A manhã chegou rápida como de costume. Os sons dos afazeres de todos os serviçais e escudeiros poderiam acordar um deus em seu plano. Não que eu tenha direito de reclamar, mas sempre estive acostumado com o silêncio do campo e ainda não me acostumei com as grandes cidades.
Tão logo me levantei recebi um bilhete de Sir Constant dizendo – “Armadura de combate polida. Espada de esmeraldas afiada. Após o almoço na minha tenda do festival”. Era uma mensagem curta e simples. Eu tinha uma certa vantagem em saber ler e escrever. Acho que a grande maioria dos serviçais, mesmo aqui na cidade, não tinha este privilégio. Meu avô sempre prezou a aproximação com as letras aproveitando cada momento em que estava em casa para ensinar a mim e meus irmãos. Em muitas léguas somente minha família tinha esta benção da deusa Tanna-toh.
Logo que me aprontei peguei a armadura e a espada de meu senhor e corri para a tenda. Queria aproveitar a amanhã para realizar o trabalho e aproveitaria para faze-lo lá mesmo. Foi uma tarefa cansativa, mas mais rápida do que imaginava, tanto que nem estávamos na segunda metade da manhã e já estava com tudo pronto.
Aproveitei o resto da manhã para circular entre as tendas próximas. Encontrava de quando em quando, com certa dificuldade, um outro colega escudeiro. Quase todos correndo com suas tarefas. Na tarde teríamos os finais dos jogos e uma espécie de cerimônia que não sei ainda sobre o que seria. Naquele momento do dia já era quase impossível circular livremente pelo espaço do torneio. Uma grande quantidade de cavaleiros, serviçais, escudeiros, nobres, mercadores e pessoas comuns iam e vinham.
Mas como nada pode ficar calmo demais para sempre logo uma gritaria e uma correria surgiram de um ponto não muito longe dali. A curiosidade me fez correr para ver o que era. Logo uma pequena multidão se juntou num círculo, onde ação estava em seu centro.
Esbarrando em um e empurrando outro eu consegui chegar ao centro. A cena era estranha. Haviam dois adolescentes um pouco mais novos do que eu, uma moça mais velha e um menino mais novo. Os dois estavam sentados na lama, no centro do círculo. Ao seu lado estava parado, em pé, um sujeitinho estranho com nariz grande e bigode largo. O avental sobre as roupas denotava ser ele um mercador de alguma espécie. Com uma das mãos ele segurava o que parecia ser um grande pão redondo enquanto com a outra ele segurava o colarinho da roupa da menina.
“- Ladrões miseráveis. Roubaram-me à plena luz do dia. Agora não se pode mais trabalhar honestamente?” – gritava o homem como que fazendo um discurso. A multidão ria e gritava impropérios para a dupla de, pela suas roupas, mendigos.
“- Nós temos fome!” – gemia a menina com os olhos marejados enquanto o menino a abraçava com força.
“- Tem fome, pague, como qualquer outra pessoa de bem!” – respondia o comerciante com o rosto vermelho.
Eu estava atônito com aquela situação. Ao meu redor todos gritavam e jogavam qualquer coisa que estivesse disponível. Não jogavam para machucar, mas jogavam por desprezo, o que era muito pior.
Do outro lado da pequena multidão, num espaço que foi se abrindo entre as pessoas, um cavaleiro surgiu montando seu cavalo. Suas vestimentas eram claramente nobres e sua armadura reluzia com o sol do fim da manhã. Logo atrás mais dois cavaleiros bem mais novos e uma meia dúzia de serviçais ao seu derredor. Todos, do cavaleiro aos serviçais pareciam ter saído de uma pintura imaculada, todos estavam impecáveis, alisados e alvos. Um estandarte nas mãos de um dos serviçais trazia as cores bordô com desenhos dourados. Ainda não compreendia muito de heráldica, a arte de ler estas gravuras, mas para mim parecia demonstrar grande riqueza.
Conforme eles foram avançando para dentro do círculo de gente as pessoas foram silenciando de forma reverencial.
