iHunt entra em
financiamento dia 25,
um RPG de e para a
comunidade LGBTQ+ (resenha)
Vamos
falar de jogos sensacionais e crítico? Então vamos falar de #IHunt: The
Tabletop RPG. Criação de Olivia Hill e Filamena Young, lançado pela Machine Age
Productions, baseado no sistema FATE e que será lançado no Brasil em português
pela IndieVisivel Press. A muito tempo que eu aguardava a notícia de que iHunt
seria lançado no Brasil, e quando soube dessa informação alguns meses atrás,
fiquei ansioso em a noticiar. O financiamento coletivo começará em 25 de outubro
próximo pela plataforma Catarse e nada melhor para aguardar a data e contar os
dias do que uma resenha! Vamos lá, então?
O
RPG iHunt é baseado na série de romances de Olivia Hill chamado de iHunt:
Killing Monsters in the Gig Economy. O RPG já começa de forma diferente e
direta: “#iHunt é um jogo de e para a comunidade LGBTQ+. Este é um jogo
de e para pessoas pobres. Este é um jogo para todas as pessoas que a
sociedade deixa para trás e deixa cair pelas beiradas. Escrevemos este jogo
para nos vermos chutando a bunda em um mundo em que a indústria de jogos em
geral ainda é hostil à diversidade, apesar de todas as alegações em
contrário. Este não é um jogo com uma barra lateral sobre como “você tem
permissão para interpretar personagens não binários de gênero”. Este é um
jogo sobre pessoas marginalizadas.”
Infelizmente
o tema LGBTQ+, assim como política ou economia no RPG (e que também serão
abordados nele), ainda são alvos da ira de uma parcela e preconceituosa da
sociedade. E não é por ser um produto para nerds e geeks (com muitas aspas
aqui) que haveria menos preconceito e hostilidade. É óbvio que uma mensagem
dessas logo na segunda página do livro pode parecer um fechar de portas para
quem não pertence à comunidade. Ledo engano. Uma mensagem dessas está apenas
apresentando o cartão de visitas do que todos poderão ler nas páginas e nas
entrelinhas que virão à frente. É uma forma de dizer “se isso te incomoda, este
não é um RPG para você... tchau!”. Mas ele é um RPG para todos, para todos os
que não se incomodam com isso, pois não há nada para se incomodar com isso.
Você
pode jogar se não pertencer a um desses grupos
marginalizados? Lógico. Mas temos que ter claro que este é um jogo
escrito com essas preocupações, sem desculpas ou palavras medidas. Este é
o nosso mundo e você é um dos alvos centrais desse RPG ou pode ser um turista,
ser educado e respeitoso, e que vai se divertir com esse jogo e entender o que
se passa com muitas das pessoas que às vezes estão ao nosso lado e não
percebemos ou insistimos em não ver nada.
E
não para por aí. #iHunt é um jogo para bater na cara da realidade econômica e
política quando ele joga e compara a realidade vivida no mundo do cenário com a
realidade vivida por muitos de nós. A atmosfera de #iHunt é palpável e crua e
isso é fundamental tanto na criação do ambiente do jogo quanto no entendimento
do que está por trás desse ambiente e o quanto ele é baseado no real. Os temas
de #iHunt se interligam em um amálgama coerente e necessário. O verdadeiro
monstro aqui pode ser claramente indicado como a crueldade do capitalismo em
estágio avançado e, de certa forma, os monstros que enfrentamos neste RPG,
vampiros, lobisomens e demônios, são tão vítimas dele quanto qualquer outra
pessoa. Vejamos a seguir.
A Premissa
#iHunt
é um RPG sobre o uso de um aplicativo para conseguir contratos para matar
monstros. Os jogadores assumem o papel de personagens com problemas e
conectados no uso de um aplicativo chamado #iHunt. O aplicativo #iHunt
permite que alguém publique um trabalho de caça a monstros - tal como se
chamasse um Uber assassino - então os caçadores em potencial podem
percorrer e encontrar trabalhos que sejam convenientes, fáceis ou que apenas
paguem muito bem. Depois de concluírem o trabalho, tiram uma selfie com seu
alvo morto para comprovação da conclusão do serviço e recebe sua recompensa.
