Resenha: The Shotgun
Diaries
- sobreviva à um mundo cheio de zumbis -
Quem me conhece mais de perto
sabe que tenho uma paixão especial pela temática zumbis. Joguei muitas
aventuras de RPG dentro desse tema em sistemas variados, além de curtir filmes,
seriados e livros. Até mesmo criei uma série de histórias – Zumbis em Porto
Alegre – centradas nessas criaturinhas fétidas e assassinas. Então, quando
recebi a caixa da Buró Brasil Redbox repleta de guloseimas para avaliar, eu
tinha certeza que começaria escrevendo sobre The
Shotgun Diaries.
Vamos começar com um pouco de
história. The Shotgun Diaries não chega a ser uma novidade. Longe disso, ele
foi lançado em 2009, dez anos atrás, criado pela lenda John Wick. Com a
proposta de levar os RPGs narrativos para o cenário de zumbis ele criou em
pouquíssimas páginas os alicerces para um leve, compartilhado e criativo
sistema. Possivelmente nem ele soubesse, mas ele criou uma das melhores formas
de apresentar e ensinar RPG de forma prática (vamos falar mais disso adiante).
O sucesso foi tão grande que o sistema ganhou, no mesmo ano, o prêmio de Jogo
do Ano no Indie RPG Awards 2009. De lá para cá ele mudou. De um arquivo premiado
sem imagens ou variações de fonte ele chega hoje, em nossas mãos no Brasil,
como uma edição turbinada belíssima em português.
Quando falo em poucas páginas
estou falando de menos de vinte páginas! Isso é sério. Com essas poucas páginas
nos é apresentado tudo o que precisamos saber para jogar ou conduzir esse
sistema nesse cenário. A proposta dele é muito simples. Estamos em um mundo
pós-apocalíptico infestado de zumbis. Não importa quando e nem como isso
aconteceu, só importa que precisamos sobreviver e para isso contamos apenas com
nossas características pessoais, a ajuda dos outros membros do grupo, alguns
parcos recursos e um esconderijo seguro.
Ao jogarmos podemos assumir o
papel de Sobreviventes (jogadores) ou de Mestre Zumbi (Mestre). Aqui temos mais
um elemento da simplicidade almejada pelo sistema. Nosso personagem – o
sobrevivente – estará entre uma das seis possibilidades de jogo: o sobrevivente
astuto, o sobrevivente forte, o sobrevivente furtivo, o sobrevivente perigoso,
o sobrevivente veloz e o sobrevivente indefeso. Essas seis possibilidades
abrangem os principais arquétipos vistos na cultura pop ligada à mídias de
zumbis. Aqui não perdemos tempo criando estatísticas e customizando elementos
em nosso personagem. Não temos tempo para isso... só temos que sobreviver com o
que temos em mãos.
Vamos começar por sua mecânica
de jogo. Shotgun Diaries possuía uma mecânica extremamente simples oscilando
entre dois pólos: narração compartilhada entre mestre e jogadores, de um lado,
e rolagem de dados apenas quando existir zumbis, de outro. Só nisso já
percebemos que não há a necessidade de incansáveis rolagens para testar o
sucesso ou falha de cada ação que o personagem deseja realizar. Estamos em um
mundo onde apenas sobreviver mais um dia é o que realmente interessa e o único empecilho
para isso são os mortos-vivos. Qualquer atividade dos personagens sobreviventes
dentro do cenário é administrada pelo mestre dentro da história estabelecida e baseando-se
na regra do bom senso, onde qualquer um pode narrar o que está acontecendo.
