Interpretando baixos
valores
de Inteligência,
Sabedoria e Carisma
Conversando com leitores do
blog, alguns confidenciaram a dificuldade, principalmente no que diz respeito à
interpretação, de como lidar com baixos valores para Inteligência, Sabedoria e
Carisma.
Quando lidamos com a frieza dos
dados, apenas nos preocupando em rolar a quantidade de dados indicada pela
regra em uma determinada situação Não há muito o que fazer. Temos uma situação,
entendemos quantos dados rolar, rolamos, comparamos os resultados e verificamos
as consequências. Algo fácil e sem problemas. Mecanicamente simples. Quando
pensamos nos seis atributos básicos, e estou me baseando nos sistemas atuais
descendentes ou influenciados em maior ou menor distância pelo d20 e afins,
temos consciência de que é muito mais fácil entender limitações ligadas à Força
(For), Destreza (Des) e Constituição (Con). O que eu não consigo carregar ou o
pouco dano que causo, o que eu não tenho motricidade para usar ou minha falta
de mira, ou minha fragilidade física, todos esses exemplos são apenas alguns,
mas são muito mais fáceis de perceber quanto ao momento de usar e da sua devida
interpretação.
Mas quando focamos em Inteligência,
Sabedoria e Carisma, temos uma dificuldade compreensivelmente maior em
adequá-las à interpretação. Enquanto For, Des e Con lidam com uma grande
maioria de situações físicas, materialmente perceptíveis e de direta relação,
Int, Sab e Car lidam com o subjetivo e abstrato do personagem, embora com
resultados materiais. É mais fácil ‘entender’ como lidar com um personagem que
encontra um obstáculo o qual ele não tem força suficiente para remover de seu
caminho ou um equipamento que ele não tem força ou destreza para usar com
eficiência, e consigue, sem grandes problemas, interpretar essa situação
principalmente por estar calcado em algo material e objetivo – não tenho um
valor X que me possibilite fazer X, então interpreto essa impossibilidade.
Além disso, além de lidar com o
subjetivo, os atributos Int, Sab e Car sofrem constante da interferência (ou
comunicação) de ‘fora’, interferência essa que transcende o personagem e é
influenciado pelo jogador.
Se eu digo para um jogador que
seu personagem não consegue levantar algo, pois seu valor do atributo Força não
o permite, por mais que esse jogador seja um levantador de peso olímpico, sua
condição real em nada interferiria no jogo em si, nem em sua forma de proceder
na mesa ou em sua interpretação. Não fará diferença para seu personagem se o
jogador tem a certeza de que ele (como pessoa real) conseguiria levantar o peso
que seu personagem não consegue. Isso em nada interfere no jogo. Isso até
facilita muito a interpretação, pois temos a palpável noção de como proceder e
qual resultado interpretativo essa informação deve passar. É uma verdadeira
interpretação pós-situação. Somos confrontados com uma situação e damos uma
resposta interpretativa direta. O quanto o jogador vai florear a sua
interpretação dessa situação não alterará o resultado – ele não conseguirá
levantar o peso baseando-se apenas em sua força.
Quando lidamos com Int, Sab ou
Car a situação muda.
Esses três atributos são a
forma como o personagem percebe, compreende, se relaciona e responde ao cenário
em seu redor. A relação direta de um jogador com os atributos Int, Sab e Car
não só permanece ativo constantemente durante a mesa, como influenciam ações
pró-ativas mesmo quando não estamos em uma disputa de dados ou tentando
realizar algo. Podemos dizer que esses três atributos correm o risco de estarem
sempre ‘ligados’ durante a sessão.
Enquanto os atributos For, Des
e Con bem ou mal precisam de um gatilho para serem usados, Int, Sab ou Car
precisam estar sempre em funcionamento, pois o personagem não pode (com
raríssimas exceções) se desligar de seu meio. Podemos dizer, sem correr o risco
de exagerar, que For, Des e Con, são acionados quando Int, Sab ou Car assim o
acham necessário. Aqui está o pulo do gato. Como podemos ponderar isso relacionando
com o nível ou valor de nossos atributos Int, Sab ou Car?
Os atributos For, Des e Con,
são muito exatos em seus momentos de uso e interpretação, Int, Sab ou Car estão
mais fluidos ao longo dos momentos do jogo. Meu personagem ter uma idéia é uma
ação relacionada à eles, ele escolher uma forma de abordagem é uma ação
relacionada à eles, ele escolher um caminho é uma ação relacionada à eles, ele
decidir a arma que será usada é uma ação relacionada à eles, ele acreditar em
um NPC é uma ação relacionada à eles, ele escolher uma manobra é uma ação
relacionada à eles, e tantas outras situações.