Mas
o diabo está nos detalhes. Nem todos os trabalhos serão convenientes,
poucos, se houver algum o serão. Muitos terão sua definição como sendo fácil e
com pagamento alto, até que você leve em consideração coisas como contas
médicas, subornos, ferramentas e mais. Além disso, enquanto a caça a
monstros é tecnicamente legal, muitas das coisas que você precisa fazer durante
a caçada não são. De repente, sua “noite de trabalho fácil” está atingindo
níveis de complicação preocupantes.
Ele
pretende ser uma crítica ao capitalismo moderno – os monstros são uma metáfora
disso - e diferente de outros RPGs, como Red Markets, ele é muito fundamentado
na realidade. Há um elemento de sátira aqui, mas o argumento de que um
aplicativo criado para matar pessoas que podem ou não ser monstros seria
legitimado na mesma onda de hype do Uber é real demais para ser ridículo.
Os
jogadores não são “os escolhidos”, eles não fazem isso por gostar da emoção ou
pela fama. Embora possa haver um garoto rico que pega um contrato do #iHunt por
uma emoção momentânea, a maioria dos caçadores são vítimas desesperadas do
capitalismo de estágio avançado (às vezes chamado de geração do milênio) que se
voltaram para o #iHunt por causa de dívidas com empréstimos estudantis, uma
família com problemas, filho para sustentar, contas médicas fora de controle,
aluguel atrasado ou todas as opções acima.
As
motivações principais dos personagens para fazer o que fazem disso como um
trabalho perigoso e não confiável é a necessidade de dinheiro, e fica claro em
várias ocasiões que, se os personagens pudessem parar de fazer esse show
bizarro no #iHunt, eles o fariam imediatamente. O que mantém os personagens no
ciclo de ‘apresentações’ de caça a monstros não é uma noção Cyberpunk de ação,
é simplesmente a pobreza que existe para muitas realidades e porque se torna
tão próximo da maioria de nós. Quando você está tentando pagar contas médicas,
alimentar uma criança ou apenas manter a energia de casa ligada, e está fazendo
isso com um salário típico de nossos dias, a entrada repentina de alguns
milhares ou até mesmo algumas centenas de dólares podem fazer uma diferença
tremenda.
O
conceito principal que é reconhecido desde o início, e é deixado claro, é que
mesmo que seja possível jogar #iHunt como um jogo de caça aos monstros alegre e
chocante, esse não é o modo padrão ou sua intenção. O cenário implícito é
uma conversa em torno da pobreza, e os jogadores se relacionam com a
representação da pobreza no jogo ou ficam profundamente desconfortáveis com ela.
O Cenário
O
cenário padrão para o #iHunt é a cidade fictícia de San Jenaro, na
Califórnia. A cidade é apresentada de forma bem aberta e sem grandes
detalhes, pois os romances já trabalharam muito com a criação da ambientação
dela, mas isso não prejudica em nada quem não os leu. Há descrições genéricas e
rápidas que conseguem dar a tônica do ambiente – Gótico moderno, repleto de
opulência decadente e hiper-realista – e que podem ser adaptadas com muita
facilidade pelos mestres.
Se
juntarmos essa noção estética com a premissa do ‘nós contra eles’, onde o ‘nós’
são todos os que são marginalizados/necessitados e o ‘eles’ são aqueles que têm
os benefícios, teremos uma clara noção de cenário como muitos já vistos em
filmes e livros variados de realidades distópicas ou mesmo reais. Mas mais do
que um cenário é a segurança social (ou a falta dela) no cenário e as suas
pessoas que o tornam real. Vejamos isso com os personagens.
Pesando
em termos de jogo temos uma boa variedade entre os personagens em #iHunt, chamados
de Kinks.
