terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Diário de um Escudeiro - 30

Décimo terceiro dia de Salizz de 1392
A falta de costume que tenho em ingerir vinho me fez acordar com a cabeça latejando por demais. Parecia que tinha uma dúzia de sinos dentro dela a badalarem sem parar. Fiquei assim até a metade do dia com certeza.

Muito cedo acordei com o barulho do vai e vem de quase todos os escudeiros e serviçais que dividiam o mesmo espaço. Hoje foi o primeiro dia inteiro do festival e das comemorações, então muito havia de ser feito. Os primeiros raios do deus Azgher avançavam no horizonte e a correria pelos corredores já denotava que os afazeres seriam em grande número naquele dia. Com todas essas preocupações eu nem imaginava o que nos reservava o resto do dia.

Eu corri para os aposentos de Sir Constant e para minha surpresa ele já estava de pé e quase pronto para o dia movimentado. Vestindo sua armadura encoberta por sua melhor túnica, não poupou os ornamentos em ouro e pedras preciosas. A ostentação era uma marca de um segmento grande dos cavaleiros seguidores do deus Khalmyr.

Desde que chegamos à Norm, as palavras trocadas entre nós eram escassas. Mas hoje, pelo menos durante a manhã, foi muito diferente. Ele falava sem parar comigo sobre tudo o que estava reservado para esses dias de confraternização. De como deveria me portar com os outros cavaleiros e da importância de mostrar seu valor.

De pronto fomos para a parte exterior do castelo, ainda dentro dos muros internos da enorme estrutura que era ele. Originalmente as muralhas do castelo eram o limite da cidade de Norm, mas com o passar do tempo toda uma cidade formou-se a partir de seus muros conforme pessoas e mais pessoas vinham para seus portões. O enorme pátio do castelo era calçado com pedras que pareciam perfeitos ladrilhos de porcelana tamanha sua delicadeza e esmero. Cada passo ecoava mais alto naquele piso, mesmo estando à céu aberto, que demonstrava nada menos do que a grandiosidade da maior ordem de Arton. Com aquele espaço repleto de cavaleiros o som era como de um trovão com o eco que as passadas, despreocupadas ou não, produziam.

Para todos os lados que olhávamos haviam os símbolos de Khalmyr. Nas flâmulas, nas bandeiras, nas cores, na aura, tudo lembrava o deus e seus desígnios. Meu peito parecia explodir a cada passo que eu dava. Ontem a sensação não fora tão palpável, mas neste momento tinha a noção de que estava retornando para casa, retornando ao colo paterno. Ainda não sei explicar, mas nunca me sentira assim, fora de minha casa em Namalkah.

Mas rapidamente tive que esquecer desses devaneios, trocando-os pelos afazeres de que estava responsável. Me faltavam braços para carregar tudo o que precisava: estopas, panos, pequenos frascos com líquidos para polir as peças metálicas de Sir Constant, pedras de fio, entre muitas outras coisas. Meu senhor havia me prometido que, se realizasse bem meu trabalho, eu estaria dispensado no meio da tarde, já que ele teria alguns afazeres que dispensavam minha presença. Com mais este incentivo desempenhei minha função com todo o cuidado e suor.

Confesso que vi muito pouco das atividades do torneio enquanto estava desempenhando meus afazeres. O que sei é que tudo começou, já com o semblante iluminado do deus Azgher, com um discurso inflamado de Phillipp Donovan, comandante da Ordem da Luz. À isso se seguiram algumas disputas de justa, ainda com os cavaleiros de menor expressão, pelo que me disseram, já que as principais seriam apenas no último dia das festividades.

Houveram ainda algumas demonstrações de habilidades com espadas e arcos para satisfazer os egos de muitos.
Em meio à tudo isso eram muitos os estandartes que, empunhando as marcas de famílias, iam e vinham com seus sectos, maiores ou menores, conforme a importância e riqueza de seus senhores. Confesso que achei que tudo relacionado ao deus da justiça seria algo com menos pompa e mais respeito, mas quem sou eu para debater tal idéia?

Como fiquei encerrado a maior parte do tempo na tenda designada para Sir Constant, acompanhava os jogos apenas pela euforia da multidão e pelos rostos de cavaleiros que passavam, vitoriosos ou decepcionados, quando não feridos.

