quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Resenha Blades in the Dark, da Redbox



Resenha Blades in the Dark,
da Redbox

Vamos sair do lugar comum. Normalmente entramos em cada sessão de RPG esperando sermos os heróis, os salvadores da cidade ou os redentores do reino. Em tempos de sucesso de La Casa de Papel, Blades in the Dark, de John Harper, chega como o contraponto tão necessário para uma arejada nos ares de nossos sistemas de RPG. A Redbox acertou na mosca com esse lançamento que chegou, até certo ponto, sem muito estardalhaço por aqui. Curioso? Então junte a mim e vamos escrutinar esse interessante e promissor cenário que emula vigarice e golpes de um grupo nada bem intencionado.

Um RPG como esse merece atenção especial em seus dois polos – cenário e sistema – e já posso adiantar que eles se casam muito bem na tentativa de entregar o que prometem. Fugindo tanto do cenário tradicional, quanto das mecânicas usuais, Blades in the Dark nos joga em um mundo sombrio onde vividamente percorremos suas ruas e vielas atrás de uma nova tramoia, um novo golpe, um ardil definitivo para dar sentido à nossa vida.

Cenário e Estrutura
Blades in the Dark se passa na cidade assombrada de Doskyol. Uma cidade que como o próprio livro conceitua é “de fantasia urbana-industrial”. É a mescla de elementos diversos para a criação de um cenário ímpar, onde à primeira vista tem tudo para dar errado, mas que surpreendentemente cria um amálgama sensacional.

Há mil anos um cataclisma despedaçou o sol. Desde então o mundo vive na escuridão quase completa, já que apenas em alguns momentos do dia – amanhecer e alvorada – fragmentos da estrela iluminam o ambiente. Além disso, com o cataclisma os Portões da Morte foram destruídos, permitindo que fantasmas assolem o mundo. A sociedade teve de se adaptar, organizando seu dia a dia e sua sobrevivência à esse novo mundo. Com a tecnologia equivalente ao final do nosso século XIX, essa sociedade tem a eletricidade engatinhando enquanto ainda vivem sobre a tutela das máquinas à vapor. A engenhosidade sob a forma de uma gigantesca barreira elétrica abastecida com sangue ectoplásmático de leviatãs mantém a cidade protegida dos horrores de fora. Isto é Blades in the Dark. Isto é Doskvol. Sombria e com segredos, perigosa e enigmática, fria e chuvosa na maior parte do tempo, com uma neblina insistente e um colorido em tons das lâmpadas da rua e velas. Aqui se passará sua aventura. Claustrofóbica, perigosa e sombria. Aqui viverá um drama criminal de fantasia vitoriana.


Nesta cidade, onde a elite exploradora age apenas para manter a população à sua mercê, nossos personagens se negam a serem usados ou manipulados. O submundo é o lar de quem decidiu fazer da contravenção uma possibilidade de futuro para um destino mais aprazível. Isso não torna o personagem um vilão, mas alguém que encontra uma alternativa em meio à um sistema que não lhe trás possibilidades. Se você terá que roubar, enganar, iludir ou quem sabe coisa pior, são imposições desse mundo. O personagem é quase um empreendedor. Galgando um degrau de cada vez os personagens criarão um bando e ascenderam dentro da hierarquia das muitas facções das ruas. Eles terão de ser espertos, pois não há chance de dar uma fugidinha da cidade “até as coisas esfriarem”. Aliado à isso temos os horrores que vivem do outro lado da barreira e que, por que não, são extremamente rentoso se você for louco o suficiente para ir atrás de sangue ectoplasmático.

Tudo isso está dito nas duas primeiras páginas do livro. Mas ao irmos mais além, explorando e aprendendo sobre o cenário, percebemos que John Harper tomou o cuidado de montar um ambiente que justifique e reforce cada uma das possíveis características dos personagens e aventuras. Mais do que uma sandbox, o cenário é a referência da mecânica do jogo (que veremos depois) e da construção dos personagens. Ao mesmo tempo ele é talentoso ao não se preocupar em esgotar os elementos do cenário. Uma das maiores críticas à quem tenta criar um cenário fechado é tentar mostrar todos os vieses e detalhes de cada esquina. É um equívoco causado por uma insegurança de  esgotamento ou limitação das aventuras, considerando que um ambiente fechado precisa ter elementos atrativos. Harper vai pelo caminho contrário. Para cada bairro ele não gasta mais do que duas páginas de informações em um formato sucinto e claro, com alguns poucos pontos de interesse, detalhes narrativos, pessoas notáveis daquela região e um engenhoso quadro graduando riqueza, segurança e influências. Em apenas duas páginas temos tudo o que precisamos sobre o ambiente, além de elegantes imagens exemplificando a arquitetura local e mapas. Tudo muito funcional, rápido e prático, dando ênfase ao que será necessário e importante no momento do jogo.