“- O que houve meu bom homem?” – proferiu o cavaleiro olhando para todos os lados como que avaliando se todos prestavam atenção nele.
“- Essas pestinhas simplesmente acham que podem levar minhas coisas sem pagar!”
Ele passou os olhos do mercador para a dupla enlameada sem abaixar seu queixo um só centímetro.
“- É verdade?”
“- Senhor, estamos com fome. Não comemos nada fazem três dias” – disse a menina – “sei que é uma coisa errada roubar, mas a fome de meu irmão vai além do que acho certo. Fomos educados para não fazermos tal coisa, mas ...”
O cavaleiro a interrompeu bruscamente – “ainda por cima é mentirosa... se seus pais a tivessem realmente educado não teria feito isso por nada” – disse ele tendo como resposta muitos balançares de cabeça na multidão.
“- Eu tenho dois aprendizes que serão ordenados em breve” – ele apontou para os outros dois que montavam os cavalos e que começaram a descer – “eles tomarão a decisão por mim. Como cavaleiros que são tomarão a decisão correta pois servirão à Khalmyr, e este nunca erra.”
Os dois rapazes aproximaram-se da dupla capturada e os circundaram.
“- Meu senhor” – proferiu de forma solene o mais novo deles – “considero uma honra tal incumbência. O erro foi claro e é imperdoável. A pena deve ser igualmente rápida e marcante”.
“- Concordo com meu irmão de armas, meu senhor” – disse o outro – “e já tomei a decisão. O menino deve ter a mão cortada para que leve consigo, para sempre, a marca de seu erro”.
“- Quanto a menina” – disse o outro dando uma piscadela para seu colega – “acho que deveria ser levada conosco, para nossa residência, para que possamos dar os exemplos condizentes. Já que é quase adulta será mais fácil de ensiná-la!” A multidão ria e batia palmas. Eu já não era uma criança para não saber o que realmente iria acontecer com a infeliz. Mas parecia que ninguém mais se importava.
A menina soluçava compulsivamente enquanto o garoto se abraçava ainda mais forte na irmão. Com um gesto rude o menino foi arrancado dos braços da irmã pelo aspirante à cavaleiro mais novo, já com a espada em punho. O outro segurava a menina pela cintura como se fosse um saco de batatas. Todos estavam exultantes. A multidão já estava com um número muito maior de curiosos e todos apreciando o espetáculo.
Dois serviçais se postaram ao lado do menino arregaçando sua manga e segurando seu braço e mão na posição apropriada para o corte. Seu choro era mudo e seu corpo parecia desfalecido. Ele não tinha mais forças. A menina se debatia e berrava suplicando para que o deixassem em paz.
Eu estava atônito. Como ninguém estava impedindo aquela barbaridade? Neste momento meu peito começou a arder como nunca. Era o medalhão. O que significava? Eram muitas dúvidas de uma só vez inundando minha mente, mas apenas uma certeza – aquilo deveria acabar agora. Khalmyr não iria permitir que servos seus continuassem com aquilo.
Não sei como aconteceu, mas eu fui tomado por uma certeza, uma clareza do que deveria fazer. Num momento eu estava no meio da multidão, no outro eu já estava ao lado do menino. No momento em que o aspirante à cavaleiro baixou sua espada com sangue nos olhos eu consegui, nem sei como, me postar numa posição em que pude bloquear o golpe com minha adaga. Tão surpreso quanto eu todos ficaram ao ver o que estava acontecendo. A surpresa me auxiliou, pois o infeliz ficou sem ação e rapidamente eu o golpeei no estômago com o cabo da adaga.
Os serviçais correram deixando o menino no chão. O outro desgraçado soltou a menina e desembainhou sua espada. Eu era muito mais baixo do que ele e, sem armadura alguma, muito mais rápido. Ele desceu sua lâmina desleixadamente cortando o ar ao meu lado, mas lento o suficiente para que eu pudesse escorregar para o lado e acerta-lo com o cabo da adaga no punho, obrigando-o a largar sua arma. Posso jurar que minha adaga emanava um ligeiro brilho esverdeado, mas não posso garantir que não tenha sido a emoção do combate que me iludia.