Outra coisa que me chamou a atenção foram os “parias”. Eu os chamava assim, depois de ter escutado alguns cavaleiros dizendo o mesmo, e espero que eles não me escutem. Esses cavaleiros andavam sem pompa, sem estandarte, sem secto, sem brilho e, com toda a certeza, mostravam suas aventuras em marcas, arranhões e amassados em suas armaduras. Espelhavam toda sua a experiência - pelo menos me parecia isso – numa aura de dificuldades, mazelas e esforço. Eles não andavam seguidos por escudeiros carregando lenços, bandejas e flâmulas. Ao contrário, eles estavam sempre em pequenos grupos de outros iguais à eles. Quando se encontravam tinham aquele olhar de satisfação por ver que um amigo ainda estava vivo – um olhar sincero e cheio de significado. Estavam sempre rindo também, e fazendo galhofas entre eles. Sentavam em qualquer lugar, de qualquer forma, bebendo do gargalo e dividindo sua garrafa com quem pedisse. Eram imagens tão estranhas quanto um bando de orcs em meio à uma grupo de seguidores da deusa Marah. Outros cavaleiros, aqueles garbosos e afetados, os olhavam e desviavam como quem toma cuidado para não pisar em esterco pelo chão. E os “párias” achavam graça disso.

Fiquei muito interessado neles e gostaria de que meu avô estivesse aqui para conversarmos sobre isso. Tenho certeza que ele teria uma ou duas coisas para falar sobre isso, e depois iria beber com eles.

Quando a tarde ultrapassou sua metade Sir Constant apareceu para trocar de túnica e para me dispensar por hoje. Fiquei satisfeito, até porque não havia comido mais do que alguns pedaços de pão que eu havia guardado de ontem. Meu senhor me dispensou até o meio dia de amanhã.

Saindo dali fui vadiar pelas ruas dentro dos muros do castelo. A profusão de pessoas era inimaginável, maior ainda do que a multidão que encontrara em Yuden, no Dia do Guerreiro, tempos atrás. Mas não pude perder tempo com isso, pois já tinha um destino certo, pelo menos para aquele momento. Queria encontrar um Templo de Khalmyr.

A tarefa não foi difícil pois ele era facilmente localizável à distância. Era um prédio enorme e pontiagudo. Claramente uma produção das mãos hábeis de anões, como o próprio Castelo da Luz. Em sua fronte, esculpido em riqueza de detalhes, a imagem de uma enorme espada sobreposta à uma balança. Fiquei um bom tempo parado absorvendo a beleza daquele prédio quando conheci Sir John “Sangue Negro” Tussan.

“- É realmente uma beleza, não é?” – disse ele às minhas costas me causando espanto.

Ele era um daqueles cavaleiros que chamei de “pária”. Tinha uma voz de trovão que espantava qualquer um que estivesse à sua volta. Muito alto chegava a me deixar escondido em sombra. Não vestia sua armadura, mas a carregava amarrada ao seu cavalo, logo atrás de si. Ela estava muito marcada e arranhada pelos anos de uso, embora assim mesmo mostrasse ser um belo artefato e mantinha seu brilho.

“- É o maior que vi até agora, meu senhor, e o mais bonito também!” – respondi após uma reverência, sem saber ao certo como proceder.

“- Deixe disso meu jovem ou serei obrigado e lhe dar um belo chute nos fundilhos” – disse Sir John entre um largo sorriso – “nosso pai Khalmyr não se interessa por reverências, tributos ou frescuras”.

“- Será que eu posso entrar? Será apenas por um minuto!

Ele fechou a cara numa carranca que surgira não sei de onde – “eles que se arrisquem a fechar as portas de Khalmyr para qualquer um que seja” – proclamou cerrando os punhos – “venha comigo jovem, estou cansado de ver como as coisas tem andado. Daqui a pouco irão obrigar que se pague tributo para atravessar aquelas portas. Vou entrar contigo”.

Ele puxou os arreios de seu cavalo e o amarrou num dos muitos postes preparados para tal função, em frente ao templo. Em passos largos ele subiu a primeira dezenas de degraus em duas ou três passadas – “vamos logo meu caro, vamos ensinar à eles como é que se faz uma entrada de luxo”.

Quando dei por mim já estava no topo da longa escadaria do templo. Ele tinha aquela qualidade típica dos líderes onde suas palavras eram sempre seguidas quase que inconscientemente. Ele era um líder nato.
As portas eram imponentes e pesadas como a responsabilidade de seguir tamanha força de caráter digna de um deus da justiça. Muitos entravam e saiam do templo apressados. Mendigos pediam alguma moeda aos fiéis esparramados por boa parte da extensão da escadaria, atraindo olhares de nojo de cavaleiros e sacerdotes. Eu não entendi muito bem a reação deles. Ou melhor, eu começava a entender.