Nos casos onde temos a presença
de zumbis, rolamos dados. Simples assim? Sim. No jogo isso é chamado de ‘Assumindo
Riscos’. Novamente, em um mundo repleto de zumbis eles são nosso principal
problema para a sobrevivência, e apenas assumimos riscos à nossa sobrevivência
quando temos que lidar com eles. Nossa rolagem é realizada com x dados d6 onde
o objetivo é conseguir pelo menos um valor “6”. Quando um dado rola ao menos um
6, o jogador assume livremente a narrativa do que aconteceu ao personagem
Assumir Riscos. Quando nenhum “6” é rolado, o mestre assume essa narrativa... e
isso pode ser péssimo. Mas você pode me perguntar? Mas como rolo para matar
zumbis? Ora, você já rolou... Ao Assumir Riscos e rolar dados pressupõe-se que
a ação é para matar zumbis e a narrativa do jogador representará isso.
Se essa é a única rolagem que
realmente temos e a única coisa com real caráter decisório no jogo a quantidade
de dados é muito relevante. Quanto mais dados mais chances de conseguirmos um “6”.
A quantidade de dados depende de alguns fatores e o principal deles é o próprio
personagem. Cada personagem sobrevivente que Assume Risco tem direito a rolar pelo
menos 4d6 (à não ser o personagem Sobrevivente Indefeso, que concede 2d6 à quem
o ajudar) quando o risco estiver relacionado ao perfil do seu personagem (o
Astuto com uso de ferramentas e mecanismos e o Perigoso com uso de armas de
fogo, por exemplo). Além disso, conforme o tipo de ação que o personagem
realiza ao Assumir Riscos, ele pode adicionar à sua rolagem dados uma
quantidade igual ao número de sobreviventes que estão com ele. Essa mecânica de
rolagem (com média de 4 dados) faz com que o personagem sempre tenha uma
considerável chance de atingir seu objetivo desde que consiga criativamente
enquadrar sua ação dentro do seu perfil de sobrevivente. Isso parece fácil
demais para a condução segura do sobrevivente, mas não é... e isso por causa do
Medo.
Aliado à esse pool de dados
temos a regra do Medo. Ora, estamos em uma aventura de horror! Quando o jogo
começa você tem “1” de Medo e conforme a aventura se desenrola sua resistência
psicológica é testada, elevando esse valor sempre que o personagem for
confrontado com algo perturbador. O valor desse Medo é representado por dados da
sua rolagem (normalmente dados de cor diferente) que, embora possibilitem que o
jogador narre sua ação quando tirar algum “6”, sempre que o jogador tiver que
usar um “6” de um dado de medo, ele terá que narra uma ação egoísta ou pensando
em si. O uso dos dados de medo cria no jogo uma forma de dinamizar a
dramaticidade algumas vezes alheio ao personagem em si – ele consegue algo, mas
com custos e esses custos recairão sobre o grupo.
Por fim temos a maravilhosa
lógica do Relógio Zumbi. Nós, rpgistas de sistemas variados, estamos
acostumados com uma noção abstrata e variável de tempo durante as sessões. The
Shotgun Diaries tem uma noção diferente disso, representando o andamento da
sessão, quanto suprimentos ainda restam e pelo inevitável encontro com os
zumbis. À cada dez minutos (tempo real principalmente quando em momentos de
inatividade) o relógio anda em 1, representando a passagem de um dia. Esse
número representa quantos zumbis estão prestes à entrar e a diminuição de 1 de
nossos suprimentos. O gerenciamento do relógio zumbi permite ao mestre decidir
quando o refúgio dos sobreviventes estará comprometido ou sem recursos, os
obrigando à arriscarem-se à procura de um novo refúgio ou de novos suprimentos.
Ao final da sessão há um Diário
onde é escrita uma nota pelo sobrevivente. Cada nota diminuirá 1 em seu nível
de medo e à cada nota uma ‘verdade’ poderá ser dita pelo sobrevivente, verdade
essa que será agregada ao jogo – “descobri que os zumbis não enxergam bem na
chuva” ou “a sobrevivente ‘tal’ é muito bom em encontrar comida”, por exemplo –
e que lhe concederá (à ele ou ao sobrevivente citado) um bônus de 1d sempre aquela
situação ocorrer.