O silêncio era mortal. O cavaleiro ficou parado olhando para mim de forma impassível. Ele desceu do cavalo dizendo – “ora, ora, ora. Que temos aqui? Um jovem herói? Ou apenas um escudeiro desorientado. Quem pensas que é?”
“- Apenas alguém que sabe que não existe justiça em tortura ou estupro.”
“- Insolente. Quem lhe deu o direito de achar que sabe o que é ou não justiça. Eu sou a justiça enquanto eu estiver lutando sob o poder de Khalmyr!” – ele gritou.
“- Então acho que não falamos do mesmo deus!” – respondi.
O cavaleiro ficou com o semblante transfigurado pela raiva. Num movimento rápido ele sacou sua espada e partiu para cima de mim numa mescla de calma e segurança. Eu tinha a ilusão de que seria novamente bem sucedido, mas nem sempre temos alguma vantagem apenas com pensamentos nobres. O treinamento dos cavaleiros transforma-os em máquinas perfeitas de combate. Em apenas dois movimentos ele me desarmou e cravou a ponta de sua espada em meu ombro.
A dor inesperada foi lascinante. A ilusão de que eu poderia vencer aquela luta tão facilmente quanto os outros, me distraiu. Me vi de joelhos com o líquido quente escorrendo pelo meu braço.
“- Verme miserável e estúpido. Seu senhor, por acaso, sabe que está manchando seu nobre nome? Sabe ele o que fazes quando não está sob seus olhos?” – perguntava em voz alta como quem faz um discurso – “mas isso acaba agora. Vou livrar o mundo de um mal exemplo como tu!”
Ele levantou a espada e eu não conseguia me mover pela dor. Só pensava em como era injusta a realidade, com o meu fim daquela forma. Eu percebi sua espada chegar ao alto e por um segundo parar no ar, ganhando, novamente velocidade e descendo sobre mim.
Fechei os olhos.
Mas ao invés de sentir dor ouvi o som agudo de metais se batendo. Quando abri os olhos vi que todos estavam em silêncio e olhando algo atrás de mim. Quando virei o rosto percebi que alguém segurava uma espada e bloqueava a espada do outro cavaleiro.
“- Ora, ora, ora.....” – dizia uma voz que eu reconhecia, mas que a dor me nublava a lembrança – “como eu digo sempre... a fama não faz o cavaleiro... não é Sir?” – aquela frase foi dita num tom de asco e ironia que irritaria qualquer um.
“- Como ousa interrompeu meu ato? Como ousa questionar minha decisão?”
“- Como ousa você achar que pode fazer justiça com as próprias mãos” – e num movimento rápido ele arranca a espada das mãos de meu desejoso algoz lançando-a longe – “eu estive acompanhando tudo de alguma distância, pois achava que uma réstia de honra ainda existia nos membros desta compania. Mas pelo visto me enganei. Agora temos homens que carregam títulos e uma espada. Apenas isso!”
Uma mão forte me ajudou a levantar e pude ver quem era meu salvador – era Sir Tussan. Ainda sem a armadura e com a barba por fazer. Mas sua presença era percebida por todos.
“- Esse moleque tem mais condições de empunhar o brasão do nobre Khalmyr do que um monstro como ele” – dizia Tussan para a multidão – “e vocês ... não disseram nada.... não fizeram nada ... vocês são piores do que qualquer ser asqueroso que já tenha matado! Sumam daqui de uma vez!”
O outro cavaleiro claramente não sabia o que fazer. E mesmo que tenha feito algo eu não saberia, pois desfalaci devido à perda de sangue.
Acordei apenas à noite. Estava numa tenda com Sir Tussan sentado num canto lendo algum livro. Quando ele percebeu que eu estava despertando ele abriu um largo sorriso e se levantou bradando com sua voz de trovão – “rapazinho.... que outras surpresas tem para nós mostrar?”
Quase no mesmo momento, como adivinhando que eu havia acordado, entrou na tenda, como um furacão, Sir Constant com a cara de poucos amigos – “finalmente achei-te, miserável! Sabe que esfregou o nobre nome de minha família na lama? Que achou que estava fazendo tomando as dores por reles ladrões?”
