sábado, 22 de março de 2008

Diário de um escudeiro - 2

Sexto dia de Cyd de 1392.

Existem muitos tipos de medo. Medo de um inimigo. Medo da morte. Medo da perda. E o medo do desconhecido. Eu sou de Namalkah. Em todo o Reinado quando se houve dizer que alguém nasceu aqui, logo vem a imagem de um cavaleiro cavalgando por nossas maravilhosas planícies e vivendo aventuras e mais aventuras.

A realidade está muito longe disto. Nem todos têm esta sorte. Alguns sortudos, de famílias abastadas com certeza têm tempo de sobra para cavalgar por ali sem se preocupar com nada além de cortejar lindas donzelas e passar a noite bebendo entre seus amigos esnobes e afetados.

Muitos, como eu, vivem em pequenas comunidades – dentre as incontáveis que existem por nossas planícies – levando uma vida dura. Não vou dizer que por isso sou infeliz. Somos felizes. Muito felizes. Acho que muito mais do que esses esnobes empolados. Nosso contato mais íntimo com todos os filhos da mãe Allihanna nos abre os olhos para outro tipo de felicidade. A de estar vivo. A de fazer parte de algo. A de estar sempre aquecido junto ao seio da grande mãe. A de estar unido à toda natureza.

Embora este seja o reino dos cavalos e dos cavaleiros, nem todos podem se dar ao luxo de cavalgar despreocupados. Muitos têm de cuidar e tratar de nossos amados amigos de quatro patas. Esse é o trabalho de grande parte da população. Essa é a nossa vida e o nosso sustento.

Não estou reclamando, em absoluto. Sou um sortudo por ter tido a oportunidade de aprender, como nossas gerações anteriores, todos os cuidados e o amor pelos cavalos e pela natureza. Mas agora, saculejando nesta carroça, tentando equilibrar a pena numa das mãos e na outra meu pote de nankin, indo em direção à Palthar, vejo que somos muito mais numerosos do que imaginava.

E isso é bom, pois aqui Allihanna sempre terá um povo à zela-la.

Já está entardecendo e consigo, ao longe, ver as sobras que indicam onde está nossa capital. Algumas luzes já despontam aqui e ali. Mas quase não consigo enxergar o suficiente para empunhar minha pena. Continuarei mais tarde, na estalagem onde devo esperar até amanhã.
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Já estamos bem no meio da hora da deusa das trevas. Estou com o corpo doído pelo dia de viagem até aqui. Foram pelo menos doze horas de carroça.

Palthar é enorme. Pelo menos me parece. Mas à noite todos os gatos são pardos. A estalagem que meu avô me indicou tem um nome bem sugestivo – “Primeira Parada”. É minha primeira parada nesta jornada, com certeza. A comida foi farta e revigorante. Fico impressionado com as coisas da cidade. São estranhas mesmo. Ao chegar na estalagem logo fui olhado de cima à baixo pelo senhor que a dirige (pelo menos agia como tal). Um homem envelhecido e muito magro. Debaixo de suas grossas sobrancelhas um olhar afiado me escrutinava. Não tenho posses de viagem, sou um simples tratador de cavalos, e isso denunciou minha condição humilde. Tive a impressão que seria enxotado como um cão velho. O olhar de escárnio não era dissimulado. Mas foi só dizer “sou convidado de Sir Constan” que tornei-me uma celebridade dentre os hóspedes. Me senti um rei entre os maltrapilhos... Ainda acho graça do olhar que o infeliz deu ao ler minha carta de apresentação assinada pelo próprio cavaleiro com o intuito de me “abrir portas”. Isso é incrível e triste. Gente estranha.

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