Resenha de Cultos Inomináveis
da Buró Brasil
Já faz quase um ano que aqui mesmo na Confraria de Arton noticiamos e resenhamos pela primeira vez Cultos Inomináveis. Na época a notícia saiu referencianda a Redbox como a editora que pretendia trazer esse excelente RPG para o Brasil. Hoje, estamos aqui de volta, para falar de Cultos Inomináveis, agora sob o selo da Buró Brasil e que tem o início de seu financiamento coletivo neste dia 11 de fevereiro.
Essa é uma resenha atualizada usando como base a edição beta em português (a resenha anterior se baseava na edição espanhola original da obra) que recebemos da editora. Por isso mesmo muita coisa poderá ser parecida com a resenha anterior. O importante é que o lançamento de Cultos Inomináveis é importante demais para passar em branco.
Cultos Inomináveis (Cultos Innombrables) é um RPG lançado originalmente pela editora espanhola Nosolorol, criação de Manuel Suaeiro, Ricardo Dorda, Luis Barbero e Jokin García.
Em seu conceito básico Cultos Inomináveis é um jogo de RPG dentro de uma temática de horror lovecraftiano onde os jogadores fazem parte de um culto secreto em um mundo análogo ao nosso onde a existência dos ‘Mitos’, ou a ‘Verdade’, é conhecida em certo ponto pelas pessoas. Os personagens neste RPG são diferentes do que vemos em muitos jogos com a mesma temática. Ao invés de pesquisadores, incrédulos investigadores ou combatentes alienados da existência da ‘verdade’, temos verdadeiros cultistas que têm conhecimento dos mitos de Cthulhu e detém algum conhecimento sobre eles e pretendem tirar algum benefício ou vantagem disso, seja para sucesso, poder, riqueza, aceitação social ou tantas outras coisas que possam servir de motivação para este personagem.
Muito de um jogo de RPG de horror vem de dois pontos – cumplicidade dos jogadores e ambientação. Quanto a cumplicidade dos jogadores os autores e mestres não podem fazer muito, mas quanto à criação de uma cenário apropriado a conversa é outra. O livro Cultos Inomináveis consegue criar uma ambientação e atmosfera únicas. Percebemos ao longo da leitura um cuidado para que cada detalhe direcione o leitor para o clima desejado, tanto por imagens escolhidas e trabalhadas impecavelmente, pela diagramação mesclando um visual com elementos que lembram um diário de repleto de recortes e pelo texto. Tudo é pensado no clima desejado. No início de cada um dos capítulos temos pequenos contos de quatro páginas chamados de Relatos de autoria de Rosendo Chas Patier misturando o assunto que será visto no capítulo com o muito do clima que esse tipo de temática trabalha. Em muitos casos esses contos podem ser uma aula de como mestrar ou interpretar dentro do cenário, até por que temos peculiaridades únicas aqui.
Personagem
A criação de personagens está dentro do sistema Hitos próprio da editora Nosolorol e pode fazer alguns acharem aspectos semelhantes à FATE nesse ponto inicial. A criação é muito simples, intuitiva e rapidamente monta-se um interessante personagem. Primeiramente escolhe-se um conceito, algo como um elemento central que definirá seu personagem. O livro dá uma explicação muito interessante – “é um elemento central do personagem, é como você o descreveria se você pudesse usar apenas duas ou três palavras, ou como você se referiria a ele se fosse alguém conhecido, mas sem um nome.”
Conceito escolhido, distribuímos 20 pontos (de 1 a 10) entre quatro características – Força, Reflexo, Vontade e Inteligência – e que devem ser acompanhados de um recurso descritivo criado pelo jogador. É uma sacada muito boa. Estamos acostumados à simplesmente graduar um atributo e entender que todos aqueles com o mesmo valor no mesmo atributo terão as mesmas performances. Errado. Como o recurso narrativo um personagem com Reflexos 5 pode ter um descritor ‘Felino’, enquanto outro personagem também com Reflexos 5 pode ter um descritor ‘Boa pontaria’ (exemplos tirados do livro). Isso faz como que consigamos, por uma lado dar um tempero único ao nosso personagem, por outro criar um diferenciação saudável entre os personagens. Esses recursos narrativos podem ser positivos ou negativos conforme a graduação da característica. Uma Inteligência baixa pode ter o recurso narrativo “Maniático” enquanto uma Força baixa pode ter o recurso narrativo “Delicada” (exemplos tirados do livro).
Depois disso ainda temos mais três elementos cruciais para os personagens. Escolhemos quatro Marcos criados por nós que servem para descrever a vida do personagem e entender como ele chegou até ali. São frases descritivas e curtas tais como “pertence à uma longa linhagem de policiais” ou “seu primeiro assassinato não lhe causou qualquer emoção” ou ainda “sua mãe morreu em estranhas circunstâncias”.