Sir Constant nem se apercebeu da presença do outro cavaleiro. Ele gritava impropérios que nem eu conhecia direito, mas claramente transtornado. Eu me sentei na cama improvisada com alguma dificuldade. Ia escutando tudo o que ele ia dizendo até o momento em que ele me perguntou – “o que tens a dizer?”
“- Não entendo sua irritação. Eu não agi conforme os preceitos do deus Khalmyr?”
Minha resposta pareceu ser pior do que se ofendesse. Ele levantou a mão para me dar um tapa no rosto, mas não teve tempo de terminar sua ação. Seu movimento foi interrompido pelo punho de Sir Tussan que o segurou com muita força.
“- Que pensa que esta fazendo? Quem lhe dá o direito de interferir?”
“- Que lhe deu o direito de exercer uma justiça tão deturpada? Em minha tenda ninguém realiza tal ato e sai impune, ainda mais depois do que esse garoto fez defendendo os preceitos do deus da justiça.”
“- Eu conheço você” – disse Sir Constant franzindo a testa e afinando os olhos como quem tenta se lembrar de algo – “você é um daqueles cavaleiros degenerados que acham que sabem de tudo sobre o nosso deus..”
“- Seu não... de todos, ou agora receberam alguma espécie de certificado de propriedade sobre o deus... eu não duvidaria” – e solta uma larga gargalhada – “se ser fiel aos preceitos da justiça, da honra, da presteza e da humildade me transformam em degenerado, então ótimo, sou um degenerado com toda a honra. E espero realmente que este garoto seja tão degenerado quanto eu sou.”
Sir Constant estava vermelho de raiva e notei sua mão dedilhando o pommel de sua espada. Mas ficou só na vontade – “não me interessa as opiniões idealistas de alguém que não entende as engrenagens por destras do mundo e da sociedade em que vivemos. Só me interessa dar uma lição neste pequeno patife e continuar minha jornada, pois até sua presença me incomoda, cavaleiro.”
“- Encoste um dedo nele e garanto que o engolirá” – agora as feições de Sir Tussan não eram em nada amistosas e seu olhar mostrava uma fera prestes à saltar sobre sua presa.
Sir Constant pareceu receber aquelas palavras com surpresa, deixando-o nitidamente nervoso, ou com medo – “então seu miserável” – ele disse à mim – “o que será? Ficará com essa paródia de cavaleiro ‘nobre e honrado’ ou continuará me servindo?”
Eu fui pego de surpresa. Ao mesmo tempo pude confirmar algumas das dúvidas que me inundaram desde o início da jornada até Norm. O que eu desejava para mim? O que seria de minha vida? Os dois ou três segundos que se passaram pareceram longas horas para mim. Mas a decisão era certa para mim – “desculpe sir Constant, mas prefiro servir um cavaleiro de verdade” – e postei-me ao lado de Sir Tussan.
Sir Constant tentou dar um riso de escárnio, mas não conseguia esconder sua raiva. Simplesmente virou as costas e saiu pela abertura da tenda. Meu peito ardia e pude perceber que o medalhão estava em brasa. Deveria ser um bom sinal, tenho quase certeza disso.
Sir Tussan deu uma grande gargalhada dando um tapa no ombro – “bom garoto, Khalmyr deve estar exultante em seu trono. Agora vá buscar suas coisas e durma aqui, pois teremos um dia cheio amanhã.”
Ele saiu pela mesma abertura da tenda mas voltou de repente – “e quem disse à você que você vai me servir?” – e saiu novamente.
Fui rapidamente buscar minhas coisas tomando cuidado para não cruzar nem com Sir Constant, nem nenhum dos outros cavaleiros daquela tarde. Fui rápido, pois queria voltar para colocar todas essas palavras no meu diário.
Pela primeira vez tomei as rédeas de minha vida sozinho.
Só não entendi o que Sir Tussan quis dizer com aquilo. Como assim ‘não vou servi-lo’?
