segunda-feira, 11 de outubro de 2021

iHunt entra em financiamento dia 25, um RPG de e para a comunidade LGBTQ+ (resenha)

 iHunt entra em financiamento dia 25,
um RPG de e para a comunidade LGBTQ+ (resenha)

 

Vamos falar de jogos sensacionais e crítico? Então vamos falar de #IHunt: The Tabletop RPG. Criação de Olivia Hill e Filamena Young, lançado pela Machine Age Productions, baseado no sistema FATE e que será lançado no Brasil em português pela IndieVisivel Press. A muito tempo que eu aguardava a notícia de que iHunt seria lançado no Brasil, e quando soube dessa informação alguns meses atrás, fiquei ansioso em a noticiar. O financiamento coletivo começará em 25 de outubro próximo pela plataforma Catarse e nada melhor para aguardar a data e contar os dias do que uma resenha! Vamos lá, então?

O RPG iHunt é baseado na série de romances de Olivia Hill chamado de iHunt: Killing Monsters in the Gig Economy. O RPG já começa de forma diferente e direta: “#iHunt é um jogo de e para a comunidade LGBTQ+. Este é um jogo de e para pessoas pobres. Este é um jogo para todas as pessoas que a sociedade deixa para trás e deixa cair pelas beiradas. Escrevemos este jogo para nos vermos chutando a bunda em um mundo em que a indústria de jogos em geral ainda é hostil à diversidade, apesar de todas as alegações em contrário. Este não é um jogo com uma barra lateral sobre como “você tem permissão para interpretar personagens não binários de gênero”. Este é um jogo sobre pessoas marginalizadas.”

Infelizmente o tema LGBTQ+, assim como política ou economia no RPG (e que também serão abordados nele), ainda são alvos da ira de uma parcela e preconceituosa da sociedade. E não é por ser um produto para nerds e geeks (com muitas aspas aqui) que haveria menos preconceito e hostilidade. É óbvio que uma mensagem dessas logo na segunda página do livro pode parecer um fechar de portas para quem não pertence à comunidade. Ledo engano. Uma mensagem dessas está apenas apresentando o cartão de visitas do que todos poderão ler nas páginas e nas entrelinhas que virão à frente. É uma forma de dizer “se isso te incomoda, este não é um RPG para você... tchau!”. Mas ele é um RPG para todos, para todos os que não se incomodam com isso, pois não há nada para se incomodar com isso.

Você pode jogar se não pertencer a um desses grupos marginalizados? Lógico. Mas temos que ter claro que este é um jogo escrito com essas preocupações, sem desculpas ou palavras medidas. Este é o nosso mundo e você é um dos alvos centrais desse RPG ou pode ser um turista, ser educado e respeitoso, e que vai se divertir com esse jogo e entender o que se passa com muitas das pessoas que às vezes estão ao nosso lado e não percebemos ou insistimos em não ver nada.

E não para por aí. #iHunt é um jogo para bater na cara da realidade econômica e política quando ele joga e compara a realidade vivida no mundo do cenário com a realidade vivida por muitos de nós. A atmosfera de #iHunt é palpável e crua e isso é fundamental tanto na criação do ambiente do jogo quanto no entendimento do que está por trás desse ambiente e o quanto ele é baseado no real. Os temas de #iHunt se interligam em um amálgama coerente e necessário. O verdadeiro monstro aqui pode ser claramente indicado como a crueldade do capitalismo em estágio avançado e, de certa forma, os monstros que enfrentamos neste RPG, vampiros, lobisomens e demônios, são tão vítimas dele quanto qualquer outra pessoa. Vejamos a seguir.