Quando chegamos às portas do templo as enormes figuras que guardavam a entrada e saída de todos apenas moveram seus olhos fitando-nos. Sir Tussan ameaçou continuar seu caminho mas parou por um instante e voltou um passo – “nem pensem em abrir a boca, camaradas” – e voltou a andar. Eu me sentia como um inseto entre gigantes. Como meu avô dizia, era briga de peixe grande.

“- Eis, meu caro... o templo de Khalmyr” – disse-me Sir Tussan – “aproveite”.

Após alguns passos eu como que saí de meu corpo. Senti meu espírito leve. Meu peito queimava como que em chamas. Tussan percebeu o que acontecia e me perguntou por mais de uma vez se eu me senti bem. Eu estava maravilhoso. Continuei caminhando por toda a nave central do templo. Foi um longo caminho, e sempre acompanhando por Sir.

Por todo o lado cavaleiros e mais cavaleiros estavam ocupados com seus afazeres. Grupos de cavaleiros realizavam orações ou meditações em alguns bancos perto do centro. Um em especial, muito velho, algo raro para cavaleiros, estava como que num transe numa ladainha ao mesmo tempo hipnótica e maravilhosa.

Quando chegamos à frente do altar principal perguntei à Sir Tussan se poderia sentar por alguns instantes para apreciar a sensação, algo que ele assentiu de imediato. Fiquei alguns minutos sentindo aquela sensação como que de uma renovação interior. Enquanto isso o cavaleiro encontrou alguns colegas e passou a ter uma animada, embora sussurrada, conversa.

Quando me levantei para agradecer ao cavaleiro e partir, ele se aproximou acompanhado do que deveria ser uma clériga de Khalmyr.

“- Rapazinho, essa é Lady Rosin Crossbones, a mais leal servidora de Khalmyr, embora use saias” – disse ele rindo e tirando algumas risadas da milady e de outros que estavam junto.

“- E mesmo com saias ainda posso lhe ensinar como beijar a terra depois de uma contenda” – ela respondeu dando um largo sorriso – “e você rapaz como se chama?

“- Tyrias, minha senhora, escudeiro de Sir Constant” – respondi fazendo uma reverência.

“- Deixe disso rapaz... qualquer um que tem um amor tão grande pelo nosso deus amado não deve se curvar à ninguém” – ele ficou me vasculhando com o olhar e seu sorriso foi sumindo aos poucos. Confesso que na hora fiquei um pouco preocupado – “vocês sentiram também?” – ela disse à todos ali reunidos, recebendo balançares de cabeça na forma afirmativa.

“- Algo de errado comigo?

“- Em absoluto” – o sorriso voltou ao seu rosto – “muito pelo contrário”.

Sua mão percorreu meu rosto numa carícia que desceu pelo meu pescoço, onde ela encontrou, com os dedos a corrente onde pendia o medalhão que recebi de meu avô. Ela suavemente o puxou para fora.

“- Este medalhão é sinal de muita honra e merecimento e quem o deu à você deveria ser alguém muito especial e honrado. Mas o que sentimos vem além do poder que emana do medalhão. Vem daquilo que o fez receber o anel que está em seu dedo. Vem daquilo que o fez entrar aqui hoje. Vem daquilo que o tem dado méis perguntas que respostas. Vem de dentro de você, senhor Tyrias. Não se deprecie e nunca pense que sua vida se resume apenas à servir, pois um verdadeiro servo de Khalmyr, como és de coração, serve à todos como um apostolado da justiça, da igualdade e da honra. Seu caminho será próspero, longo e empunhando uma espada”.

Todos em volta estavam num silêncio reverencial, menos Sri Tussan que deu uma gargalhada que estremeceu as abôbadas do templo – “eu nunca me engano garoto... eu sabia que tu tinha algo de especial...”

Da mesma forma que ela chegou e falou comigo ela se despediu e saiu conversando animadamente com seus colegas.

Depois daquilo saí de lá e continuei vagando pela cidade, em parte acompanhado por Sir Tussan que me mostrou lugares interessantes, e outros que me deixaram rubro de vergonha. Prometemos nos encontrar outras vezes para visitar o templo. De resto percorri a cidade perdido em meus pensamentos até voltar aos aposentos dos serviçais.Não consegui participar das festividades noturnas deles hoje. Só queria escrever no diário para ter bem marcadas as lembranças de hoje e quem sabe ainda poder mostrar isso ao meu avô.

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