumula, o personagem pode
simplesmente desistir da vida do submundo. Genial!! Está é a mecânica central à
qual devemos dar atenção.
No geral Blades in the Dark é
um sistema narrativo simples e que se vale da interação entre mestre e
jogadores, como pincelamos nos dois parágrafos anteriores. A tônica é a
retroalimentação (até certo ponto) de informações entre esses dois polos
construindo em conjunto as cenas e momentos. Não chegamos ao exagero de dizer
que é uma construção compartilhada, mas podemos dizer que é um jogo do Mestre
fazendo perguntas aos jogadores e estes moldando a cena. O Mestre sabe, por
óbvio, o cerne do mistério e os elementos do plot da aventura, mas os jogadores
é que preenchem as lacunas da cena com a impressão e percepção dos personagens
sobre o ambiente e sua forma de abordagem. Com essas informações o Mestre passa
a construir e dar vida à tal ambiente e apresentar o que vai acontecendo,
decidindo a Posição e o Nível de Efeito da ação dos jogadores. É um verdadeiro
ping-pong gerando uma narrativa de improvisação à cada ‘mas’ apresentado pelo
mestre.
E não paramos por aqui. Com o
andamento das cenas os jogadores são convidados à novas interações criativas conforme
as dificuldades aparecem, seja escolhendo equipamentos de última hora, seja
invocando e narrando flashbacks sobre uma ação passada que atua e influencia sobre
a complicação atual.
Tendo isso em mente já temos
outro elemento deste RPG. O Mestre não precisa perder horas preenchendo folhas
e mais folhas com informações, sub-plots e encontros. Uma preparação é
necessária sim, mas muito mais enxuta e light, já que nem mesmo ele sabe o que
o grupo decidirá fazer.
Pensando na aventura em si ela
se divide em três tempos – Jogo Livre, Golpe e Folga - que podem representar
uma sessão ou se repetir, em conjunto, na mesma. Eu gosto de imaginar a
campanha em Blades in the Dark como uma temporada de um seriado onde há algum
grande plot correndo por fora, ao longo das sessões, enquanto cada sessão faz
as vias de um episódio composto por esses três tempos representando a aventura
da vez.
No Jogo Livre temos as cenas de
interação entre os personagens e toda preparação para a ação em si. Nossos
vigaristas decidem o que fazer, investigam, levantam informações, fazem
contatos e por fim escolhem o alvo e planejam uma Abertura (há seis opções) que
seria o plano em si de abordagem. Depois disso temos o Golpe, onde a ação
realmente acontece como já exemplificado anteriormente. Por fim temos a Folga,
que seria a consequência das ações e outras atividades pessoais dos personagens.
Outro diferencial elegante de
Blades in the Dark são os Relógios de Progresso que materializam a ação. Visualmente
ele é um círculo dividido em partes, tal qual uma pizza, onde representam o
progresso dos personagens para superar obstáculos ou perigos eminentes. A
quantidade de divisões referencia-se ao grau de dificuldade. Invadir uma casa
de poucos cômodos para surrupiar um documento tendo pessoas dentro que
facilmente poderiam flagrar a ação seria algo potencialmente problemático sendo
representado por um relógio do ‘dono da casa’, por exemplo, dividido em quatro
partes. Esgueirar-se em uma mansão, à noite, com todos dormindo, para
assassinar alguém com poucos seguranças, seria representado por um relógio dos
‘seguranças’ dividido em oito partes. À cada ação dos personagens, representada
por suas rolagens e suas consequências frente o tipo de ação (controlada,
arriscada, desesperada), acarreta em ir preenchendo esse relógio de forma mais
rápida ou lenta. Ao completá-lo o perigo ou obstáculo se faz presente. Podem
haver vários desses relógios com diferentes divisões conforme os elementos da
cena e do ambiente.
Os Relógios de Progresso são
uma ferramenta engenhosa ao ponto de deixar claramente nas mãos dos jogadores,
e não somente aos dados ou Mestre ou história, a decisão de como agir frente à
um perigo eminente. Novamente é priorizada a participação dos jogadores, levando
em conta como os personagens percebem, interpretam e atuam sobre as condições
da ação momento a momento.
Outra característica que
demonstra a ação ativa dos jogadores no desenvolvimento da história e da
campanha tem relação com a progressão de seu personagem. Normalmente o acúmulo
de experiência vem da conclusão de etapas, obliteração de inimigos ou da boa
vontade de mestres. Em Blades in the Dark vem muito do próprio jogador.
Realizar rolagens de ação desesperada, correr riscos conforme a cartilha de seu
tipo de personagem (mesmo que não tenha sucesso), expressar suas crenças,
motivação motivações, raízes ou histórico, ou lidar com seu vício ou trauma. O
personagem vai gerenciando, ao longo da sessão, como interagir com os problemas
apresentados podendo levar em conta como isso influenciará no desenvolvimento
de seu personagem e do bando em si. Mais uma vez o jogador é chamado a assumir
um papel crucial, pois isso também influenciará cenas e ações em uma enorme
retroalimentação.