A Premissa
#iHunt é um RPG sobre o uso de um aplicativo para conseguir contratos para matar monstros. Os jogadores assumem o papel de personagens com problemas e conectados no uso de um aplicativo chamado #iHunt. O aplicativo #iHunt permite que alguém publique um trabalho de caça a monstros - tal como se chamasse um Uber assassino - então os caçadores em potencial podem percorrer e encontrar trabalhos que sejam convenientes, fáceis ou que apenas paguem muito bem. Depois de concluírem o trabalho, tiram uma selfie com seu alvo morto para comprovação da conclusão do serviço e recebe sua recompensa.

Mas o diabo está nos detalhes. Nem todos os trabalhos serão convenientes, poucos, se houver algum o serão. Muitos terão sua definição como sendo fácil e com pagamento alto, até que você leve em consideração coisas como contas médicas, subornos, ferramentas e mais. Além disso, enquanto a caça a monstros é tecnicamente legal, muitas das coisas que você precisa fazer durante a caçada não são. De repente, sua “noite de trabalho fácil” está atingindo níveis de complicação preocupantes.

Ele pretende ser uma crítica ao capitalismo moderno – os monstros são uma metáfora disso - e diferente de outros RPGs, como Red Markets, ele é muito fundamentado na realidade. Há um elemento de sátira aqui, mas o argumento de que um aplicativo criado para matar pessoas que podem ou não ser monstros seria legitimado na mesma onda de hype do Uber é real demais para ser ridículo.

Os jogadores não são “os escolhidos”, eles não fazem isso por gostar da emoção ou pela fama. Embora possa haver um garoto rico que pega um contrato do #iHunt por uma emoção momentânea, a maioria dos caçadores são vítimas desesperadas do capitalismo de estágio avançado (às vezes chamado de geração do milênio) que se voltaram para o #iHunt por causa de dívidas com empréstimos estudantis, uma família com problemas, filho para sustentar, contas médicas fora de controle, aluguel atrasado ou todas as opções acima. 

As motivações principais dos personagens para fazer o que fazem disso como um trabalho perigoso e não confiável é a necessidade de dinheiro, e fica claro em várias ocasiões que, se os personagens pudessem parar de fazer esse show bizarro no #iHunt, eles o fariam imediatamente. O que mantém os personagens no ciclo de ‘apresentações’ de caça a monstros não é uma noção Cyberpunk de ação, é simplesmente a pobreza que existe para muitas realidades e porque se torna tão próximo da maioria de nós. Quando você está tentando pagar contas médicas, alimentar uma criança ou apenas manter a energia de casa ligada, e está fazendo isso com um salário típico de nossos dias, a entrada repentina de alguns milhares ou até mesmo algumas centenas de dólares podem fazer uma diferença tremenda.

O conceito principal que é reconhecido desde o início, e é deixado claro, é que mesmo que seja possível jogar #iHunt como um jogo de caça aos monstros alegre e chocante, esse não é o modo padrão ou sua intenção. O cenário implícito é uma conversa em torno da pobreza, e os jogadores se relacionam com a representação da pobreza no jogo ou ficam profundamente desconfortáveis ​​com ela.


O Cenário
O cenário padrão para o #iHunt é a cidade fictícia de San Jenaro, na Califórnia. A cidade é apresentada de forma bem aberta e sem grandes detalhes, pois os romances já trabalharam muito com a criação da ambientação dela, mas isso não prejudica em nada quem não os leu. Há descrições genéricas e rápidas que conseguem dar a tônica do ambiente – Gótico moderno, repleto de opulência decadente e hiper-realista – e que podem ser adaptadas com muita facilidade pelos mestres.

Se juntarmos essa noção estética com a premissa do ‘nós contra eles’, onde o ‘nós’ são todos os que são marginalizados/necessitados e o ‘eles’ são aqueles que têm os benefícios, teremos uma clara noção de cenário como muitos já vistos em filmes e livros variados de realidades distópicas ou mesmo reais. Mas mais do que um cenário é a segurança social (ou a falta dela) no cenário e as suas pessoas que o tornam real. Vejamos isso com os personagens.


Os personagens
Pesando em termos de jogo temos uma boa variedade entre os personagens em #iHunt, chamados de Kinks.
 

