Fortão, o gato aventureiro de Arton
CAPÍTULO 8
A
situação era cômica, pelo menos para quem a via de fora. Um grupo de
aventureiros comportadamente sentado de um dos lados de uma enorme e retangular
mesa de carvalho enquanto um garboso guerreiro, gesticulando seu braço
metálico, caminhava de lá para cá à frente deles esbravejando. Todos o olhavam
com uma cara de incomodada aceitação. Enquanto isso, em um dos cantos Fortão
lambia seu pelo como se aquilo tudo não fosse para ele também.
“-
Como assim vocês simplesmente foram salvar o amigo de vocês?” – questionava de
forma retórica aos gritos Arkan, Braço de Ferro, entre um gesto e outro, já com
o rosto vermelho.
“-
Simples” - disse Ally - “nosso amigo fora feito prisioneiro contra a sua
vontade, se é que alguém é feito prisioneiro por vontade própria... enfim,
fomos até ele o libertar e não tínhamos como esperar a ajuda de quem quer que
fosse, muito menos tempo para chamar a milícia da cidade... Por falar nisso,
você sabia que precisa ter mais atenção à sua cidade? Como tanta gente suspeita
entra aqui e você não fica sabendo de nada?!” - Do canto oposto da mesa o outro
elfo concordava com um sério aceno de cabeça enquanto Blander e Gustav olhavam
um para o outro com perplexidade, não acreditando que Ally se arriscava a dizer
tamanha asneira. Fortão chegou a parar de lamber seu pelo, revirando os olhos,
imaginando de que forma o elfo seria empalado pelo colérico guerreiro.
Os
olhos do líder do Protetorado faiscaram na direção do elfo enquanto ele se
preparava para berrar novamente. Mas algo o fez frear no último instante, muito
provavelmente o olhar atento da guerreira que estava encostada com os braços
cruzados, em um canto obscuro e mantinha-se em silêncio. Ele baixou a cabeça,
perplexo com o elfo, respirou fundo e puxou uma cadeira para se sentar em
frente ao grupo, mas ainda em silêncio.
“-
Eu sei que Valkaria é a terra dos aventureiros e a própria deusa, que deu seu
nome à cidade, é a sua protetora. Mas precisam todos virem fazer bagunça por
aqui? Temos leis, regras e o Protetorado. Os malditos aventureiros ficam sempre
achando que podem resolver tudo como se estivessem em sua própria casa...” -
ele bufou em comedida irritação com um suave ranger de dentes e voltou a falar,
em um tom mais ameno - “cada vez que uma coisa dessas acontece, isso que vocês
fizeram hoje, tudo vira uma zona e nós é que temos que resolver depois, dar
explicações, enterrar corpos, limpar sangue e mais sangue, conversar com o povo
e, por fim, explicar ao próprio regente. Não bastassem as tensões com Yuden, a
tempestade mortal se espalhando no oriente e o povo de Tapista esperando que
cometamos um erro, ainda tenho que ficar faxinando meu próprio quintal!” - as
últimas palavras vieram sob a forma de um berro.
Enquanto
isso o grupo ficava inerte, olhos baixos e mãos juntas, como se fossem crianças
sendo repreendidas após uma travessura. Eles poderiam ser considerados muitas
coisas, mas nunca estiveram contra a lei e sempre se vangloriaram de serem
aventureiros certinhos, se é que isso era possível. Eles entendiam os
argumentos de Arkam, mas ele não entendia a situação deles com o sequestro de
Gustav. Enquanto isso Fortão dividia-se entre escutar a conversa com atenção e
lamber seu pelo.
“-
Não era nossa intenção... sempre procuramos deixar as lutas longe de gente
inocente, ainda mais por aqui... cuidaremos para que isso não se repita” -
Blander parecia sincero.
“-
Blander, vocês precisam de alguma ajuda ou podem dar conta daqui em diante?” -
questionou Allieny, se aproximando por trás do grupo.
“-
Acho que por hora, pelo menos até sairmos da cidade, estará tudo tranquilo...
obrigado.”
Arkam
se levantou com um sorriso no rosto e virando-se para os guardas que aguardavam
na porta, pelo lado de dentro, começou a dar algumas ordens sobre a arrumação
da bagunça criada pelo grupo de Blander.