Tão logo me levantei recebi um bilhete de Sir Constant dizendo – “Armadura de combate polida. Espada de esmeraldas afiada. Após o almoço na minha tenda do festival”. Era uma mensagem curta e simples. Eu tinha uma certa vantagem em saber ler e escrever. Acho que a grande maioria dos serviçais, mesmo aqui na cidade, não tinha este privilégio. Meu avô sempre prezou a aproximação com as letras aproveitando cada momento em que estava em casa para ensinar a mim e meus irmãos. Em muitas léguas somente minha família tinha esta benção da deusa Tanna-toh.
Logo que me aprontei peguei a armadura e a espada de meu senhor e corri para a tenda. Queria aproveitar a amanhã para realizar o trabalho e aproveitaria para faze-lo lá mesmo. Foi uma tarefa cansativa, mas mais rápida do que imaginava, tanto que nem estávamos na segunda metade da manhã e já estava com tudo pronto.
Aproveitei o resto da manhã para circular entre as tendas próximas. Encontrava de quando em quando, com certa dificuldade, um outro colega escudeiro. Quase todos correndo com suas tarefas. Na tarde teríamos os finais dos jogos e uma espécie de cerimônia que não sei ainda sobre o que seria. Naquele momento do dia já era quase impossível circular livremente pelo espaço do torneio. Uma grande quantidade de cavaleiros, serviçais, escudeiros, nobres, mercadores e pessoas comuns iam e vinham.
Mas como nada pode ficar calmo demais para sempre logo uma gritaria e uma correria surgiram de um ponto não muito longe dali. A curiosidade me fez correr para ver o que era. Logo uma pequena multidão se juntou num círculo, onde ação estava em seu centro.
Esbarrando em um e empurrando outro eu consegui chegar ao centro. A cena era estranha. Haviam dois adolescentes um pouco mais novos do que eu, uma moça mais velha e um menino mais novo. Os dois estavam sentados na lama, no centro do círculo. Ao seu lado estava parado, em pé, um sujeitinho estranho com nariz grande e bigode largo. O avental sobre as roupas denotava ser ele um mercador de alguma espécie. Com uma das mãos ele segurava o que parecia ser um grande pão redondo enquanto com a outra ele segurava o colarinho da roupa da menina.
“- Ladrões miseráveis. Roubaram-me à plena luz do dia. Agora não se pode mais trabalhar honestamente?” – gritava o homem como que fazendo um discurso. A multidão ria e gritava impropérios para a dupla de, pela suas roupas, mendigos.
“- Nós temos fome!” – gemia a menina com os olhos marejados enquanto o menino a abraçava com força.
“- Tem fome, pague, como qualquer outra pessoa de bem!” – respondia o comerciante com o rosto vermelho.
Eu estava atônito com aquela situação. Ao meu redor todos gritavam e jogavam qualquer coisa que estivesse disponível. Não jogavam para machucar, mas jogavam por desprezo, o que era muito pior.
Do outro lado da pequena multidão, num espaço que foi se abrindo entre as pessoas, um cavaleiro surgiu montando seu cavalo. Suas vestimentas eram claramente nobres e sua armadura reluzia com o sol do fim da manhã. Logo atrás mais dois cavaleiros bem mais novos e uma meia dúzia de serviçais ao seu derredor. Todos, do cavaleiro aos serviçais pareciam ter saído de uma pintura imaculada, todos estavam impecáveis, alisados e alvos. Um estandarte nas mãos de um dos serviçais trazia as cores bordô com desenhos dourados. Ainda não compreendia muito de heráldica, a arte de ler estas gravuras, mas para mim parecia demonstrar grande riqueza.
Conforme eles foram avançando para dentro do círculo de gente as pessoas foram silenciando de forma reverencial.
“- O que houve meu bom homem?” – proferiu o cavaleiro olhando para todos os lados como que avaliando se todos prestavam atenção nele.
“- Essas pestinhas simplesmente acham que podem levar minhas coisas sem pagar!”
Ele passou os olhos do mercador para a dupla enlameada sem abaixar seu queixo um só centímetro.