- Evileenas: que lutam com o conhecimento e contêm subculturas como Watcher, Arcanist e Alchemist;

 

- Knights: que lutam literalmente e contêm subgrupos como Operative, Hitter e Player;

 

- Phooeys: que lutam com a tecnologia e têm grupos como Hackers, Drivers e Anarquistas;

 

- 66: que lutam com carisma e têm facções como Rosto, Recortes e Agitadores.

 
Mas em suma quem são esses personagens que precisam se valer de um aplicativo de caça de monstros para sobreviver? As autoras estabelecem um perfil definido para os personagens. Pode parecer um pouco estranho quando a maioria dos sistemas de RPG preza pela customização máxima. Mas isso não serve para a premissa apresentada desde o início do livro pelas autoras.

O perfil do personagem caçador em #iHunt é:
 

- 21-35;

- solteiro;

- locatário;

- com ensino médio;

- com registro criminal de contravenção;

- sem diploma universitário;

- dívida de US $ 40 a 100 mil;

- condições médicas crônicas;

- trabalhando em período integral em outro lugar;

- LGBTQ+

 
Não é preciso que o personagem criado cubra todos esses itens. Eles são indicativos que isolados ou juntos representam o público alvo para este RPG. No site da editora a autora fala de forma bem clara e ponderada sobre a indicação de um perfil para os personagens: “Uma das primeiras coisas que você precisa fazer em um jogo é estabelecer as normas. Diga ao leitor o que é "média" antes de quebrar o molde. Em alguns jogos, os jogadores vão retratar jovens aventureiros atrás de dragões. Em alguns jogos, eles são vampiros ingênuos subindo no estrato social. No #iHunt, eles são adultos mais jovens que estão lutando.  No entanto, eu queria ser muito específico. Todas essas coisas são possíveis ganchos na trama de uma história #iHunt. Considere como eles podem complicar a vida de um personagem.”

Todos esses elementos são condizentes com perfis de pessoas que estão à margem da normatização social estabelecida. Segundo uma das autoras: “Então, há algo a ser dito sobre lutas aqui. Mas deixe-me esclarecer perfeitamente o que isso representa da perspectiva do design de jogos. Ele afirma corajosamente que os heróis de nossa história tendem a ser pessoas marginalizadas e sub-representadas nos jogos. Este é um jogo de pessoas LGBTQ+ e é um jogo para pessoas LGBTQ+. Se você não é LGBTQ+, isso não quer dizer que este não é um jogo para você. Mas é sem desculpas sobre nós de várias maneiras, e se você não é LGBTQ +, talvez considere usar isso como uma oportunidade de entrar em nosso lugar por um tempo.”

Lendo até aqui e juntando tudo percebemos como o sistema Fate e seus Aspectos se encaixam tão bem para o andamento de #iHunt, mas vamos ver isso mais adiante.


Os Monstros
O jogo oferece um cenário, a cidade de San Jenaro, no sul da Califórnia, e com ele vem vários tipos de monstros, ou Clades. O jogo também oferece tudo o que você precisa para criar seus próprios monstros. Além de Aspectos (veremos adiante), os monstros são definidos por três extras: Recursos, Presents e Banes. Recursos são "verdades" estruturais sobre um determinado monstro, Presents são habilidades especiais que o monstro pode ter e Banes são limitações sobrenaturais, como a fome de um vampiro por sangue ou vulnerabilidade a uma estaca no coração. Tudo isso pode ser usado, no estilo de compra pontual, para criar monstros a partir de conjuntos de atualização que são dimensionados de acordo à uma 'classificação por estrelas'. Sendo este um jogo sobre um aplicativo, a classificação por estrelas é a dificuldade do trabalho dado no aplicativo e que se correlaciona com a recompensa que você pode esperar receber.


