Anotação 2 - Chegando em Porto alegre
Vou começar a rememorar o início deste inferno que já dura quatro meses.
Eu estava voltando de dois dias de trabalho duro em Santa Maria. A viagem de lá
para Porto Alegre não leva mais do que quatro horas de carro. Era uma
sexta-feira e eu nem imaginava o que já estava acontecendo naquela manhã. Tinha
passado a última semana na cidade de Mata, alguns quilômetros depois de Santa
Maria, numa conferência universitária sobre comunidades indígenas. Depois
resolvi esticar mais dois dias em reuniões na Universidade Federal de Santa
Maria. Lá fiquei sabendo que o mundo estava virando de pernas para o ar, mas
ainda eram rumores esparsos, comentários incrédulos de cientistas, piadas de estudantes
e telejornais sensacionalistas.
As informações sempre salientavam que nunca poderíamos ser atingidos por aquele
mal, e mesmo que fossemos não precisávamos entrar em pânico, pois haveria um
plano infalível de controle. Isso havia começado no início deste mês, janeiro.
Casos isolados nos Estados Unidos, Austrália, China, França e em países do sul
da África. Dias depois já havia quase uma centena de casos, e duas semanas
depois já haviam casos espalhados por todos os continentes. Mas as notícias
ainda eram as mesmas – que tudo estava sob controle e de que o Brasil está
protegido. Em rede nacional ministros se revezavam conclamando todos para
manterem a calma e tornarem-se uma só força contra a ameaça. Talvez por isso
que não cancelaram o Congresso de Mata.
No início da semana em que voltaria para Porto Alegre, vinte dias depois da
primeira notícia, havia surgido um caso de um passageiro de um voo que vinha de
Miami com conexão em São Paulo. Ele havia entrado em colapso em pleno ar, mas
conseguiram trancá-lo num compartimento do 747 da TAM. Depois que o avião
pousou nada mais se falou sobre o caso, tendo sido claramente abafado. A
Radio Gaúcha dava informes hora a hora sobre notícias vindas de todo o mundo e
do resto Brasil. Eram informações desencontradas que mais deixavam dúvidas do
que certezas – algo que sabiam fazer muito bem para manter a audiência dando
conectada.
No meio da semana, três dias atrás, o Hospital das Clínicas de Porto Alegre
havia informado sobre meia dúzia de casos, além de outros em Caxias do Sul,
Pelotas e Uruguaiana. Na sexta-feira pela manhã, antes de começar a viajem de
volta foi dado um alerta em Porto Alegre, bem como em várias outras capitais,
com toque de recolher, fechamento de escolas e repartições públicas. O exército
iria assumir o controle das ruas das cidades. Ainda diziam que era apenas de
forma preventiva. As notícias da mídia estavam sendo claramente controladas.
De qualquer forma eu iria voltar à Porto Alegre.
Depois de abastecer minha caminhonete passei em um supermercado de Santa Maria
e fiz um pequeno rancho, não só por não ter nada em casa quando chegasse, mas
também por um palpite de que havia algo estranho no ar. Comprei o básico para
se precisasse ficar em casa. Macarrão instantâneo, água, leite em pó, barrinhas
de cereal, alguns enlatados, pilhas, fósforos, alguns medicamentos básicos.
Tudo o que desse para carregar e que não fosse perecível. O clima de histeria
ainda não tinha começado, mas muita gente estava indo aos mercados para deixarem
as dispensas cheias.
Estava dando carona para mais dois colegas da UFRGS. Eles seguiram o meu
exemplo e compraram algumas coisas também aproveitando o espaço da caminhonete.
O Paulo estava preocupado pois não consegui falar com sua família desde a noite
do dia anterior e o celular sempre dava a mesma mensagem de impossibilidade de
completar a chamada. O Raul teve mais sorte e havia falado com seu irmão, mas
as notícias não eram animadoras. Ele disse que a noite havia sido muito
conturbada e passaram escutando tiros, estavam com energia elétrica de forma
precária e as rádios e sites não davam informações concretas. Muitos parentes e
amigos estavam juntos para se sentirem mais seguros.
O Paulo nos apressou o quanto deu. Ele que era caçador estava levando consigo uma
espingarda de algum tipo e uma barraca. Não conhecia e ainda não conheço o
suficiente sobre armas, só sabia que ele caçava no Taim durante o outono e
havia levado sua arma para Santa Maria, pois um amigo de lá, especialista, o
presentearia com uma nova, além de fazer uma reforma na sua. Quando começamos a
viajem, lá pelas oito e meia da manhã, ele se sentou ao meu lado, no banco do
carona com as armas, dentro de seu saco de transporte, no colo. Ele estava
nitidamente apreensivo e com olhar agitado.