“- É verdade?”
“- Senhor, estamos com fome. Não comemos nada fazem três dias” – disse a menina – “sei que é uma coisa errada roubar, mas a fome de meu irmão vai além do que acho certo. Fomos educados para não fazermos tal coisa, mas ...”
O cavaleiro a interrompeu bruscamente – “ainda por cima é mentirosa... se seus pais a tivessem realmente educado não teria feito isso por nada” – disse ele tendo como resposta muitos balançares de cabeça na multidão.
“- Eu tenho dois aprendizes que serão ordenados em breve” – ele apontou para os outros dois que montavam os cavalos e que começaram a descer – “eles tomarão a decisão por mim. Como cavaleiros que são tomarão a decisão correta pois servirão à Khalmyr, e este nunca erra.”
Os dois rapazes aproximaram-se da dupla capturada e os circundaram.
“- Meu senhor” – proferiu de forma solene o mais novo deles – “considero uma honra tal incumbência. O erro foi claro e é imperdoável. A pena deve ser igualmente rápida e marcante”.
“- Concordo com meu irmão de armas, meu senhor” – disse o outro – “e já tomei a decisão. O menino deve ter a mão cortada para que leve consigo, para sempre, a marca de seu erro”.
“- Quanto a menina” – disse o outro dando uma piscadela para seu colega – “acho que deveria ser levada conosco, para nossa residência, para que possamos dar os exemplos condizentes. Já que é quase adulta será mais fácil de ensiná-la!” A multidão ria e batia palmas. Eu já não era uma criança para não saber o que realmente iria acontecer com a infeliz. Mas parecia que ninguém mais se importava.
A menina soluçava compulsivamente enquanto o garoto se abraçava ainda mais forte na irmão. Com um gesto rude o menino foi arrancado dos braços da irmã pelo aspirante à cavaleiro mais novo, já com a espada em punho. O outro segurava a menina pela cintura como se fosse um saco de batatas. Todos estavam exultantes. A multidão já estava com um número muito maior de curiosos e todos apreciando o espetáculo.
Dois serviçais se postaram ao lado do menino arregaçando sua manga e segurando seu braço e mão na posição apropriada para o corte. Seu choro era mudo e seu corpo parecia desfalecido. Ele não tinha mais forças. A menina se debatia e berrava suplicando para que o deixassem em paz.
Eu estava atônito. Como ninguém estava impedindo aquela barbaridade? Neste momento meu peito começou a arder como nunca. Era o medalhão. O que significava? Eram muitas dúvidas de uma só vez inundando minha mente, mas apenas uma certeza – aquilo deveria acabar agora. Khalmyr não iria permitir que servos seus continuassem com aquilo.
Não sei como aconteceu, mas eu fui tomado por uma certeza, uma clareza do que deveria fazer. Num momento eu estava no meio da multidão, no outro eu já estava ao lado do menino. No momento em que o aspirante à cavaleiro baixou sua espada com sangue nos olhos eu consegui, nem sei como, me postar numa posição em que pude bloquear o golpe com minha adaga. Tão surpreso quanto eu todos ficaram ao ver o que estava acontecendo. A surpresa me auxiliou, pois o infeliz ficou sem ação e rapidamente eu o golpeei no estômago com o cabo da adaga.
Os serviçais correram deixando o menino no chão. O outro desgraçado soltou a menina e desembainhou sua espada. Eu era muito mais baixo do que ele e, sem armadura alguma, muito mais rápido. Ele desceu sua lâmina desleixadamente cortando o ar ao meu lado, mas lento o suficiente para que eu pudesse escorregar para o lado e acerta-lo com o cabo da adaga no punho, obrigando-o a largar sua arma. Posso jurar que minha adaga emanava um ligeiro brilho esverdeado, mas não posso garantir que não tenha sido a emoção do combate que me iludia.
O silêncio era mortal. O cavaleiro ficou parado olhando para mim de forma impassível. Ele desceu do cavalo dizendo – “ora, ora, ora. Que temos aqui? Um jovem herói? Ou apenas um escudeiro desorientado. Quem pensas que é?”