- Evileenas: que lutam
com o conhecimento e contêm subculturas como Watcher, Arcanist e Alchemist;
- Knights: que lutam
literalmente e contêm subgrupos como Operative, Hitter e Player;
- Phooeys: que lutam
com a tecnologia e têm grupos como Hackers, Drivers e Anarquistas;
- 66: que lutam
com carisma e têm facções como Rosto, Recortes e Agitadores.
Mas
em suma quem são esses personagens que precisam se valer de um aplicativo de
caça de monstros para sobreviver? As autoras estabelecem um perfil definido
para os personagens. Pode parecer um pouco estranho quando a maioria dos
sistemas de RPG preza pela customização máxima. Mas isso não serve para a
premissa apresentada desde o início do livro pelas autoras.
O
perfil do personagem caçador em #iHunt é:
- 21-35;
- solteiro;
- locatário;
- com ensino
médio;
- com registro
criminal de contravenção;
- sem diploma
universitário;
- dívida de US $
40 a 100 mil;
- condições
médicas crônicas;
- trabalhando em
período integral em outro lugar;
- LGBTQ+
Não
é preciso que o personagem criado cubra todos esses itens. Eles são indicativos
que isolados ou juntos representam o público alvo para este RPG. No site da
editora a autora fala de forma bem clara e ponderada sobre a indicação de um
perfil para os personagens: “Uma das primeiras coisas que você precisa fazer
em um jogo é estabelecer as normas. Diga ao leitor o que é
"média" antes de quebrar o molde. Em alguns jogos, os jogadores
vão retratar jovens aventureiros atrás de dragões. Em alguns jogos, eles
são vampiros ingênuos subindo no estrato social. No #iHunt, eles são
adultos mais jovens que estão lutando. No entanto, eu queria ser muito
específico. Todas essas coisas são possíveis ganchos na trama de uma
história #iHunt. Considere como eles podem complicar a vida de um
personagem.”
Todos
esses elementos são condizentes com perfis de pessoas que estão à margem da
normatização social estabelecida. Segundo uma das autoras: “Então, há algo a
ser dito sobre lutas aqui. Mas deixe-me esclarecer perfeitamente o que
isso representa da perspectiva do design de jogos. Ele afirma
corajosamente que os heróis de nossa história tendem a ser pessoas
marginalizadas e sub-representadas nos jogos. Este é um jogo de pessoas
LGBTQ+ e é um jogo para pessoas LGBTQ+. Se você não é LGBTQ+, isso não
quer dizer que este não é um jogo para você. Mas é sem
desculpas sobre nós de várias maneiras, e se você não é LGBTQ +,
talvez considere usar isso como uma oportunidade de entrar em nosso lugar por
um tempo.”
Lendo
até aqui e juntando tudo percebemos como o sistema Fate e seus Aspectos se
encaixam tão bem para o andamento de #iHunt, mas vamos ver isso mais adiante.
Os Monstros
O
jogo oferece um cenário, a cidade de San Jenaro, no sul da Califórnia, e com
ele vem vários tipos de monstros, ou Clades. O jogo também oferece tudo o
que você precisa para criar seus próprios monstros. Além de Aspectos
(veremos adiante), os monstros são definidos por três extras: Recursos,
Presents e Banes. Recursos são "verdades" estruturais sobre um
determinado monstro, Presents são habilidades especiais que o monstro pode ter
e Banes são limitações sobrenaturais, como a fome de um vampiro por sangue
ou vulnerabilidade a uma estaca no coração. Tudo isso pode ser usado, no
estilo de compra pontual, para criar monstros a partir de conjuntos de
atualização que são dimensionados de acordo à uma 'classificação por
estrelas'. Sendo este um jogo sobre um aplicativo, a classificação por
estrelas é a dificuldade do trabalho dado no aplicativo e que se correlaciona
com a recompensa que você pode esperar receber.
A Mecânica
O
#iHunt é baseado no Fate Core, mas você não precisa de uma cópia das regras
independentes para começar a jogar. Não vou me demorar explicando como
funciona Fate, pois já fiz isso várias vezes em outras resenhas. É a mesma lógica.