“-
Espero que a estadia de vocês seja breve se for para termos mais confusão...” -
ele disse virando novamente para o grupo ente uma ordem e outra. Fortão, que
finalmente terminara de alinhar seu pelo, ajeitou-se no seu lugar olhando
cuidadosamente para o impressionante guerreiro. Ele estava realmente
maravilhado com seu braço verdadeiramente de metal, como os rumores que
percorriam as terras artonianas falavam. Arkam olhou o gato com cuidado,
fazendo um carinho repetido em sua cabeça.
“-
Que vergonha... nem se preocuparam em deixar um animalzinho indefeso como esse
em perigo... deviam se envergonhar!” - ele disse, virando as costas para sair.
A
cena fez Gustav quase cair cadeira enquanto se engasgava com a própria saliva
criando em acesso de tosse sem fim.
“-
O que... Mas... Ele.... Ele é uma peste miserável que matou tantos quanto eu!”
- tentava dizer o anão entre uma tossida e um engasgo. Mas Arkam já estava
quase na porta e não deu a menor atenção para o Gustav. De seu lugar Fortão
apenas olhava com aquele típico desdém felino enquanto o anão continuava
esbravejando - “esse gato imprestável está do lado de quem?”.
O
resto do grupo não conseguiu segurar as gargalhadas enquanto o gato apenas se
espreguiçava.
o O o
A
volta para a taverna foi em silêncio. Pelo menos quase todos estavam em
silêncio. Os elfos continuavam a divertidamente conversar entre eles e com
Fortão. Gustav tinha certeza, em seu mal humor habitual, que ambos nunca
ficaram de boca fechada por mais de alguns instantes nessa vida toda.
Eles
atravessaram a porta dupla da Caneco de Bronze já com os primeiros raio de sol
despontando no horizonte Nesta hora da manhã o sol criava uma descomunal sombra
devido à enorme estátua de Valkaria deixando boa parte da cidade na penumbra.
Era uma visão inesquecível para aqueles que visitavam ela.
Os
primeiros hóspedes já circulavam pelos ambientes da taverna e muitos sons
vinham da cozinha e de onde as refeições eram servidas. Guerta passava com duas
enormes bandejas de madeira quando eles chegaram quase atropelando-os com seu
enorme corpo de meia-orc. Detrás do balcão Dorten berrava algumas ordens quando
os avistou abrindo um largo sorriso.
“-
Aha!!! Vivos... e sem faltar nenhum braço ou perna! Isso é bom! Vão para a mesa
que logo levarei uma grande refeição para vocês!” – ele disse enquanto corria
para dentro da cozinha por sua porta de acesso aos berros.
O
grupo foi se sentando ao redor de uma grande mesa perto de uma ensolarada
janela. Visivelmente estavam cansados depois de uma noite de ação. Até mesmo os
elfos estavam em silêncio agora. Fortão pulara para o parapeito da janela para
tomar sol enquanto atentamente olhava o movimento dos amigos. Cuidadosamente
Gustav e Truilli sentaram em posições opostas.
“-
Realmente o que aconteceu irmão?” – quebrou o silêncio Gustav.
“-
O passado insiste em me perseguir. Eu tentei arrumar tudo e não deu certo. Eu
tentei reverter os erros e não deu certo. Eu tentei me esconder, por fim, e
também não deu certo” – as palavras saiam enquanto ele olhava ora para o chão,
ora para o teto – “ontem foi apenas mais um capítulo dessa piada sem graça que
sou eu.”
Gustav
apenas o olhava de forma fixa. Fortão não sabia se ele estava escutando ou
apenas se preparando para saltar sobre seu irmão. A tensão era palpável. O gato
deu um salto para a grande mesa e fico sentado olhando o anão alquebrado.
“-
Lembra Gustav... meu grupo tinha algumas boas e aguerridas almas. Tyorus.
Galhanthar. A belíssima Randyra. Seu primo Phofolly. Todos companheiros por
mais de uma década. Conquistamos alguma fama em lugares que ajudamos e uma boa
quantidade de moedas de ouro para levarmos uma boa vida. Mas o que desejávamos
era mais e mais aventura. E isso foi nossa ruína.”