“- Apenas alguém que sabe que não existe justiça em tortura ou estupro.”
“- Insolente. Quem lhe deu o direito de achar que sabe o que é ou não justiça. Eu sou a justiça enquanto eu estiver lutando sob o poder de Khalmyr!” – ele gritou.
“- Então acho que não falamos do mesmo deus!” – respondi.
O cavaleiro ficou com o semblante transfigurado pela raiva. Num movimento rápido ele sacou sua espada e partiu para cima de mim numa mescla de calma e segurança. Eu tinha a ilusão de que seria novamente bem sucedido, mas nem sempre temos alguma vantagem apenas com pensamentos nobres. O treinamento dos cavaleiros transforma-os em máquinas perfeitas de combate. Em apenas dois movimentos ele me desarmou e cravou a ponta de sua espada em meu ombro.
A dor inesperada foi lascinante. A ilusão de que eu poderia vencer aquela luta tão facilmente quanto os outros, me distraiu. Me vi de joelhos com o líquido quente escorrendo pelo meu braço.
“- Verme miserável e estúpido. Seu senhor, por acaso, sabe que está manchando seu nobre nome? Sabe ele o que fazes quando não está sob seus olhos?” – perguntava em voz alta como quem faz um discurso – “mas isso acaba agora. Vou livrar o mundo de um mal exemplo como tu!”
Ele levantou a espada e eu não conseguia me mover pela dor. Só pensava em como era injusta a realidade, com o meu fim daquela forma. Eu percebi sua espada chegar ao alto e por um segundo parar no ar, ganhando, novamente velocidade e descendo sobre mim.
Fechei os olhos.
Mas ao invés de sentir dor ouvi o som agudo de metais se batendo. Quando abri os olhos vi que todos estavam em silêncio e olhando algo atrás de mim. Quando virei o rosto percebi que alguém segurava uma espada e bloqueava a espada do outro cavaleiro.
“- Ora, ora, ora.....” – dizia uma voz que eu reconhecia, mas que a dor me nublava a lembrança – “como eu digo sempre... a fama não faz o cavaleiro... não é Sir?” – aquela frase foi dita num tom de asco e ironia que irritaria qualquer um.
“- Como ousa interrompeu meu ato? Como ousa questionar minha decisão?”
“- Como ousa você achar que pode fazer justiça com as próprias mãos” – e num movimento rápido ele arranca a espada das mãos de meu desejoso algoz lançando-a longe – “eu estive acompanhando tudo de alguma distância, pois achava que uma réstia de honra ainda existia nos membros desta compania. Mas pelo visto me enganei. Agora temos homens que carregam títulos e uma espada. Apenas isso!”
Uma mão forte me ajudou a levantar e pude ver quem era meu salvador – era Sir Tussan. Ainda sem a armadura e com a barba por fazer. Mas sua presença era percebida por todos.
“- Esse moleque tem mais condições de empunhar o brasão do nobre Khalmyr do que um monstro como ele” – dizia Tussan para a multidão – “e vocês ... não disseram nada.... não fizeram nada ... vocês são piores do que qualquer ser asqueroso que já tenha matado! Sumam daqui de uma vez!”
O outro cavaleiro claramente não sabia o que fazer. E mesmo que tenha feito algo eu não saberia, pois desfalaci devido à perda de sangue.
Acordei apenas à noite. Estava numa tenda com Sir Tussan sentado num canto lendo algum livro. Quando ele percebeu que eu estava despertando ele abriu um largo sorriso e se levantou bradando com sua voz de trovão – “rapazinho.... que outras surpresas tem para nós mostrar?”
Quase no mesmo momento, como adivinhando que eu havia acordado, entrou na tenda, como um furacão, Sir Constant com a cara de poucos amigos – “finalmente achei-te, miserável! Sabe que esfregou o nobre nome de minha família na lama? Que achou que estava fazendo tomando as dores por reles ladrões?”