Eu sei mensurar exatamente quando
aplicar e como proceder e interpretar For, Des e Con, nos momentos pontuais em
que eles são exigidos, mas interpretar essa mesma relação com Int, Sab e Car é
muito mais complicado. Uma vez que todo o momento e situação de jogo é uma
relação do personagem com o meio, esses três atributos estão constantemente
ativos. É difícil para o jogador desvincular-se do que é ‘ele’ e do que deveria
ser o ‘personagem’. Mesmo que inconscientemente essa interferência é muito
comum e constante.
Como fazemos então? Não podemos
esperar que hajam regras (e não há) para todas as situações, até porque, como
já apresentei anteriormente, seria impossível prever todas as situações. Também
não podemos esperar pela interferência do mestre para não corrermos o risco de
engessar demais a sessão. A pergunta retorna – como fazemos?
Minha melhor sugestão é deixar
na mão do jogador. Como assim? Bom, até agora eu explanei das dificuldades de
interpretar Int, Sab e Car quando não compreendemos que elas sofrem
interferência das escolhas do jogador. O que temos que deixar claro aos
jogadores é que sim, ele influencia as três e ele deve racionalmente controlar
como essa influência atua sobre o personagem de uma forma condizente com seus valores
de Int, Sab e Car. Isso é fácil? Não. É impossível? Claro que não.
Sabemos que em algumas
situações é fácil ter uma resposta com relação à nossa Int, Sab e Car. Muitas
das perícias, por exemplo, são relacionadas à elas e simples jogadas de dados
resolvem uma questão pendente. Mas e no resto?
Para inteligência eu costumo
usar uma estratégia: simplificar a
situação e desacelerar o raciocínio.
Para sabedoria: agir antes de pensar
e não medir conseqüências. Já para Carisma: exagerar a situação e fugir
do padrão adequado. Muitos jogadores e mestres, mesmo com boa intenção,
acabam por rotular personagens com baixos valores de Int, Sab e Car em
personagens ‘estúpidos’ ou ‘grosseiros’, ‘burros’ ou ‘nau humorados’, interpretando-os
continuamente de uma única forma. Necessariamente não precisa ser assim.
Vamos ir um pouco mais fundo.
Um personagem com baixa Inteligência não precisa necessariamente ser ‘burro’,
com baixa Sabedoria não precisa necessariamente ser ‘estúpido’ e com baixo
Carisma não precisa ser necessariamente ‘mau humorado’. Embora eles até possam expressar
essas características em determinadas situações associadas aos baixos valores
de Int, Sab e Car, o mais adequado seria associar esses valores à forma de resolução
de problemas, de ponderação de situações e de adequação de interação.
Esses atributos, embora muito
usados para resolução de problemas práticos, e quase sempre junto com alguma
perícia, são ligados de forma subjetiva à situações que requeiram uma avaliação
anterior para uma ação posterior. Como eu já disse, mestres podem interferir
exigindo um teste para esclarecer a conformidade de uma ação de um personagem,
mas o ideal é que os jogadores possam agir conscientemente, proporcionando mais
peso ao personagem, tornando-o mais crível e fluido.
Mas a pergunta que está
pairando no ar no momento é: como fazemos isso? Como eu disse anteriormente o
ideal é uma interpretação pensando mais em uma forma de proceder do que
estereotipar um rótulo usando-o ao extremo. Vamos adiante.
Baixa Inteligência
A baixa Inteligência pode ser
interpretada de diversas maneiras e algumas vezes se confundindo com a baixa
sabedoria, sendo interessante pesar os dois juntos. Frente à um problema
complexo e que requeira um planejamento aprimorado, um personagem com baixa Int
simplesmente escolherá a solução linearmente mais rápida ou curta. Ter de
cruzar uma área cheia de armadilhas em um dungeon? Ele simplesmente achará que
ir abaixado será suficiente. Ter de investir contra uma horda de criaturas de
diferentes tipos e que claramente assumem uma estratégia contra seu grupo?
Correr frontalmente para o ataque é a melhor solução. Ter de se aproximar de um
muro fortemente vigiado à noite? Ele achará que suas perícias de furtividade
(que ele não tem) bastarão enquanto ele pula de forma desajeitada de sombra em
sombra. Ter de matar um mago que é muito perigoso à curta distância? Ele ainda
acha a solução da machadada será a ideal, ora, machadadas matam! Ele não
conseguirá avaliar e pesar de forma adequada prós e contras frente um problema
estabelecido.
Ainda dentro desse viés de
simplificação de situações, um personagem com baixa Int poderá ser interpretado
com a fixação em um pensamento independente do que lhe dizem ou provam. Não
chega a ser uma teimosia, visto que ele acredita convictamente no que pensa.