O importante é salientar que esse é um sistema narrativo e cai como uma luva
para a premissa do #iHunt. E onde está a sinergia perfeita entre #iHunt e Fate?
Está nos Aspectos.
Aspectos
são um dos elementos centrais de Fate. Eles são frases que descrevem o
personagem e/ou suas motivações. Esses aspectos podem ser canalizados/invocados
para conceder bônus ou usados contra você pelo Mestre. De forma
simplificada esses aspectos podem ser invocados pelo jogador narrativamente
justificando seu uso com a cena e gerando bônus.
Ora,
esse é um jogo centrado em vivências complicadas, difíceis e uma prática que os
personagens verdadeiramente se incomodam em ter. Aspectos serão o ponto central
da construção mais íntima desses personagens, interligando personagem e
realidade vivida e com certeza serão momentos incríveis dentro do andamento da
sessão. Alguns exemplos de aspectos ajudam muito a explicar como os personagens
podem funcionar em um jogo.
Há
uma mudança mecânica interessante com relação ao uso de Fate para #iHunt – os
Edges. A ideia do dado Edge é que, em qualquer conflito, um lado tem “o limite”
e, semelhante à criação de aspectos, o lado que ganha ou começa com “o limite”
tem um uso gratuito dessa vantagem. O dado de Edge é um d6 padrão que substitui
um dos seus Dados típicos de Fate em uma rolagem de quatro dados. Isso
significa que, em vez de um dado que varia de -1 a +1, você tem um dado que
varia de 1 a 6 ... isso faz uma diferença gigantesca nos resultados de um
teste. Mecanicamente muito legal para vantagem situacional e numericamente
grande o suficiente para que os jogadores possam tomar decisões estratégicas em
torno dele.
Existem
outras mudanças menos significativas, como a lista de perícias que é
completamente diferente, mas isso não é uma mudança significativa para Fate. A
nova lista de perícias é totalmente apropriada ao tema do jogo e de fácil uso.
Final
Não
tinha tido tão claro como depois de começar a jogar RPGs narrativos o quanto me
agrada jogar com personagens que não são “os escolhidos” – aqueles que têm o
dever te salvar à todos, pois eles e apenas eles podem fazer isso e querem o
fazer. Eu me agrado de personagens que caem de paraquedas na ação e são levados
à participarem dos acontecimentos por não terem escolha e maldizem o que tem de
fazer.
Personagens
como esses, de #iHunt, são jogados na ação para não morrerem de fome, não
perderem um teto ou simplesmente para comprar a próxima dose do medicamente que
os mantém vivos. Eles odeiam o que fazem e questionam o porquê de terem de
fazê-lo. Eles querem mudar essa realidade e sua condição. Eles querem lutar
contra tudo e contra todos para isso. Isso cria um debate não necessariamente
sutil, mas muito claro e vívido. É um jogo necessário por sua relevância nos
tempos de hoje. É um jogo importante para dar voz à uma condição ou posição que
nem sempre temos presente em nós, mas nos afeta à quase todos.
A
indicação de um perfil para os personagens se casa perfeitamente à proposta de
dar voz e questionar a relação imposta de relação desses indivíduos com o mundo
ao seu redor.
A
escolha de Fate é extremamente feliz por possibilitar todos esses
questionamentos de forma à influenciem mecanicamente o andamento da sessão e a
relação do personagem com a ação. O uso dos Aspectos pode proporcionar que
jogadores e mestres façam uso dos Aspectos dando grande peso à “aventura” e
tornando ela crua, real e incômoda como é a realidade. Jogar #iHunt será uma
possibilidade de enfrentar e questionar uma realidade que se acostumou em
colocar de lado o que fere as regras de ‘normal’, aquilo que é diferente ou que
não se mostra produtivo segundo certos parâmetros. #iHunt não é um escape, é a
possibilidade de ensinar, aprender e esbofetear a realidade.
Bons
jogos!
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