Logo depois distribuímos 40 pontos (de 1 a 10) em Habilidades à nossa escolha dentro do aspecto do nosso personagem. Não temos uma lista fria e delimitada de habilidades, mas 8 tipos de habilidades onde devemos escolher um aspecto para cada um desses tipos. Além disso, esses pontos também são usados para nas habilidades mágicas (as magias que estão no capítulo 7). Por exemplo, um dos personagens de exemplo do livro tem no tipo combate a habilidade Experiência Militar Escassa 2 e no tipo cultura a habilidade Leitor Ávido 7, enquanto outro tem no tipo combate a habilidade Facões 6 e em cultura tem a habilidade Autodidata 3. Isso amplia em muito as possibilidades de uso de habilidades durante o jogo, já que nossa criatividade e bom senso são nossos limites.
Por fim temos Pontos de Drama e Complicações. O primeiro serve como um referencial de nível do personagem e que, entre outras coisas, permite alguma ingerência sobre a história. Já Complicação seria uma frase que represente um aspecto negativo do personagem, algo como: “precisa ter sempre a última palavra” ou “sua prepotência faz tratar a todos como crianças”.
Sistema
O sistema Hitos se baseia em uma única mecânica para determinar o resultado das ações. Ele usa Característica + Habilidade + 3d10 (escolhendo o valor do dado conforme a dificuldade) em comparação à um fator de dificuldade (dentre cinco opções de 10 a 30). Para ações fáceis usamos o maior valor dentre os dados, para ações normais usamos o valor intermediário dos dados e para ações difíceis usamos o menor valor dos dados. Para tudo se usará essa mecânica.
Um acréscimo muito interessante aqui é o uso de Aspectos. Aspectos são quaisquer frases ou expressões usadas para definir nosso personagem – do recurso narrativo dos atributos às complicações. Esses aspectos podem (e devem) ser ativados durante a aventura contribuindo ou modificando a história. Para eles serem ativados temos três necessidades: que ele tenha sentido no que o jogador queira fazer, que se encaixe na atual situação dramática do jogo e que o jogador gaste 1 ponto dramático.
Eventos sobrenaturais (como magia ou criaturas, entre outras coisas) testam a estabilidade mental do personagem (seu valor é Vontade + metade do valor de Inteligência). Contatos com esses elementos sobrenaturais causam reações no personagem, gerando perda de sanidade e crescentes graus dentre um dos três aspectos: Alterado, Transtornado ou Enlouquecido. Isso culmina com a perda da estabilidade mental do personagem.
É claramente um sistema simples e de fácil resolução, contando com adequada participação e interferência do jogador, se valendo dos aspectos dos personagens, tudo em benefício da história.
Cenário
Os três capítulos seguintes – Ambientação, Criaturas e Cultos -, cada um com seu foco, se centram em todos os elementos para criar um ambiente propício para que a aventura aconteça e tenha peso. Centrado no mundo concebido por H.P. Lovecraft o capítulo da Ambientação nos apresenta todos os aspectos que compõe um cenário lovecraftiano. Centrando boa parte dele nos mitos e no conhecimento acerca deles, temos aqui elementos para entender como o mundo em si funciona neste cenário, mas principalmente o que há além deste mundo e como e onde eles se tocam, com apresentações claras e inebriantes das terras dos sonhos. Ao fim a riquíssima lista de rumores é um prato cheio para um sem número de campanhas.
O capítulo das Criaturas é uma benção em dois sentidos. Primeiro por ter uma vasta galeria de opções, principalmente para aqueles que não estão acostumados com esta natureza de RPG. Em segundo lugar pela clareza de apresentação das informações. Nada de conhecimento enciclopédico e vasto. A métrica é sempre a mesma. Em uma única página toda a informação de forma clara e direta, não simplista, mas enxuta e acessível com todas as informações que realmente são necessárias em jogo, seguido de uma imagem belíssima de páginas inteira.
O terceiro capítulo dessa tríade de ambientação tem relação com os Cultos. Aqui temos em cerca de vinte páginas um ‘faça você mesmo o seu culto’. Sendo o foco central de todo o jogo os cultos, eles ganham mais tempero quando são reflexo dos jogadores que o estão vivenciando e seguem uma lógica que perpassa por todo o livro: “a verdade pode ser usada para propósitos muito diferentes por grupos muito diferentes”. O culto, reflexo material da verdade que um grupo de pessoas alcançou, estrutura-se de forma a representar o interesse do grupo, de acadêmicos excêntricos interessados pelo ocultismo à seguidores de um visionário desaparecido até uma típica família americana unida pela prática do canibalismo. Todos os elementos conceituais ou de regra são apresentados aqui de forma clara e compreensível.
Magias
As magias são o sétimo capítulo e poderíamos dizer que tem mais relação com os personagens e sua construção, mas na verdade ela é parte integrante do cenário... ora, um mundo lovecraftiano sem magia é quase nada! As magias são entendidas como habilidades de manipulação da realidade e por isso chamadas de Habilidades Sobrenaturais. Enquanto nas habilidades temos uma para cada tipo, podemos ter mais do que apenas uma magia para nosso personagem, embora isso possa fragmentar demais os pontos disponíveis. Temos três “graus” para uso de magias representando o quanto essa magia manipulou a realidade: menor, intermediário e maior. O uso de magias também implica em um efeito nocivo ao personagem e conforme o grau de sua magia gerará um determinado grau de efeito nocivo. Assim, abusar da magia é um caminho sem volta para a sanidade. Cada uso será mais difícil do que o anterior, e poderá gerar uma maior perda de estabilidade (tanto naqueles que a usam quanto naqueles que apenas vêem a magia) e terá um efeito mais notável em nossa realidade.