Nunca olhar nos olhos de um feiticeiro ou terá a alma roubada ou que passar
gordura da pata esquerda de um dragão em sua espada ajudará no corte, são
convicções que podem ser ligadas à um baixo valor de Inteligência.
Desacelerar o raciocínio pode
ser visto de muitas formas. Uma forma muito divertida é a dificuldade em
compreender elementos matemáticos. Não estou dizendo geometria ou álgebra, mas
algo mais simples e que podem ser facilmente usados no jogo. Por exemplo, um
membro do grupo diz - “Nós temos dez por cento de chance de conseguir vencer
aquele mago” - que é prontamente respondido pelo personagem com baixa Int -
“Uau... tudo isso? O que estamos esperando então?” – antes de sair correndo
para enfrentar o lich sem esperar ninguém. Ou então, quando um batedor volta de
sua vigília com a informação de que se aproxima um grupo de bandidos fortemente
armados e que o enfrentamento será de dez para um. Logicamente o personagem com
baixa Int ficará feliz com a proporção.
Outro ponto interessante para
essa desaceleração de raciocínio será agir antes de pensar nas conseqüências
dos atos tomados. Isso pode ser utilizado também como estratégia interpretativa
de baixa sabedoria, embora eu preferi imaginar que agir antes de pensar seja
uma característica de baixa Int, enquanto minimizar consequências ou seus
desdobramentos seja algo mais ligado à baixa Sab. Isso pode ser facilmente
ligado também à um exagero em valorar suas necessidades em relação à dos
outros. Não que não haja empatia em um personagem com baixa Int, mas ele
simplesmente restringe-se em compreender que se ele precisa, essa necessidade
deve ser sanada. É um falha em entender plenamente a diferença de desejo e
necessidade.
Podemos também ligar a baixa
Int à falta de conhecimento. Um personagem com um baixo valor nesse atributo
pode confundir conceitos e termos quando confrontado com pessoas com um
vocabulário diferente, técnico ou rebuscado. Ele pode se valer de um
vocabulário menos vasto também, repetindo termos ou frase quando ele descobre o
que elas querem dizer. Isso não significa diretamente falhas gramaticais ou um
vocabulário baseado em xingamentos e palavras de baixo calão, mas sim uma
simplificação para uso e entendimento.
Outra forma interessante de
interpretar personagens com baixa Int é emular seus diálogos com interrupções
em momentos cruciais como se ele ainda estivesse formulando a frase ou a idéia geral
do assunto, retornando várias vezes ao início da narrativa. Ou então, enquanto
está escutando um plano fazer várias questões tangenciais ou misturar o que ‘deve’
ser feito com o que ‘não deve’ ser feito.
Baixa Sabedoria
Focando agora na baixa
Sabedoria, se tivéssemos que nos centrar em apenas um termo ele poderia ser ‘imprudeência’.
Por isso mesmo que me valho das perspectivas norteadoras para interpretação no ‘agir
antes de pensar’ e ‘não medir as consequências’. Ter um personagem com
altíssimos valores em Inteligência e Carisma, não minimizam os perigos ou erros
que ele comete por causa de sua baixa Sabedoria, embora um baixo valor em Int
possa nos confundir com relação às duas.
Ao interpretarmos um personagem
com baixa Sab pense em que ele pode e deve agir antes de pensar não por não
entender um plano mirabolante (como seria por causa de um baixo valor em Int),
mas simplesmente porque ele acha que o ‘perigo’ da ação não é tão grande assim,
permitindo que ele aja da forma que achar melhor. Isso pode ser entendido
também como uma supervalorização de suas reais condições. Lembram do exemplo anterior
de baixa Inteligência mostrando o personagem que achava que poderia ir pulando
de sombra em sombra para passar desapercebido, como se tivesse furtividade?
Aqui, com relação à baixa Sabedoria, um personagem consideraria ser capaz de realizar
tal tarefa por se considerar ou muito bom no que faz (orgulho ou egocentrismo
exagerados) ou que o perigo é muito baixo se comparado às suas capacidades
(imprudência). Notam como a diferença entre a baixa Sab e baixa Int podem ser
sutis? A sutileza acaba sendo diluída através da interpretação e dos trejeitos
do jogador representando seu personagem.
Essa forma do personagem de
baixa Sab se relacionar com o meio ao seu redor pode ser ramificada para todas
as ações que ele precise realizar. Encontrou um frasco suspeito com um líquido
de cor estranha. Por que não beber e ver o que acontece? O corredor da dungeon
claramente tem armadilhas e devemos esperar o especialista desarmá-las? Nada
disso, eu sou capaz de realizar isso melhor que ele. Uma dezena de milicianos
estão arrumando confusão na taverna e seria melhor esperar o resto do grupo
chegar antes de arrumar confusão. Claro que consigo lutar e vencer sem nem ao
menos suar.
