terça-feira, 1 de outubro de 2019

Resenha: The Shotgun Diaries - sobreviva à um mundo cheio de zumbis


Resenha: The Shotgun Diaries
- sobreviva à um mundo cheio de zumbis -


Quem me conhece mais de perto sabe que tenho uma paixão especial pela temática zumbis. Joguei muitas aventuras de RPG dentro desse tema em sistemas variados, além de curtir filmes, seriados e livros. Até mesmo criei uma série de histórias – Zumbis em Porto Alegre – centradas nessas criaturinhas fétidas e assassinas. Então, quando recebi a caixa da Buró Brasil Redbox repleta de guloseimas para avaliar, eu tinha certeza que começaria escrevendo sobre The Shotgun Diaries.

Vamos começar com um pouco de história. The Shotgun Diaries não chega a ser uma novidade. Longe disso, ele foi lançado em 2009, dez anos atrás, criado pela lenda John Wick. Com a proposta de levar os RPGs narrativos para o cenário de zumbis ele criou em pouquíssimas páginas os alicerces para um leve, compartilhado e criativo sistema. Possivelmente nem ele soubesse, mas ele criou uma das melhores formas de apresentar e ensinar RPG de forma prática (vamos falar mais disso adiante). O sucesso foi tão grande que o sistema ganhou, no mesmo ano, o prêmio de Jogo do Ano no Indie RPG Awards 2009. De lá para cá ele mudou. De um arquivo premiado sem imagens ou variações de fonte ele chega hoje, em nossas mãos no Brasil, como uma edição turbinada belíssima em português.


Quando falo em poucas páginas estou falando de menos de vinte páginas! Isso é sério. Com essas poucas páginas nos é apresentado tudo o que precisamos saber para jogar ou conduzir esse sistema nesse cenário. A proposta dele é muito simples. Estamos em um mundo pós-apocalíptico infestado de zumbis. Não importa quando e nem como isso aconteceu, só importa que precisamos sobreviver e para isso contamos apenas com nossas características pessoais, a ajuda dos outros membros do grupo, alguns parcos recursos e um esconderijo seguro.


Ao jogarmos podemos assumir o papel de Sobreviventes (jogadores) ou de Mestre Zumbi (Mestre). Aqui temos mais um elemento da simplicidade almejada pelo sistema. Nosso personagem – o sobrevivente – estará entre uma das seis possibilidades de jogo: o sobrevivente astuto, o sobrevivente forte, o sobrevivente furtivo, o sobrevivente perigoso, o sobrevivente veloz e o sobrevivente indefeso. Essas seis possibilidades abrangem os principais arquétipos vistos na cultura pop ligada à mídias de zumbis. Aqui não perdemos tempo criando estatísticas e customizando elementos em nosso personagem. Não temos tempo para isso... só temos que sobreviver com o que temos em mãos.

Vamos começar por sua mecânica de jogo. Shotgun Diaries possuía uma mecânica extremamente simples oscilando entre dois pólos: narração compartilhada entre mestre e jogadores, de um lado, e rolagem de dados apenas quando existir zumbis, de outro. Só nisso já percebemos que não há a necessidade de incansáveis rolagens para testar o sucesso ou falha de cada ação que o personagem deseja realizar. Estamos em um mundo onde apenas sobreviver mais um dia é o que realmente interessa e o único empecilho para isso são os mortos-vivos. Qualquer atividade dos personagens sobreviventes dentro do cenário é administrada pelo mestre dentro da história estabelecida e baseando-se na regra do bom senso, onde qualquer um pode narrar o que está acontecendo.


Nos casos onde temos a presença de zumbis, rolamos dados. Simples assim? Sim. No jogo isso é chamado de ‘Assumindo Riscos’. Novamente, em um mundo repleto de zumbis eles são nosso principal problema para a sobrevivência, e apenas assumimos riscos à nossa sobrevivência quando temos que lidar com eles. Nossa rolagem é realizada com x dados d6 onde o objetivo é conseguir pelo menos um valor “6”. Quando um dado rola ao menos um 6, o jogador assume livremente a narrativa do que aconteceu ao personagem Assumir Riscos. Quando nenhum “6” é rolado, o mestre assume essa narrativa... e isso pode ser péssimo. Mas você pode me perguntar? Mas como rolo para matar zumbis? Ora, você já rolou... Ao Assumir Riscos e rolar dados pressupõe-se que a ação é para matar zumbis e a narrativa do jogador representará isso.

Se essa é a única rolagem que realmente temos e a única coisa com real caráter decisório no jogo a quantidade de dados é muito relevante. Quanto mais dados mais chances de conseguirmos um “6”. A quantidade de dados depende de alguns fatores e o principal deles é o próprio personagem. Cada personagem sobrevivente que Assume Risco tem direito a rolar pelo menos 4d6 (à não ser o personagem Sobrevivente Indefeso, que concede 2d6 à quem o ajudar) quando o risco estiver relacionado ao perfil do seu personagem (o Astuto com uso de ferramentas e mecanismos e o Perigoso com uso de armas de fogo, por exemplo). Além disso, conforme o tipo de ação que o personagem realiza ao Assumir Riscos, ele pode adicionar à sua rolagem dados uma quantidade igual ao número de sobreviventes que estão com ele. Essa mecânica de rolagem (com média de 4 dados) faz com que o personagem sempre tenha uma considerável chance de atingir seu objetivo desde que consiga criativamente enquadrar sua ação dentro do seu perfil de sobrevivente. Isso parece fácil demais para a condução segura do sobrevivente, mas não é... e isso por causa do Medo.