A mecânica do uso das magias frente à degeneração da estabilidade mental do personagem, nos levará ao mecanismo que com mais degeneração, menos perda de estabilidade terá o personagem, o que nos leva a outra das principais características do jogo: o personagem quanto menos humano, mais poderoso se tornará. Quanto mais na beira do abismo, mas poderoso ele será. A tentação do poder corrompendo lentamente o personagem.
Assim como as habilidades, onde o jogador literalmente as cria dentro de um dos tipos de habilidades, as magias são também criadas, tendo o mestre como árbitro de sua conveniência ou não no jogo: “Cada habilidade sobrenatural deve ser cuidadosamente escolhida e seus possíveis efeitos combinados com o Mestre do Jogo, que é quem tem a palavra final sobre sua adequação. A habilidade deve ter um caráter específico, o suficiente para não ser um canivete suiço que se encaixe em qualquer efeito, assim como ter sua própria particularidade idiossincrática, mas ao mesmo tempo deve ser flexível o suficiente para que possa ser usado de diferentes maneiras durante o jogo.” Na dúvida, o final do capítulo possui muitos exemplos de magias prontas, seja para uso direto (que recomendo para os iniciantes) ou com base para construir as suas próprias magias.
Mestre e Aventuras
O oitavo capítulo é aquele que todo mestre precisa dar uma olhada atenta quando se aventura em um jogo cuja natureza não esteja acostumado. Levar adiante uma aventura de horror lovecraftiano não é tarefa difícil, mas tem suas peculiaridades. Ele traz uma série de informações de criação e condução de aventuras de horror, como lidar com personagens iniciantes no tipo de aventura, interpretação de NPCs, como aplicar as regras e de que forma ter autoridade narrativa aliada à cumplicidade narrativa dos jogadores, como auxiliar os jogadores e principalmente, como manter a ambientação e clima da campanha.
O décimo capítulo contém duas aventuras prontas chamadas A Conspiração Luveh-Kerapf e Sua Dor é sua Oferta. As duas aventuras compreendem dois aspectos introdutórios de jogadores. A primeira tem personagens que ainda não fazem parte de um culto e pode servir de ponto de partida para qualquer campanha que o mestre deseje. A segunda tem personagens já inseridos em um culto. Ambas possuem elementos que servirão para testar e exercitas todos os aspectos do jogo e de sua condução.
Por fim, e para não deixar passar em branco algumas palavras da arte interna do livro. Borja Pindado Arribas e Marga F. Doinare nos presenteiam com ilustrações impecáveis e captando todo o estilo de um cenário como este pede. Nada exagerado ou fora de contexto, temos alternância entre ilustrações belíssimas e elementos imitando um diário que deixam o livro como um todo com um aspecto totalmente concatenado com uma obra de horror lovecraftiano.
A Verdade
O resultado final de Cultos Inomináveis é um RPG sólido que foge do simplismo que o senso comum dos jogos baseados em Lovecraft acaba nos arrastando. Sua abordagem nova e original é um colírio para quem é fã de longa data da temática, e uma agradável surpresa para é iniciante neste universo.
Ele tem a medida certa, sob a tutela de jogadores comprometidos, de oferecer uma experiência nova no que tange à aventuras de horror. O elemento da perturbação crescente em paralelo ao crescente poder dos personagens pode levar a situações de interpretação que outros RPGs não esperam. Se o grupo como um todo - mestre e jogadores - souberem equilibrar a degeneração da sanidade pelo sobrenatural (para que não se torne algo banalizado) e os momentos de ação, o jogo será uma experiência gratificante.
Falando agora especificamente da edição em português da Buró, que tenho em mãos. Embora seja uma versão Beta, ela está extraordinária. Eu me dei ao trabalho de comparar página por páginas, parágrafo por parágrafo e posso dizer que tanto em tradução quanto em diagramação teremos uma obra de nível superior em mãos.
Sabemos que lançar RPGs fora da temática usual da fantasia é sempre um risco e requer uma boa dose de coragem. Mas coragem é o que não faltou à Buró Brasil na escolha e lançamento de Cultos Inomináveis... algo que precisamos urgentemente no mercado brasileiro de RPG. O financiamento coletivo, como já dissemos, começa neste dia 11 de fevereiro (às 14hs) e posso garantir que qualquer um que adquira esse excelente livro não se arrependerá de forma alguma. Ele será a porta de entrada para uma nova e assustadora forma de se aventurar no RPG!
Bons jogos e que os deuses da escuridão os acompanhem!!!
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