Outra coisa que podemos apontar
aqui é uma forma diferenciada de percepção da realidade e do meio em que esse
tipo de personagem está. Um personagem com baixa Sab tem dificuldade de
compreender que está sendo manipulado por uma incapacidade de se perceber na
perspectiva do outro. Sua forma de supervalorizar a si mesmo ou de não perceber
as consequências frente a atuação dos outros o torna um alvo ideal para
manipulação. Isso pode ser representado de uma forma um pouco diferente, mas
com resultados iguais, quando o personagem está fixado em uma forma de ver o
mundo para pautar sua própria vida e simplesmente não mensura diferenças que podem
existir – ideal para fanáticos de alguma seita.
Baixo Carisma
Um baixo Carisma não é fácil de
ser interpretado por ser ainda mais sutil e ainda mais dependente de uma interação
profunda com outros personagens (sejam de jogadores ou NPCs). Em muitas
ocasiões vemos a interpretação de um baixo carisma ficar restrito à um
afastamento de relações sociais tal qual um eremita mau humorado ou o estranho
da casa velha. Errado.
Quando temos um personagem com
baixo Carisma nada pode ser mais errado do que centrarmos tudo no personagem em
si. Quando afirmo que uma boa estratégia é exagerar as situações e fugir do
padrão adequado, estou tentando demonstrar que o foco está não na ação em si,
mas na compreensão do momento de uso dessa ação e da recepção dessa ação por
parte de nosso alvo na interação. Ter um baixo Car significa não entender
sutilizas sociais e as formas de adequadamente se relacionar com outros pelo
olhar dos outros.
Um personagem com baixo Car
pode ser incrivelmente inteligente ou com elevadíssima sabedoria, mas isso em
nada adianta, pois ele pode ser extremamente desagradável (e não digo rude) na
forma de lidar com os outros. Um personagem com baixo Car é um pragmático pleno.
Se a ação é o que interessa, o que importa é passar a mensagem fria e direta,
mas correta. O contrário não está errado também. O personagem com baixo Car
pode se tornar desagradável por exagerar no trato social chegando ao ponto de
importunar mais do que agradar. Um personagem que deseja ser tão agradável que
não sabe o momento de parar de elogiar o chefe da guarda pode começar uma briga
mais rápido do que um mau-humorado.
O importante é compreender que
um personagem com baixo Car não consegue interpretar a situação em que está
inserida sua interação no momento. Devido à isso ele acaba por escolher as
formas de comunicação e ação menos adequadas à situação. Se ele acertar a forma
exata será mais por acidente do que por convicção.
Os baixos valores de Car podem
gerar personagens que vão do mau-humorado ao desatento, mas sempre linkado à
ações de interação. Tendo isso em mente, esse personagem pode ser interpretado
desde ranzinza à galanteador, dependendo de para qual lado o viés dele pender –
pragmático ou exageradamente atencioso. Tenha isso em mente no momento de
estabelecer a persona de seu personagem, sendo atentar que dificilmente ele
oscilará entre esses dois.
Finalizando
Essas dicas são apenas um norte
para quem deseja dar mais peso e tempero ao seu personagem, mantendo-o em uma
linha coerente. RPG é um exercício de interpretação onde tentamos dar vida à um
‘outro’ e que por meio da interação entre vários jogadores, mediada por um
Mestre, tentamos vivenciar um ambiente diferente. Manter a coerência
interpretativa, ou aprimorá-la, é tanto uma preocupação com sua própria
atuação, quanto uma preocupação com a diversão do outro. Compartilhar uma mesa
de RPG é compartilhar expectativas, assim como responsabilidades.
Lógico que sempre temos e
sempre teremos a regra de ouro do RPG: divertir-se em primeiro lugar. De nada
adianta seguir esse norte que apresentei, se isso se transformar em algo que
violentamente inibe a diversão do grupo. Sabemos que naturalmente os grupos de
RPG se unem e se moldam conforme um inconsciente que vai se adequando e
moldando a mesa e seus participantes com o passar do tempo e das sessões. Interpretar
com maior ou menor realismo pautado coerentemente por uma ficha em nada fere
individualidades dos participantes da mesa. Desde que a forma de atuação seja
condizente com as expectativas de todos, e a sua própria, não há problema algum
em fugir da ficha.
De qualquer forma essas dicas
servem para mostrar um outro caminho possível e interessante para sua
interpretação em mesas de RPG que se valham dos elementos de Int, Sab e Car.
Espero que seja útil!
Bons jogos!
3 comentários:
Obrigado pelas dicas, vou imprimir e ter em mãos quando for jogar, para melhorar a interpretação na mesa!!
Que bom que gostou e que foi útil!
Caramba! Q legal! Curti demais!
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