Esse é o grosso deste
maravilhoso jogo. Há alguns outros elementos interessantes como a forma como os
refúgios são categorizados e quanto suprimentos os sobreviventes encontram ou
como os usam, e também os personagens que podem se tornar zumbis, mas o que realmente
importa é o que foi apresentado anteriormente.
Análise
The Shotgun Diaries é um
excelente RPG em vários níveis. A sua simplicidade tanto em mecânica quanto em
condução são um elemento que muito me agrada. Sou adepto sim de jogos com
centenas de páginas de regras, mas não por isso desdenhe da sua simplicidade.
À César o que é de César. RPGs
narrativos têm como seu principal mote a dinâmica compartilhada, por um lado, e
o dinamismo, por outro. Tentar levar esses dois pontos juntamente com um
conjunto de regras e mecânicas complexas e passíveis de centenas de exceções seria
uma contradição. John Wick encontrou o ponto de equilíbrio perfeito entre sistema
e narração compartilhada que faz com que o jogo se desenrole velozmente, como
uma aventura de terror tem de ser, ao mesmo tempo que com fluidez.
As características desse RPG o
tornam perfeito para mestres iniciantes no hobby (e não só para iniciantes na
mecânica de narrativa compartilhada). A leveza de condução da história aliada
mais à um eixo central, permite que à qualquer momento se saia e se retorne sem
qualquer problema para o mestre novato. O uso da lógica e do bom senso, ao
invés de métricas, tabelas e páginas de recursos, permite ao mestre novato mais
segurança e naturalidade na criação e condução da aventura. É lógico que o
mestre ainda precisa de certo preparo da aventura e principalmente de elementos
de inspiração, mas é muito mais simples para ele manter a linha do jogo.
Ao mesmo tempo ele não é um jogo
perfeito apenas para novatos. O mestre experiente encontrará em TSD um RPG
perfeito para quebrar a rotina de jogos mais longos e prolixos. A facilidade em
criar a história e as conduzir serve muito bem para que algumas sessões desse
RPG sirvam como ínterim de campanhas de outros sistemas.
Voltando ao tema do bom senso
temos que fazer dois alertas. Primeiramente, este é um RPG de horror e como tal
é importantíssimo que os jogadores ‘comprem’ a ideia. Jogos de horror/terror
onde os jogadores desestabilizam a ambientação e a sensação coletiva, tornam a
experiência irrisória. Claro que momentos que encenem descontração ou alívios
cômicos podem acontecer, mas pensem que o ambiente é de terror e que a morte
espreita à cada sombra.
O segundo alerta é que
narrativas compartilhadas são uma forma incrível de jogar RPG e minhas experiências
têm sido maravilhosas (tanto pelo incrível mestre que temos, quanto pelo
maravilhoso grupo que divide a mesa comigo). Ao mesmo tempo a linha que separa
a diversão e o insucesso é tênue. Falta de bom senso de um dos jogadores em sua
narrativa pode levar à resultados péssimos. Compartilhar narrativas é
compartilhar responsabilidades pela diversão de todos e deve ser encarado dessa
forma.
Quanto à apresentação de The
Shotgun Diaries a Buró Brasil–Redbox nos entrega um produto de primeiríssima
qualidade. A caixa é charmosa e cheia de estilo e, principalmente, é do mesmo
design e tamanho das outras caixas de produtos da editora (adoro isso). Todo o
material é colorido e em ótimo material. Os dados (vermelhos e verdes) são um
pouquinho simples, mas mesmo assim estão no tom perfeito com o resto do
material. As fichas, o relógio zumbi e os contadores são grossos, resistentes e
com fino acabamento. Ou seja, material durável, resistente e bonito... o que
poderíamos querer?
Procure pelo seu The Shotgun
Diaries e jogue sem medo, com toda a certeza ele lhe garantirá muitas sessões
de diversão... e medo!
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