“Nossa última missão foi investigar umas
catacumbas abandonadas e até poucos dias antes esquecidas. Ficava à meio
caminho entre Yuden e Hongari. Fomos procurados por uma comitiva de moradores
liderados pelo administrador da vila que nos contou sobre desaparecimentos,
roubos e mortes cujos rastros sempre levavam para uma direção. Um mateiro que
seguira os rastros descobriu a entrada da catacumba, mas não se aventurou em
sua escuridão. Um caso clássico que qualquer grupo de aventureiros adoraria ter
em mãos. Moedas fáceis, um pouco de fama e vinho. Aceitamos na hora.”
“Num primeiro momento desconfiávamos que
fosse apenas um grupo de goblins ou orcs que haviam recém chego à região ou
algo ainda mais simples como um grupo de bandidos apenas se escondendo perto de
sua fonte de roubo. Não nos preparamos o suficiente.”
“Logo que entramos na catacumba percebemos
que aquilo estava longe de ser algo simples. A catacumba em si era simples e
pequena, mas não era só isso. Uma entrada nova havia sido escavada como que a
interligando à uma ala isolada e muito diferente dela. Os corredores eram muito
antigos, mas de um acabamento em pedra bruta que beiravam o lindo e o mórbido.
Aqueles eram corredores ancestrais e a aura que emanava deles era inegavelmente
maligna. À cada passo dado um calafrio percorria nossas espinhas e mais e mais
certeza tínhamos de que não estávamos tendo noção de onde havíamos nos metido.”
“Logo descobrimos que os perigos ali não eram
simples e muitos desafios foram vencidos quase custando nossas vidas. Enfrentamos
monstros que nem sabíamos que existiam e mais de uma vez escapamos por pouco da
morte certa. Foram várias horas de perigos até chegarmos ao fundo do terceiro
andar daquela estrutura, em sua câmara principal. Aquela sala era maravilhosa. Ainda
lembro do teto altíssimo como que feito por titãs. Colunas entalhadas na
própria rocha e colocas de pé nem imagino como. Piso tão lustroso que parecia
um espelho dos deuses. E mesmo assim, com toda esta beleza, quando olhávamos
para ela, ainda antes mesmo de entrarmos, tínhamos a sensação de estar
vislumbrando o inferno. Nosso olhar era maravilhado ao mesmo tempo que
sentíamos um horror que quase nos obrigava a virar o rosto e esconder os olhos.
Era perturbador.”
Fortão
estava maravilhado com a descrição de Truilli. Ele conseguia, em sua mente,
imaginar cada detalhe. Era o que sempre sonhara para ele como aventureiro –
perigos inimagináveis. Ele nem percebeu de pronto a tigela de leite que Guerta
e Dorten haviam colocado em sua frente, junto de tantas outras tigelas de pão,
mel, pedaços de carne assada e canecos de vinho para os outros. Se perguntava
se ele mesmo teria oportunidade de vivenciar aventuras assim e se quando
chegasse a hora suas decisões o fariam ser grande, como a própria Deusa disse à
ele dias atrás. Por uma fração de segundo ele pensou também sobre o presente
que ela lhe havia dado... o que seria? Quando Truilli limpa garganta após
engolir um pedaço e pão, Fortão e trazido de volta, prestando atenção novamente
no anão.
“-
O que aconteceu nesta câmara?” – questionou Ally pegava um naco de pão ainda
quente do forno e passando no mel.
“-
Logo que chegamos à ela percebemos as portas entreabertas e sem guardas. Não
que houvesse uma milícia propriamente dita, mas parecia que todas as criaturas
ali estavam tentando nos impedir de prosseguir. Sei que parece loucura, mas
essa era a impressão. E como eu queria que os deuses tivessem nos impedido de
continuar.”
“Pela fresta percebemos que haviam
prisioneiras, provavelmente pessoas da comunidade que nos contratara. Ao centro
havia um bruto altar de pedra aparentemente mais antigo do que a própria
catacumba. Ele destoava do magnífico piso espelhado. Algumas figuras
encapuzadas com mantos negros entoavam um cântico em uníssono que eu nunca escutara.”
“Decidimos acabar com aquilo de uma vez por
todas e ir logo para casa salvando aquelas pessoas. Como de costume avançava
eu, Phofolly e Tyorusm, enquanto Galhanthar e Randyra nos davam cobertura e
cuidavam da retaguarda. Mas tudo foi muito pior do que já havíamos enfrentado
em toda nossa vida. Alguns daqueles encapuzados eram feiticeiros, ou coisa pior,
e invocaram coisas, seres enormes que saíram sei lá de onde. Além disso, havia
muito mais adversários do que suspeitamos. A luta durou uma eternidade.”