Aliado à esse pool de dados temos a regra do Medo. Ora, estamos em uma aventura de horror! Quando o jogo começa você tem “1” de Medo e conforme a aventura se desenrola sua resistência psicológica é testada, elevando esse valor sempre que o personagem for confrontado com algo perturbador. O valor desse Medo é representado por dados da sua rolagem (normalmente dados de cor diferente) que, embora possibilitem que o jogador narre sua ação quando tirar algum “6”, sempre que o jogador tiver que usar um “6” de um dado de medo, ele terá que narra uma ação egoísta ou pensando em si. O uso dos dados de medo cria no jogo uma forma de dinamizar a dramaticidade algumas vezes alheio ao personagem em si – ele consegue algo, mas com custos e esses custos recairão sobre o grupo.

Por fim temos a maravilhosa lógica do Relógio Zumbi. Nós, rpgistas de sistemas variados, estamos acostumados com uma noção abstrata e variável de tempo durante as sessões. The Shotgun Diaries tem uma noção diferente disso, representando o andamento da sessão, quanto suprimentos ainda restam e pelo inevitável encontro com os zumbis. À cada dez minutos (tempo real principalmente quando em momentos de inatividade) o relógio anda em 1, representando a passagem de um dia. Esse número representa quantos zumbis estão prestes à entrar e a diminuição de 1 de nossos suprimentos. O gerenciamento do relógio zumbi permite ao mestre decidir quando o refúgio dos sobreviventes estará comprometido ou sem recursos, os obrigando à arriscarem-se à procura de um novo refúgio ou de novos suprimentos.


Ao final da sessão há um Diário onde é escrita uma nota pelo sobrevivente. Cada nota diminuirá 1 em seu nível de medo e à cada nota uma ‘verdade’ poderá ser dita pelo sobrevivente, verdade essa que será agregada ao jogo – “descobri que os zumbis não enxergam bem na chuva” ou “a sobrevivente ‘tal’ é muito bom em encontrar comida”, por exemplo – e que lhe concederá (à ele ou ao sobrevivente citado) um bônus de 1d sempre aquela situação ocorrer.

Esse é o grosso deste maravilhoso jogo. Há alguns outros elementos interessantes como a forma como os refúgios são categorizados e quanto suprimentos os sobreviventes encontram ou como os usam, e também os personagens que podem se tornar zumbis, mas o que realmente importa é o que foi apresentado anteriormente.


Análise
The Shotgun Diaries é um excelente RPG em vários níveis. A sua simplicidade tanto em mecânica quanto em condução são um elemento que muito me agrada. Sou adepto sim de jogos com centenas de páginas de regras, mas não por isso desdenhe da sua simplicidade.

À César o que é de César. RPGs narrativos têm como seu principal mote a dinâmica compartilhada, por um lado, e o dinamismo, por outro. Tentar levar esses dois pontos juntamente com um conjunto de regras e mecânicas complexas e passíveis de centenas de exceções seria uma contradição. John Wick encontrou o ponto de equilíbrio perfeito entre sistema e narração compartilhada que faz com que o jogo se desenrole velozmente, como uma aventura de terror tem de ser, ao mesmo tempo que com fluidez.


As características desse RPG o tornam perfeito para mestres iniciantes no hobby (e não só para iniciantes na mecânica de narrativa compartilhada). A leveza de condução da história aliada mais à um eixo central, permite que à qualquer momento se saia e se retorne sem qualquer problema para o mestre novato. O uso da lógica e do bom senso, ao invés de métricas, tabelas e páginas de recursos, permite ao mestre novato mais segurança e naturalidade na criação e condução da aventura. É lógico que o mestre ainda precisa de certo preparo da aventura e principalmente de elementos de inspiração, mas é muito mais simples para ele manter a linha do jogo.

Ao mesmo tempo ele não é um jogo perfeito apenas para novatos. O mestre experiente encontrará em TSD um RPG perfeito para quebrar a rotina de jogos mais longos e prolixos. A facilidade em criar a história e as conduzir serve muito bem para que algumas sessões desse RPG sirvam como ínterim de campanhas de outros sistemas.

Voltando ao tema do bom senso temos que fazer dois alertas. Primeiramente, este é um RPG de horror e como tal é importantíssimo que os jogadores ‘comprem’ a ideia. Jogos de horror/terror onde os jogadores desestabilizam a ambientação e a sensação coletiva, tornam a experiência irrisória. Claro que momentos que encenem descontração ou alívios cômicos podem acontecer, mas pensem que o ambiente é de terror e que a morte espreita à cada sombra.

O segundo alerta é que narrativas compartilhadas são uma forma incrível de jogar RPG e minhas experiências têm sido maravilhosas (tanto pelo incrível mestre que temos, quanto pelo maravilhoso grupo que divide a mesa comigo). Ao mesmo tempo a linha que separa a diversão e o insucesso é tênue. Falta de bom senso de um dos jogadores em sua narrativa pode levar à resultados péssimos. Compartilhar narrativas é compartilhar responsabilidades pela diversão de todos e deve ser encarado dessa forma.


Quanto à apresentação de The Shotgun Diaries a Buró Brasil–Redbox nos entrega um produto de primeiríssima qualidade. A caixa é charmosa e cheia de estilo e, principalmente, é do mesmo design e tamanho das outras caixas de produtos da editora (adoro isso). Todo o material é colorido e em ótimo material. Os dados (vermelhos e verdes) são um pouquinho simples, mas mesmo assim estão no tom perfeito com o resto do material. As fichas, o relógio zumbi e os contadores são grossos, resistentes e com fino acabamento. Ou seja, material durável, resistente e bonito... o que poderíamos querer?

Procure pelo seu The Shotgun Diaries e jogue sem medo, com toda a certeza ele lhe garantirá muitas sessões de diversão... e medo!


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