Todos os elementos do cenário seguem a mesma dinâmica – praticidade. Seja sobre a alimentação, o serviço de polícia, as facções criminosas, fantasmas ou os rumores, tudo vem de forma clara e enxuta. E isso não torna a informação rala, pois a construção do cenário, como um todo, e a retroalimentação na própria mecânica e aventura, dão sentido na medida certa.

E tudo isso comporta apenas o elemento urbano do cenário. Não esqueçamos que ele também é de fantasia. Temos as ‘forças estranhas’, todos os elementos sobrenaturais do cenário que são uma das engrenagens chave da concepção do cenário. Fantasmas vingativos, demônios, vampiros, pessoas que se associam à eles ou que são apenas suas ferramentas, ou mesmo os cobiçados e mortais leviatãs. Você pode jogar uma campanha inteira sem nunca citar ou cruzar por eles, mas eles estão ali, espreitando, agindo.

Mecânica e Aventura
Blades in the Dark é um RPG que numa olhada rápida pode parecer pouco desafiador aos jogadores. Ele se vale de dados de seis lados (d6) em quatro tipos de rolagens – Ação, Folga, Sorte e Resistência. Resultados de 1 a 3 são um resultado ruim com grandes consequências, uma jogadas de 4 a 5 representam um sucesso, mas com um custo, e uma jogada 6 significa um sucesso completo. O jogador rola quantos dados uma características associada ao que deseja fazer determina e avalia apenas o dado de valor mais alto.

Rapidamente podemos nos enganar achando que a rolagem tem cinquenta por cento de chance de sucesso ou falha. Aqui está a pegadinha. Na verdade a emoção do jogo começa no ‘mas’ que há nas jogadas de sucesso parcial e acabará sendo o sucesso mais vezes alcançado pelo jogador (por uma questão estatística). Esse ‘mas’ será o motor da diversão. Aqui é que o mestre assume e agrega um problema, uma consequência imediata ou uma falha à cena. Isso gera tensão, pois mesmo que as coisas deem certo haverão (e quase sempre há) problemas.

Como exemplo para esse motor, em jogadas de Ação, o mestre determina um Nível de Efeito (no que resultará a ação, entre Limitado, Padrão ou Sensacional) e uma Posição (entre Controlada, Arriscada e Desesperada). Quanto pior a posição pior serão as consequências em caso de falha ou sucesso parcial. O interessante, e que vai nos ajudar a construir a noção do papel dos jogadores no sistema, é que da mesma forma que o mestre apresenta a Posição, os jogadores podem questionar e assumir elementos que modifiquem essa Posição ou otimizem o efeito aumentando a posição. Tudo isso porque quase sempre há um ‘mas’.


E mesmo que tudo dê errado, o jogador ainda pode fazer uma rolagem de Resistência gerando Estresse. O que mais gostei é que conforme esse estresse acumula, o personagem pode simplesmente desistir da vida do submundo. Genial!! Está é a mecânica central à qual devemos dar atenção.

No geral Blades in the Dark é um sistema narrativo simples e que se vale da interação entre mestre e jogadores, como pincelamos nos dois parágrafos anteriores. A tônica é a retroalimentação (até certo ponto) de informações entre esses dois polos construindo em conjunto as cenas e momentos. Não chegamos ao exagero de dizer que é uma construção compartilhada, mas podemos dizer que é um jogo do Mestre fazendo perguntas aos jogadores e estes moldando a cena. O Mestre sabe, por óbvio, o cerne do mistério e os elementos do plot da aventura, mas os jogadores é que preenchem as lacunas da cena com a impressão e percepção dos personagens sobre o ambiente e sua forma de abordagem. Com essas informações o Mestre passa a construir e dar vida à tal ambiente e apresentar o que vai acontecendo, decidindo a Posição e o Nível de Efeito da ação dos jogadores. É um verdadeiro ping-pong gerando uma narrativa de improvisação à cada ‘mas’ apresentado pelo mestre.