“Quando o último feiticeiro caiu, aquele que
estava com a faca cerimonial pronto para fazer seu sacrifício, ele disse
algumas palavras que apenas mais tarde fizeram sentido. Vocês estão enganados. No
momento não demos atenção, mas isso mudou toda a nossa vida dali em diante. Terminamos
a luta vivos, extremamente feridos, mas vivos. Galhanthar perdeu um de seus
olhos naquele dia, no mesmo dia que Phofolly perdera dois dedos. O resto de nós
saiu inteiro, se é que podemos dizer isso.”
“Levamos os reféns de volta, vivos, com todos
os espólios que pudemos carregar. Um deles foi um velho livro, um tomo mágico,
que sabemos sempre valer algumas boas moedas de ouro para os seguidores de
Tanna-toh, o deus do conhecimento. A volta foi muito mais tranqüila com apenas
um ou dois monstros desgarrados que tinham escapado na nossa vinda. Chegamos à
vila e fomos recebidos como heróis. Foi maravilhoso ver tantas famílias sendo
reunidas novamente.”
“Nossas feridas foram tratadas e um banquete
de comemoração servido com tudo do melhor. Ainda hoje me lembro daquela noite.
A lua parecia ainda maior e as estrelas mais perto do que jamais havia notado.
A cantoria e as canecas de vinho e hidromel entraram noite à dentro.
Inevitavelmente, em algum momento caímos bêbados. Pelo menos eu achava isso.”
“-
Parece uma reação normal depois de tantas dificuldades” – comenta Blander.
“-
E seria” – suspira Truilli – “se não tivéssemos acordado amarrados no enorme
salão de onde havíamos resgatado as reféns.”
“Alguma coisa foi posta no vinho ou na
comida. O que sei é que nunca havia caído bêbado e Gustav conhece bem a fama
dos anões em serem duros de derrubar com bebidas alcoólicas. Minha cabeça ainda
girava mais do que roda de moinho em época de colheita quando comecei a ter
noção de onde estava e do que estava acontecendo. Estávamos os cinco amarrados
e colocados em uma espécie de mesa inclinada formando um círculo ao redor do
altar de pedra. Galhanthar e Randyra estavam amordaçados para que não pudessem
lançar nenhuma palavra de poder que pudesse nos ajudar. Ao centro, no altar,
uma menina desacordada, provavelmente virgem. Um clichê, mas que na hora dos
encantamentos acaba sendo a pura verdade.”
“Aos poucos os outros foram acordando e
tomando ciência da situação. Por mais que nos esforçássemos não conseguíamos nos
livrar das amarras. Ao lado da menina o administrador da cidade estava vestido
com um manto negro, semelhante aos dos infelizes que matamos, mas com
ornamentos dourados. Em uma das mãos ele tinha uma adaga de cristal negro e na
outra mão tinha o tomo mágico aberto. Ele confabulava baixinho com outros
asseclas igualmente vestidos com mantos, mas de cores variadas enquanto
consultava o livro. Ao redor da sala de teto abobadado toda a vila, incluindo
crianças e velhos, estava a nos observar, vestindo suas túnicas brancas e
negras.”
Os
olhares de Gustav e dos outros estavam fixos em Truilli. Mesmo Dorten havia
puxado uma cadeira para perto e sentado com seu longo cachimbo aceso. Fortão
estava imóvel e de olhos arregalados.
“-
Quando o administrador percebeu que havíamos desperto ele se aproximou” –
continuou a relatar o anão.
“Com um sorriso sarcástico nos lábios
ele nos pediu desculpas pelo infortúnio, mas eles não tinham como recuperar o tomo
sagrado enquanto estivesse nas mãos daquele grupo de benfeitores, como ele
mesmo os denominou. Precisava de alguém de coração puro e sem interesses reais
no tomo para que pudesse entrar, matá-los e recuperar aquilo que lhes pertencia
à eras e que por tanto tempo ficou perdido. Ou seja, nós. Tudo fora um engodo,
uma armação. Ele nos fez acreditar que seria um trabalho simples como tantos
outros que estávamos acostumados e acabamos fazendo todo o trabalho sujo sem
imaginar que éramos apenas peças em um tabuleiro.”
