Mas meu personagem
não
mata com um golpe?
Final de ano e as coisas estão
mais devagar aqui na Confraria. Mesmo assim resolvi colocar uma reflexão sobre
algumas conversas que tenho tido nesses últimos dias com leitores do blog e
conhecidos. Como de costume tenho lançado muitas adaptações de Mutantes e Malfeitores
e, mais recentemente, muito material de Starfinder. Depois do sucesso do
financiamento coletivo da New Order para o maravilhoso sistema da Paizo, e com
o pdf em português circulando para seus apoiadores, alguns jogadores me
perguntaram sobre qual a melhor configuração para fazer um personagem ‘matador’
(literalmente matador).
Essa pergunta já me foi feita
muitas e muitas vezes nas últimas décadas. Os sistemas e cenários mudam, mas a
pergunta continua a mesma – como fazer um personagem que seja ou poderosíssimo,
ou destruidor, ou combeiro ou tantas outras expressões que significam a mesma
coisa – ‘matador’. Já abordei esse tema algumas vezes na Confraria, mas ele
sempre é atual. Tentarei não me alongar.
Criar um personagem para um
sistema de RPG ou cenário qualquer está baseado em apenas uma coisa – qual a
expectativa que o jogador tem com relação à diversão? É uma questão subjetiva,
ou seja, depende de cada jogador. O jogador vai procurar uma mesa de RPG dentro
do que lhe agrada mais. Fantasia, terror, futurista ou qualquer outra linha que
lhe agrade. Sistemas mais presos em regras e convencionais ou inovadores e
descentralizados. Clássicos ou indies. Todas essas escolhas estão baseadas no
mesmo ponto – a expectativa do jogador.
Dentro disso eu tenho uma forma
de ver o RPG e uma expectativa que me norteia. Nunca vi vantagem em ter um
personagem ‘matador’, pois isso vai totalmente de encontro a minha expectativa
de diversão. Enquanto muitos preferem o simples gosto da vitória simples, inequívoca
e sem surpresa, onde a diversão se centra em um frio amontoado de dados ou
valores exorbitantes de pontos de dano e onde o perigo quase inexiste, à mim me
agrada o conjunto da jornada e a indefinição à cada passo.
Uma analogia que gosto de usar
e que vale pelo menos para mim é que jogar com um personagem ‘matador’ causa
quase o mesmo efeito de jogar um jogo qualquer de videogame usando dicas,
truques ou senhas. Aos poucos perde a graça. Não somos desafiados e tudo se
transforma em um enfadonho caminho onde cada novo inimigo é resumido pelo tempo
que gastaremos até o matarmos. Como eu disse antes, isso não satisfaz minha
expectativa de diversão.
Dentro disso tenho duas experiências
muito agradáveis, uma antiga e outra muito recente. Bem no início dos anos
noventa, eu já não era um novato no RPG, conheci GURPS na praia com uns amigos.
Um dos pontos integrantes do sistema são as desvantagens – elementos que causam
obstáculos para as ações ou interações do personagem com colegas ou NPCs. Foi a
primeira vez que tive que lidar com algo ‘negativo’ que não era um teste para
acertar um monstro ou enganar um guarda. Confesso que me causou um grande
impacto, pois rapidamente aprendi como poderia ser divertido ter que entrar
sorrateiramente em um lugar sendo aziago (desvantagem que te transforma literalmente
em um azarado) ou tentar convencer um NPC de algo quando se é mau humorado. Embora
acrescentar desvantagens lhe desse o benefício de ganhar pontos para gastar em
outras coisas, interpretá-las era a melhor parte. Nosso grupo empilhava
desvantagens em nossos personagens não por ser hilário (embora muitos momentos
engraçados foram construídos assim), mas por nos obrigar a pular fora de nosso
quadrado de segurança e descobrir como reverter problemas sem contar com um
golpe fulminante à cada estocada.
Nas últimas semanas tenho
participado de uma mesa online de City of Mist. O sistema com muita facilidade
permite que você crie personagens extremamente diversificados e até certo ponto
poderosos. Ao mesmo tempo ele tem a característica de permitir uma grande
interação dos jogadores na construção da história. Posso dizer que a melhor
escolha que fiz foi criar um personagem nada poderoso e com ‘poderes’ que
permitam grande versatilidade na interpretação e com isso influenciar a
construção da história. Foram tantos os momentos de indefinição quanto à sucesso
e fracasso que a experiência se tornou única. Maravilhosa. Meu personagem, Juan
Hernandez, tem se construído como parte do cenário de forma lenta, ao mesmo
tempo que muito prazerosa.
Retornando ao nosso ponto
inicial, a diversão é alcançada quando nossa expectativa é correspondida. Não
há uma forma de diversão correta. Há as formas que nos agradam e que
correspondem às nossas expectativas. Temos que ter isso claro por dois motivos.
Primeiro, para que nós que tenhamos a iniciativa e tranquilidade de testarmos
outras e novas formas, como eu lá em minha experiência com GURPS. O segundo,
para compreendermos e respeitarmos que os outros tenham as suas formas de satisfazer
suas expectativas não rotulando de jogar de forma ‘certa’ ou ‘errada’.
Procure uma mesa que se encaixe
em sua expectativa. Divida a mesa com quem vai se divertir da mesma forma. Não
imponha rótulos para a diversão dos outros. Esteja aberto para novas experiências
e sinta-se livre para retornar às suas, se assim preferir. Antes de tudo isso,
divirta-se!
Bons jogos!
Um comentário:
Então, achei ótima a sua postagem, ainda mais porque já passei por isto. Nas minhas experiências (não tantas como as suas, comecei em 2005 e de forma meio estranha haha), sempre houve jogadores querendo ser os mais fortes, mais isto acontece devido ao fato de como eles enxergam o mundo. No meu caso, os meus jogadores tinham sua formação em RPGs de Video Game, vou citar Diablo, WOW e assim por diante. Nestes jogos, se você é um combatente, o melhor a se fazer é ter muito dano e isso, querendo ou não, vem pra mesa. Eu descobri que a melhor forma de lidar com isto é, ao invés de "nerfar" o personagem, diminuir suas chances de brilhar. Um dos maiores erros que tenho visto em mestres por aí, é que eles criam um Hack'n Slash de mesa, ou seja, dungeons cheias de monstros, saindo pela culatra. Se formos seguir a ideia de boas histórias, jogos mais "Old School, veremos que apenas algumas salas possuem monstros, muitas vezes gerando uma ou duas chances de combate, nas outras o foco é armadilhas, exploração, contato com coisas mágicas e assim por diante, favorecendo mais a interpretação do que o combate. Desta forma ladrões, magos e clérigos brilham mais, e outra coisa, magos deixam de desejar ardentemente magias bélicas e se concentram mais nas de suporte e as que serão utilizadas na exploração. Concluindo (desculpe pelo longo texto), realmente é complicado lidar com combeiros, ainda mais com o que as mídias tem transformado a ideia de fantasia em geral. Mas acho que mais uma vez o mestre tem que mostrar que mestre desta forma, em apresentar um mundo que ensina os personages, cabendo a ele ditar a forma em que os personagens devem se moldar para sobreviver, sendo esta mais uma coisa, deixar o mundo mortal, tira a ideia de invencibilidade e o desejo de ser o mais forte.
Postar um comentário