E não paramos por aqui. Com o andamento das cenas os jogadores são convidados à novas interações criativas conforme as dificuldades aparecem, seja escolhendo equipamentos de última hora, seja invocando e narrando flashbacks sobre uma ação passada que atua e influencia sobre a complicação atual.

Tendo isso em mente já temos outro elemento deste RPG. O Mestre não precisa perder horas preenchendo folhas e mais folhas com informações, sub-plots e encontros. Uma preparação é necessária sim, mas muito mais enxuta e light, já que nem mesmo ele sabe o que o grupo decidirá fazer.


Pensando na aventura em si ela se divide em três tempos – Jogo Livre, Golpe e Folga - que podem representar uma sessão ou se repetir, em conjunto, na mesma. Eu gosto de imaginar a campanha em Blades in the Dark como uma temporada de um seriado onde há algum grande plot correndo por fora, ao longo das sessões, enquanto cada sessão faz as vias de um episódio composto por esses três tempos representando a aventura da vez.

No Jogo Livre temos as cenas de interação entre os personagens e toda preparação para a ação em si. Nossos vigaristas decidem o que fazer, investigam, levantam informações, fazem contatos e por fim escolhem o alvo e planejam uma Abertura (há seis opções) que seria o plano em si de abordagem. Depois disso temos o Golpe, onde a ação realmente acontece como já exemplificado anteriormente. Por fim temos a Folga, que seria a consequência das ações e outras atividades pessoais dos personagens.

Outro diferencial elegante de Blades in the Dark são os Relógios de Progresso que materializam a ação. Visualmente ele é um círculo dividido em partes, tal qual uma pizza, onde representam o progresso dos personagens para superar obstáculos ou perigos eminentes. A quantidade de divisões referencia-se ao grau de dificuldade. Invadir uma casa de poucos cômodos para surrupiar um documento tendo pessoas dentro que facilmente poderiam flagrar a ação seria algo potencialmente problemático sendo representado por um relógio do ‘dono da casa’, por exemplo, dividido em quatro partes. Esgueirar-se em uma mansão, à noite, com todos dormindo, para assassinar alguém com poucos seguranças, seria representado por um relógio dos ‘seguranças’ dividido em oito partes. À cada ação dos personagens, representada por suas rolagens e suas consequências frente o tipo de ação (controlada, arriscada, desesperada), acarreta em ir preenchendo esse relógio de forma mais rápida ou lenta. Ao completá-lo o perigo ou obstáculo se faz presente. Podem haver vários desses relógios com diferentes divisões conforme os elementos da cena e do ambiente.


Os Relógios de Progresso são uma ferramenta engenhosa ao ponto de deixar claramente nas mãos dos jogadores, e não somente aos dados ou Mestre ou história, a decisão de como agir frente à um perigo eminente. Novamente é priorizada a participação dos jogadores, levando em conta como os personagens percebem, interpretam e atuam sobre as condições da ação momento a momento.

Outra característica que demonstra a ação ativa dos jogadores no desenvolvimento da história e da campanha tem relação com a progressão de seu personagem. Normalmente o acúmulo de experiência vem da conclusão de etapas, obliteração de inimigos ou da boa vontade de mestres. Em Blades in the Dark vem muito do próprio jogador. Realizar rolagens de ação desesperada, correr riscos conforme a cartilha de seu tipo de personagem (mesmo que não tenha sucesso), expressar suas crenças, motivação motivações, raízes ou histórico, ou lidar com seu vício ou trauma. O personagem vai gerenciando, ao longo da sessão, como interagir com os problemas apresentados podendo levar em conta como isso influenciará no desenvolvimento de seu personagem e do bando em si. Mais uma vez o jogador é chamado a assumir um papel crucial, pois isso também influenciará cenas e ações em uma enorme retroalimentação.

Depois de tudo isso eu não poderia deixar de falar na construção dos Personagens. Como tudo em Blades in the Dark, também a construção dos personagens é intimamente ligada ao cenário, que irá reforçar e cobrar dos jogadores por cada uma das escolhas. Temos acesso à sete Cartilhas – Aranha (bom em organizar planos, manobras e artimanhas), Cão de Caça (bom em caçar, rastrear, combates à distância e encontrar coisas), Doutor (bom em alquimia e destruir coisas com sabotagem), Furtivo (bom em esgueirar-se e infiltrar-se), Retalhador (bom em vencer lutas através da violência e intimidação), Suave (bom em lidar bem com situações sociais e empregar subterfúgios) e Sussurro (bom em assuntos mágicos e lidar com fantasmas).