“Ele nos contou que depois que o tomo
havia sido retirado daquelas cavernas por nós o poderoso feitiço de proteção
havia sido quebrado. Assim eles poderiam finalmente chegar até o templo e
realizar o ritual de passagem para um outro mundo e trazer aquele que deveria
guiá-los em Arton. Ele disse um nome impronunciável que nem imagino de qual
idioma antigo fora tirado. Ele ainda nos agradeceu por resgatar as jovens que
seriam mortas pelos sacerdotes que protegiam o tomo já que elas , na verdade,
eram peça chave para que a abertura do portal acontecesse. Quando ele disso
isso, as cinco jovens se aproximaram de cada um de nós com adaga em mãos. Em
resumo nós fizemos tudo errado. Matamos os mocinhos, quebramos o feitiço de
proteção, libertamos aquelas que deveriam realizar o ritual do mal e ainda por
cima seriamos sacrificados.”
“-
Dá para se dizer que não foi uma noite boa” – disse Ehllinthel deixando Fortão
na dúvida se o elfo realmente estava falando sério ou se era mais uma piada
fora de hora. Fortão o encara de forma severa – “o que foi ... realmente não
fora uma noite boa!”
Truilli
suspirou e após outro gole continuou a narrativa. Mais algumas cadeiras já
tinham se virado para a mesa do grupo de Fortão e o silêncio denunciava que
todos estavam prestando atenção na aventura do irmão de Gustav. Além da voz do
anão só se escutavam os passos apressados das meninas de Gherta trazendo
canecos e tigelas cheias para todos os que estavam ali.
“-
Aquele sacerdote continuou falando coisas que realmente eu não entendia, e nem
fazia questão de compreender. Eu só pensava em como sair dali. As amarras eram
realmente fortes e nosso estado depois de toda aquela luta nas masmorras, e
ainda por cima o efeito da droga, não me permitia qualquer sucesso. Tyorus
igualmente forçava as amarras enquanto Phofilly parecia enfraquecido depois de
perder tanto sangue com os dois dedos decepados. Mas tudo só piorou.”
“O infeliz declarou que iria começar o
ritual. Todos os que estavam ao nosso redor, em um grande círculo, todo o povo
daquela vila, começou a entoar uma música estranha. Então ele começou a ler
palavras estranhas daquele tomo maldito e logo depois fez um talho na palma de
sua mão com a adaga negra. O sangue logo se espalhou e ele o esfregou em seu
rosto. As pessoas começaram a cantar mais e mais alto. Eu fazia força mas não
conseguia arrebentar aquelas cordas.”
“Bem à minha frente, do outro lado do
círculo, estava Randyra, amarrada e amordaçada. Ele olhava freneticamente para
cada um de nós e para aquele monstro. Eu vi o pavor em seus lindos olhos
verdes. Nunca a havia visto assim.”
“O infeliz começou a caminhar lentamente
olhando para cada um de nós como se estivesse escolhendo carne em um matadouro
para a próxima ceia. O canto estava ensurdecedor... tão alto que não consegui
escutar o que ele dizia. Ele continuou caminhando até parar ao lado Galhanthar.
Seu olho sangrava e já tinha ensopado sua mordaça. O sacerdote pegou sua mão
ensangüentada e fez uma linha bem no meio do pescoço de meu amigo de tantas
aventuras. O meio elfo me olhou como que se despedindo...”
Fortão
nunca vira um anão chorar. Ele sempre achou que os deuses os tivessem feito
desprovidos de lágrimas. Mas aquele anão, Truilli, estava chorando sutilmente
enquanto falava. Era uma mescla de dor e ódio que culminava com uma fina linha
de lágrimas molhando sua barba, vindo de cada um dos olhos.