Sir Constant nem se apercebeu da presença do outro cavaleiro. Ele gritava impropérios que nem eu conhecia direito, mas claramente transtornado. Eu me sentei na cama improvisada com alguma dificuldade. Ia escutando tudo o que ele ia dizendo até o momento em que ele me perguntou – “o que tens a dizer?”
“- Não entendo sua irritação. Eu não agi conforme os preceitos do deus Khalmyr?”
Minha resposta pareceu ser pior do que se ofendesse. Ele levantou a mão para me dar um tapa no rosto, mas não teve tempo de terminar sua ação. Seu movimento foi interrompido pelo punho de Sir Tussan que o segurou com muita força.
“- Que pensa que esta fazendo? Quem lhe dá o direito de interferir?”
“- Que lhe deu o direito de exercer uma justiça tão deturpada? Em minha tenda ninguém realiza tal ato e sai impune, ainda mais depois do que esse garoto fez defendendo os preceitos do deus da justiça.”
“- Eu conheço você” – disse Sir Constant franzindo a testa e afinando os olhos como quem tenta se lembrar de algo – “você é um daqueles cavaleiros degenerados que acham que sabem de tudo sobre o nosso deus..”
“- Seu não... de todos, ou agora receberam alguma espécie de certificado de propriedade sobre o deus... eu não duvidaria” – e solta uma larga gargalhada – “se ser fiel aos preceitos da justiça, da honra, da presteza e da humildade me transformam em degenerado, então ótimo, sou um degenerado com toda a honra. E espero realmente que este garoto seja tão degenerado quanto eu sou.”
Sir Constant estava vermelho de raiva e notei sua mão dedilhando o pommel de sua espada. Mas ficou só na vontade – “não me interessa as opiniões idealistas de alguém que não entende as engrenagens por destras do mundo e da sociedade em que vivemos. Só me interessa dar uma lição neste pequeno patife e continuar minha jornada, pois até sua presença me incomoda, cavaleiro.”
“- Encoste um dedo nele e garanto que o engolirá” – agora as feições de Sir Tussan não eram em nada amistosas e seu olhar mostrava uma fera prestes à saltar sobre sua presa.
Sir Constant pareceu receber aquelas palavras com surpresa, deixando-o nitidamente nervoso, ou com medo – “então seu miserável” – ele disse à mim – “o que será? Ficará com essa paródia de cavaleiro ‘nobre e honrado’ ou continuará me servindo?”
Eu fui pego de surpresa. Ao mesmo tempo pude confirmar algumas das dúvidas que me inundaram desde o início da jornada até Norm. O que eu desejava para mim? O que seria de minha vida? Os dois ou três segundos que se passaram pareceram longas horas para mim. Mas a decisão era certa para mim – “desculpe sir Constant, mas prefiro servir um cavaleiro de verdade” – e postei-me ao lado de Sir Tussan.
Sir Constant tentou dar um riso de escárnio, mas não conseguia esconder sua raiva. Simplesmente virou as costas e saiu pela abertura da tenda. Meu peito ardia e pude perceber que o medalhão estava em brasa. Deveria ser um bom sinal, tenho quase certeza disso.
Sir Tussan deu uma grande gargalhada dando um tapa no ombro – “bom garoto, Khalmyr deve estar exultante em seu trono. Agora vá buscar suas coisas e durma aqui, pois teremos um dia cheio amanhã.”
Ele saiu pela mesma abertura da tenda mas voltou de repente – “e quem disse à você que você vai me servir?” – e saiu novamente.
Fui rapidamente buscar minhas coisas tomando cuidado para não cruzar nem com Sir Constant, nem nenhum dos outros cavaleiros daquela tarde. Fui rápido, pois queria voltar para colocar todas essas palavras no meu diário.
Pela primeira vez tomei as rédeas de minha vida sozinho.
Só não entendi o que Sir Tussan quis dizer com aquilo. Como assim ‘não vou servi-lo’?
Um comentário:
Muito boa a história, viciante =)
Quando estava lendo, parecia que estava lá, vendo tudo de perto, dava pra esquecer do mundo, parabéns.
Espero poder ler muitas outras páginas desse diário.
Postar um comentário