Depois de tudo isso eu não poderia
deixar de falar na construção dos Personagens. Como tudo em Blades in the Dark,
também a construção dos personagens é intimamente ligada ao cenário, que irá reforçar
e cobrar dos jogadores por cada uma das escolhas. Temos acesso à sete Cartilhas
– Aranha (bom em organizar planos, manobras e artimanhas), Cão de Caça (bom em caçar,
rastrear, combates à distância e encontrar coisas), Doutor (bom em alquimia e destruir
coisas com sabotagem), Furtivo (bom em esgueirar-se e infiltrar-se), Retalhador
(bom em vencer lutas através da violência e intimidação), Suave (bom em lidar
bem com situações sociais e empregar subterfúgios) e Sussurro (bom em assuntos
mágicos e lidar com fantasmas).
Cada uma das cartilhas possui elementos
básicos do tipo de personagem: habilidades especiais próprias e que irão sendo
aprendidas ao longo do desenvolvimento do personagem, duas características de
ação principais, opções para amigos ou rivais, itens possíveis dele possuir e os
resultados de vencer vícios ou ganhar experiência. Agregado à isso o jogador
escolhe as raízes (origens familiar e cultural), histórico e o vício, além de distribuir
mais quatro pontos nas características de ação. A ficha, seguindo o todo de
Blades in the Dark, é sobre dar elementos para que o jogador construa as
narrativas no momento do diálogo com o mestre dando suporte na construção da
cena. A ficha é um reforno natural e lógico na síntese do jogo –
compartilhamento, cooperação e leveza.
Críticas e Problemas
Não conheço nenhum RPG que não
tenha algum problema, por melhor que ele seja. Mas logo que recebi o livro da
editora para resenha-lo e comecei a lê-lo fiquei impressionado. Não sou do tipo
que ponho panos quentes ou amenizo críticas, mesmo tendo recebido a obra da
editora. Crítica é crítica e tento fazê-la da forma mais responsável possível em respeito de quem acompanha a Confraria em sua jornada de mais de dez anos. Mas
os problemas de Blades in the Dark podem ser classificados como detalhes ou cuidados e não erros. Eu até poderia reclamar do tamanho da fonte, já que minha
visão de quase cinquenta anos se cansa com facilidade, mas mesmo isso tem um
porque no todo da obra, ajudando a condensar a informação em pontos
importantes..
Os cuidados que quero ressaltar
ficam centrados na condução do jogo e na relação dos jogadores com o tipo de
mecânica. Este não é um jogo para combar e acumular xp. Não é um jogo para ser
um herói e realizar feitos mirabolantes. Não é um jogo para sair cortando ao
meio tudo o que respira. É um jogo sobre mudar de vida, sobre ir contra o
status quo, sobre fazer o que for necessário para alcançar o que se quer... e
pagar o preço por isso. É importante que os jogadores assumam um papel de cumplicidade
para que a aventura dê resultados. Da mesma forma que os jogadores são
convidados a criar e influenciar cooperativamente a campanha, eles também são
responsáveis por ela, ainda mais que o mestre.
O Mestre, mais que em outras
oportunidades, é chamado a manter os jogadores dentro de um espaço de realidade
frente o cenário apresentado. Da mesma forma que ele é menos desgastado com
preparações e papeladas, à ele é confiado o fiel da balança para que, por meio
do diálogo e inquirições, mantenha os jogadores dentro da proposta do cenário.
Embora aparentemente com menos ‘poder’, ele é importante para que a mecânica
seja usada com lógica e em prol da diversão inovadora deste RPG.
Não cometerei o erro de dizer
que este RPG não é aconselhado para rpgistas novatos, justamente por ser ideal
para ensinar desde cedo que RPG não é uma caixinha centrada em dois ou três
sistemas canônicos. RPG é muito mais que isso.
Conclusão
Até aqui apenas arranhamos toda
a experiência que Blades in the Dark pode proporcionar aos jogadores. Nem ao
menos abordamos a questão da construção e desenvolvimento dos Bandos ou de como
o elemento sobrenatural atua de forma mais íntima no cenário. Não é minha
intenção esgotar o tema, e nem poderia em espaço tão curto.
Mas com tudo o que apresentei
até aqui posso garantir que este RPG é uma experiência nova, revigorante e
criativa que qualquer um que seja apaixonado por este maravilhoso hobby deve
degustar. Uma forma inovadora de participar como mestre e jogador. Uma forma de
desenvolver sua capacidade narrativa. Uma forma de cooperar e interagir na construção
de uma aventura. Uma forma de ver com outros olhos seus papéis na sua mesa
semanal. É, sem dúvida, uma forma de desenvolver-se como rpgista.
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2 comentários:
Muito boa a análise do Blade, estou interessado nesse sistema. Estou pensando seriamente em adquirir por esses meses. Só fico a dúvida de como montar as consequências para as ações dos jogadores, há um modelo a seguir ou é feito pelo narrador na hora, se for não geraria um pequeno atraso no jogo?
Salve R...que bom que gostou da resenha. Bom, existem 5 consequências possíveis - efeito reduzido, complicações, oportunidade perdida, posição prejudicada e dano. Cabe ao mestre determinar uma ou mais consequências de acordo com a narrativa, o estilo e o tom determinado pelo grupo de jogadores. (página 34)
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