Ele
continuou – “uma das mulheres que nós
tínhamos salvo à poucas horas fez um movimento seco e preciso exatamente sobre
a linha de sangue no pescoço de Galhanthar. O movimento foi veloz, mas para mim
durou uma eternidade. Quando primeiro jorro de sangue esguichou para fora todas
as pessoas, mesmo as crianças, entraram em um frenesi impressionante. Randyra
berrava mesmo com a mordaça. Phofolly estava petrificado pelo que estava
acontecendo. Eu não sabia o que fazer. Mas quem nos salvou foi Tyorus. Ele
enlouqueceu com a cena. As veias de seu pescoço e braços pulsavam como se ele
tivesse sido possuído por alguma força das profundezas. Em sua raiva ele
arrancou o tablado onde estava amarrado e mesmo sem se soltar ele correu para
cima do sacerdote que se esquivou por pouco. Em desabalada ele atingiu uma meia
dúzia de pessoas que estavam no círculo e atingiu a parede atrás delas,
destruindo aquilo que o aprisionava. Ele estava possuído pela raiva e pela dor.
Em uma fração de segundos ele já tinha esmagado o pescoço de pelo menos dois
daqueles aldeãos e já estava com uma espada em cada mão.”
“Tyorus estava enlouquecido, mas ainda era um
guerreiro experiente. Ele primeiramente cortou as amarras de Randyra, que
estava mais perto, arremessando a mesma espada nas costas da mulher que estava
à minha frente pronta para cortar meu pescoço. Sua raiva era tanta que a espada
a transpassou e quase me atingiu. Randyra passara do pavor à completa ira e tão
logo arrancou sua mordaça incinerou aqueles que estavam mais próximos dela,
antes de correr até mim e Phofolly para nos soltar.”
“Aquilo virou um pandemônio. Todos corriam,
gritavam e se armavam para nos atacar. Mesmo as crianças. Foi um banho de
sangue. Embora eles fossem muitos e estivessem enlouquecidos, nos ainda éramos guerreiros
treinados...”
“A raiva tomou conta de nós. Não ficou um vivo... Mesmo as crianças...”
“O último a ser morto foi o sacerdote,
aquele que nos enganou e tomou a vida de nosso amigo e colega de aventuras. Ele
simplesmente ria freneticamente encolhido em um canto. Ele repetia que nós
nunca sairíamos ganhando, que era só uma questão de tempo até que outros como
ele achassem o livro e finamente terminassem o ritual. Confesso que adorei
enfiar minha espada nele bem lentamente.”
Truilli
respirou fundo.
“Depois de queimarmos o corpo de nosso
amigo, como ele tanto desejava, decidimos dar cabo daquele livro maldito, mas
foi impossível. Nada a destruía... fogo... magia... nada. Não tínhamos ideia do
que fazer. Descobrimos que embora ele não pudesse ser destruído, ele poderia
ser repartido. Parece idiota, mas o livro pode ser rasgado em partes menores.
Em quatro partes, para dizer a verdade. Cada um de nós ficou com uma e decidiu
se isolar em algum canto de Arton. Tudo aquilo, a morte de nosso amigo, nossos
erros, a matança, tudo aquilo nos abalou. Estávamos nos aposentando, pelo menos
de trabalharmos juntos.”
“Eu voltei para minha terra natal” – disse
isso olhando para Gustav – “achava que não teria lugar melhor para passar o
resto de meus dias até descobrir o que fazer com parta destruir a minha parte
do livro.”
“-
Eu lembro quando você voltou” – disse Gustav – “você estava com um aspecto
horrível, parecia ter envelhecido uns cem anos desde a última vez tínhamos nos
encontrado. Isso foi pouco antes de...”
As
palavras de Gustav foram morrendo aos poucos. Todos se viraram para ele.
Blander arregalou os olhos como que tendo percebido algo e olhava de Truilli
para Gustav e vice versa. Fortão não entendia a tensão que se formava no ar,
embora ele tivesse aquele sentido felino para este tipo de coisa ele simplesmente
não compreendia.
“-
Eu não sei como eles me acharam irmão...” – disse Truilli baixando a cabeça –
“eu havia ido lá te encontrar para enchermos a cara, como nos velhos tempos...
Sem aviso eles invadiram... Quando dei por mim o pequeno já estava sem vida e
sua esposa presa... Eu sabia que eles estavam atrás de mim, não deles.... Por
isso fugi, par atraí-los.”
“-
Você os deixou para morrer!” – rosnou Gustav.
“-
Não! Muito pelo contrário. Eu sabia que permanecer ali seria o fim deles, por
isso tentei atraí-los para longe. Fugi para protegê-los” – ele olhou firmemente
para o irmão – “você tem que acreditar nisso! Só por isso sua esposa
sobreviveu.”