Cada uma das cartilhas possui elementos básicos do tipo de personagem: habilidades especiais próprias e que irão sendo aprendidas ao longo do desenvolvimento do personagem, duas características de ação principais, opções para amigos ou rivais, itens possíveis dele possuir e os resultados de vencer vícios ou ganhar experiência. Agregado à isso o jogador escolhe as raízes (origens familiar e cultural), histórico e o vício, além de distribuir mais quatro pontos nas características de ação. A ficha, seguindo o todo de Blades in the Dark, é sobre dar elementos para que o jogador construa as narrativas no momento do diálogo com o mestre dando suporte na construção da cena. A ficha é um reforno natural e lógico na síntese do jogo – compartilhamento, cooperação e leveza.


Críticas e Problemas
Não conheço nenhum RPG que não tenha algum problema, por melhor que ele seja. Mas logo que recebi o livro da editora para resenha-lo e comecei a lê-lo fiquei impressionado. Não sou do tipo que ponho panos quentes ou amenizo críticas, mesmo tendo recebido a obra da editora. Crítica é crítica e tento fazê-la da forma mais responsável possível em respeito de quem acompanha a Confraria em sua jornada de mais de dez anos. Mas os problemas de Blades in the Dark podem ser classificados como detalhes ou cuidados e não erros. Eu até poderia reclamar do tamanho da fonte, já que minha visão de quase cinquenta anos se cansa com facilidade, mas mesmo isso tem um porque no todo da obra, ajudando a condensar a informação em pontos importantes..

Os cuidados que quero ressaltar ficam centrados na condução do jogo e na relação dos jogadores com o tipo de mecânica. Este não é um jogo para combar e acumular xp. Não é um jogo para ser um herói e realizar feitos mirabolantes. Não é um jogo para sair cortando ao meio tudo o que respira. É um jogo sobre mudar de vida, sobre ir contra o status quo, sobre fazer o que for necessário para alcançar o que se quer... e pagar o preço por isso. É importante que os jogadores assumam um papel de cumplicidade para que a aventura dê resultados. Da mesma forma que os jogadores são convidados a criar e influenciar cooperativamente a campanha, eles também são responsáveis por ela, ainda mais que o mestre.

O Mestre, mais que em outras oportunidades, é chamado a manter os jogadores dentro de um espaço de realidade frente o cenário apresentado. Da mesma forma que ele é menos desgastado com preparações e papeladas, à ele é confiado o fiel da balança para que, por meio do diálogo e inquirições, mantenha os jogadores dentro da proposta do cenário. Embora aparentemente com menos ‘poder’, ele é importante para que a mecânica seja usada com lógica e em prol da diversão inovadora deste RPG.

Não cometerei o erro de dizer que este RPG não é aconselhado para rpgistas novatos, justamente por ser ideal para ensinar desde cedo que RPG não é uma caixinha centrada em dois ou três sistemas canônicos. RPG é muito mais que isso.


Conclusão
Até aqui apenas arranhamos toda a experiência que Blades in the Dark pode proporcionar aos jogadores. Nem ao menos abordamos a questão da construção e desenvolvimento dos Bandos ou de como o elemento sobrenatural atua de forma mais íntima no cenário. Não é minha intenção esgotar o tema, e nem poderia em espaço tão curto.

Mas com tudo o que apresentei até aqui posso garantir que este RPG é uma experiência nova, revigorante e criativa que qualquer um que seja apaixonado por este maravilhoso hobby deve degustar. Uma forma inovadora de participar como mestre e jogador. Uma forma de desenvolver sua capacidade narrativa. Uma forma de cooperar e interagir na construção de uma aventura. Uma forma de ver com outros olhos seus papéis na sua mesa semanal. É, sem dúvida, uma forma de desenvolver-se como rpgista.

Nota: 9,5

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2 comentários:

R disse...

Muito boa a análise do Blade, estou interessado nesse sistema. Estou pensando seriamente em adquirir por esses meses. Só fico a dúvida de como montar as consequências para as ações dos jogadores, há um modelo a seguir ou é feito pelo narrador na hora, se for não geraria um pequeno atraso no jogo?

João Brasil disse...

Salve R...que bom que gostou da resenha. Bom, existem 5 consequências possíveis - efeito reduzido, complicações, oportunidade perdida, posição prejudicada e dano. Cabe ao mestre determinar uma ou mais consequências de acordo com a narrativa, o estilo e o tom determinado pelo grupo de jogadores. (página 34)