A Mecânica
O #iHunt é baseado no Fate Core, mas você não precisa de uma cópia das regras independentes para começar a jogar. Não vou me demorar explicando como funciona Fate, pois já fiz isso várias vezes em outras resenhas. É a mesma lógica. O importante é salientar que esse é um sistema narrativo e cai como uma luva para a premissa do #iHunt. E onde está a sinergia perfeita entre #iHunt e Fate? Está nos Aspectos.

Aspectos são um dos elementos centrais de Fate. Eles são frases que descrevem o personagem e/ou suas motivações. Esses aspectos podem ser canalizados/invocados para conceder bônus ou usados ​​contra você pelo Mestre. De forma simplificada esses aspectos podem ser invocados pelo jogador narrativamente justificando seu uso com a cena e gerando bônus.

Ora, esse é um jogo centrado em vivências complicadas, difíceis e uma prática que os personagens verdadeiramente se incomodam em ter. Aspectos serão o ponto central da construção mais íntima desses personagens, interligando personagem e realidade vivida e com certeza serão momentos incríveis dentro do andamento da sessão. Alguns exemplos de aspectos ajudam muito a explicar como os personagens podem funcionar em um jogo.

Há uma mudança mecânica interessante com relação ao uso de Fate para #iHunt – os Edges. A ideia do dado Edge é que, em qualquer conflito, um lado tem “o limite” e, semelhante à criação de aspectos, o lado que ganha ou começa com “o limite” tem um uso gratuito dessa vantagem. O dado de Edge é um d6 padrão que substitui um dos seus Dados típicos de Fate em uma rolagem de quatro dados. Isso significa que, em vez de um dado que varia de -1 a +1, você tem um dado que varia de 1 a 6 ... isso faz uma diferença gigantesca nos resultados de um teste. Mecanicamente muito legal para vantagem situacional e numericamente grande o suficiente para que os jogadores possam tomar decisões estratégicas em torno dele.

Existem outras mudanças menos significativas, como a lista de perícias que é completamente diferente, mas isso não é uma mudança significativa para Fate. A nova lista de perícias é totalmente apropriada ao tema do jogo e de fácil uso.


Final
Não tinha tido tão claro como depois de começar a jogar RPGs narrativos o quanto me agrada jogar com personagens que não são “os escolhidos” – aqueles que têm o dever te salvar à todos, pois eles e apenas eles podem fazer isso e querem o fazer. Eu me agrado de personagens que caem de paraquedas na ação e são levados à participarem dos acontecimentos por não terem escolha e maldizem o que tem de fazer.

Personagens como esses, de #iHunt, são jogados na ação para não morrerem de fome, não perderem um teto ou simplesmente para comprar a próxima dose do medicamente que os mantém vivos. Eles odeiam o que fazem e questionam o porquê de terem de fazê-lo. Eles querem mudar essa realidade e sua condição. Eles querem lutar contra tudo e contra todos para isso. Isso cria um debate não necessariamente sutil, mas muito claro e vívido. É um jogo necessário por sua relevância nos tempos de hoje. É um jogo importante para dar voz à uma condição ou posição que nem sempre temos presente em nós, mas nos afeta à quase todos.

A indicação de um perfil para os personagens se casa perfeitamente à proposta de dar voz e questionar a relação imposta de relação desses indivíduos com o mundo ao seu redor.

A escolha de Fate é extremamente feliz por possibilitar todos esses questionamentos de forma à influenciem mecanicamente o andamento da sessão e a relação do personagem com a ação. O uso dos Aspectos pode proporcionar que jogadores e mestres façam uso dos Aspectos dando grande peso à “aventura” e tornando ela crua, real e incômoda como é a realidade. Jogar #iHunt será uma possibilidade de enfrentar e questionar uma realidade que se acostumou em colocar de lado o que fere as regras de ‘normal’, aquilo que é diferente ou que não se mostra produtivo segundo certos parâmetros. #iHunt não é um escape, é a possibilidade de ensinar, aprender e esbofetear a realidade.

Bons jogos!



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