“-
Mas perder nosso filho foi como perder a própria vida. Ela definhou até a
própria morte... ela desistiu de viver” – disse baixinho Gustav.
“-
Eles estavam atrás da tua parte do livro?” – questionou Blander.
“-
Exato. Depois daquilo passei um bom tempo perambulando por toda a Arton atrás
de um lugar para esquecer de todo o passado, até que acabei por resolver ficar
aqui. Nada melhor para me esconder do que a maior cidade do Reino. Tão logo
pude mandei um aviso para Gustav dizendo onde eu estava. Sempre ansiei por lhe
contar o que acontecera, mas a coragem que tenho para enfrentar monstros é
muito maior do que a coragem que preciso para enfrentar a verdade.”
Um
silêncio se instalou em todos, mesmo os que estavam apenas escutando aquilo como
uma simples história. Gustav e Truilli se encaravam, um com ódio, outro com
resignação. Até que Ally se levantou e pigarreou. Todos se viraram para o elfo
não imaginando o que ele diria agora, mas temendo. Fortão se levantará na
tentativa de fazer qualquer coisa para impedi-lo de abrir a boca. A fama de
Ally dizer a coisa errada na hora errada era notória dentro do grupo.
“-
Bom... pelo menos uma coisa houve de bom nisso tudo. Nada melhor do que uma boa
caçada por vingança e justiça para amenizar os ânimos e apagar velhos equívocos
de família, hein!?” – disse o elfo com um caneco na mão.
Blander
abriu um sorriso enquanto levantava seu corpanzil erguendo seu caneco – “estávamos
precisando de uma boa aventura e nada melhor do que uma que reúna família, busca
por justiça e muita luta!”
“-
E mulheres, espero” – gritou o bardo Ehllinthel com seu caneco ao ar.
“-
E mais bebida...” – completou Allyohnas abraçando-o
“-
O que acha Fortão?” – disse Gustav virando-se para o gato que estava sentado
novamente olhando o discurso de todos – “vamos varrer esses infelizes do mapa e
mandá-los diretamente para o inferno de onde nunca deveriam ter saído?”
Fortão
olhou profundamente para Gustav, levantou-se e caminhou até a frente de Truilli,
analisando-o sério. Então ele se virou novamente para o anão amigo, se
espreguiuçou e acenou positivamente com a cabeça.
Urros
de felicidade e jubilo ecoaram por toda a taverna que foi lotando enquanto a
aventura era contada. Parecia uma comemoração de alguma vitória em um torneio.
Todos gritavam, agitavam seus canecos, brindavam e se felicitavam. Valkaria era
uma cidade velada e protegida pela deusa que recebia o mesmo nome, uma deusa de
aventureiros. Não haveria melhor agouro do que iniciar uma aventura naquela
cidade. Dorten surgiu sabe-se lá de onde com as atendentes e suas bandejas
repletas com mais canecos de vinho, cerveja e hidromel gritando que aquela
rodada seria por sua conta.
“-
Vamos caçar esses desgraçados e trazer paz para nossos amigos... Podem contar
com minha espada!” – gritou Blander.
“-
Meu machado!” – gritou Gustav.
“-
Nossos arcos e espadas” – gritaram os elfos abraçados.
“-
Fssssssss!” – assoprou Fortão mostrando suas garras e deixando claro que estava
pronto para a luta.
“-
Mas por onde começaremos nossa jornada?” – questionou Blander.
“-
Podemos começar por isto” – Truilli cravou uma adaga de lâmina negra na mesa, a
mesma adaga que fora do sacerdote e que ele guardara como lembrança de tudo o
que aconteceu naquela fatídica noite. Todos a olharam com uma mescla de admiração,
por sua incontestável beleza, e repulsa, por tudo o que ela representava.
“-
Acho que sei exatamente por onde podem começar, amigos!” – disse Guerta, que
estava passando pela mesa naquele momento.
o O o
Perdeu
o início da aventura, veja os capítulos:
Capítulo 1 - AQUI
Capítulo 2 - AQUI
Quer
mais contos – Acesse AQUI
4 comentários:
Valeu por voltar com esta historia, adoro ela.
Que bom que está gostando...tentarei manter uma maior regularidade!
Boa noite! Descobri o blog e os contos agora, gostaria muito de ver a continuação da história!!
Acredita se eu dissesse que estava revisando hoje um capítulo novo?!
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