A viajem foi tranquila nas primeiras duas horas até chegarmos em Santa Cruz do
Sul. A única coisa que notávamos era o enorme fluxo de carros vindo da direção
de Porto Alegre para o interior. Mesmo assim não era o suficiente para me
assustar. Paramos num boteco de beira de estrada, junto de posto de gasolina,
para usar o banheiro e comer qualquer coisa, mas sem perder muito tempo. Logo
que entramos foi flagrante as caras de susto de todos. Num dos cantos do bar um
velho ficava trocando de canal numa televisão velha tentando ver se consegui
sintonizar alguma coisa em vão. O sinal dos celulares e internet mal pegavam
nesse local e nos deixavam às escuras também. Usamos o banheiro e compramos
qualquer coisa pronta para comermos no caminho. Aproveitei e enchi dois galões
de 25 litros de água com gasolina, se a coisa estava tão ruim assim a primeira
coisa a acabar seria combustível.
Começamos a andar no limite do aceitável para aquela caminhonete. Estávamos
todos apreensivos agora. O fluxo contrário era cada vez maior e foi ficando
cada vez maior até chegarmos à Nova Santa Rita, ao lado de Canoas. Ali havia um
primeiro bloqueio militar barrando a passagem de quem viesse da direção de
Porto Alegre. Como estávamos indo para lá eles não se mostraram preocupados e
nem mencionaram fazer qualquer tipo de sinal nos impedindo.
Quando saímos da estrada Tabaí-Canoas e pegamos a estrada para Porto Alegre é
que começamos a notar algo muito estranho. Não havia ninguém caminhando nas
ruas. Apenas carros vindo da direção de Porto Alegre. As ruas estavam desertas
demais para aquela hora do dia. Escutávamos o som de tiros momento à momento e
víamos focos de incêndios ao longe espalhados pela área da cidade, que é vizinha
a Porto Alegre. Era um vazio perturbador.
Acelerei ainda mais o carro principalmente pela inexistência de tráfego na
nossa pista. Por um momento ou outro Raul jurou ter visto algo rastejando por
uma rua lateral ou viela, mas não paramos para conferir. Soldados, principalmente
nas proximidades da Base Aérea de Canoas, preparavam barricadas com sacos de
areia costeando alguns blindados. Armados demais para ser apenas precaução.
Deste ponto já conseguíamos ter um visual da capital do Rio Grande do Sul. Era
quase meio dia e aquilo parecia uma praça de guerra. Focos de fumaça subiam em
incontáveis pontos. O fluxo de carros já quase inexistia. Havia pessoas
correndo com malas e trouxas à tiracolo passando por carros abandonados com
suas porta escancaradas em frente à um bloqueio que os impedia de sair. Para atravessá-lo
tivemos que passar por dentro de uma empresa de transporte, um pouco antes do
aeroporto Salgado Filho, que estava com os portões escancarados. Por mais de
uma vez quase atropelei pessoas que vinham pelo meio da rua e não davam bola
para nós.
Entre o aeroporto e a Estátua do Laçador haviam pelo menos duas dezenas de
blindados e nem sei quantos soldados. Eles disparavam suas armas de forma
intercalada, mas não víamos no quê. Parecia uma cena de filme de ação, mas
real. Seria impossível passarmos por ali. Com isso meus colegas estavam
apavorados com suas imaginações fervilhando. O Raul estava com o corpo para
fora, sentado na janela de trás para tentar enxergar algo. O Paulo já havia
tirado um dos rifles da bolsa e o levava grudado ao peito.
Parei o carro e pensei por um minuto tentando criar uma rota alternativa. Pisei
fundo e costeei o aeroporto atravessando por detrás dele, onde anteriormente vilas
que foram retiradas para ampliação da pista de pouso. Enquanto passávamos por
ali vimos uma pista de decolagem virada em um verdadeiro pandemônio, mas muito
longe para que pudéssemos entender o que estava realmente acontecendo. Alcancei
a avenida Assis Brasil, perto de outra das saídas de Porto Alegre, mas desta
fez estávamos antes do bloqueio militar. Quando apontamos com o carro na
esquina os soldados começaram a gesticular e apontar, mas eu não entendi o que
queriam dizer. Foi o Raul que gritou “Puta merda, olha só....!”
Eu e o Paulo nos viramos para o lado oposto aos soldados e demos de cara com
pelo menos uma centena daquelas coisas vindo pelo meio da rua de forma lenta. E
ao longe pareciam haver uma outra leva bem maior deles. Um desavisado saiu
correndo de um dos prédios mas foi literalmente soterrado por aquelas coisas,
lentas, mas constantes. Não foi uma cena bonita. Estávamos os três paralisados.
O Raul jogou-se para dentro da janela e fechou seu vidro como se aquilo fosse
um escudo impenetrável, mas era apenas medo.
Quando percebemos havia alguns daqueles zumbis de forma esparsa por todo o lado
como se fossem chamados para aquela avenida. Alguns muito próximos. Nós
estávamos sem ação. Uma coisa é escutar algumas notícias, outra e estar no meio
da notícia.
De repente um deles saído Deus sabe de onde pulou no capo da caminhonete nos
tirando daquela apatia mortal. Ele deu um murro no para-brisa fazendo o carro
estremecer. Era uma visão pavorosa. Ele era um homem, ou o fora quando vivo,
mas estava agora com o rosto desfigurado e coberto de sangue. Uma parte de suas
bochechas estava faltando e deixando seus dentes à mostra. Não tinha um dos
braços também, arrancado na altura do ombro. Mesmo assim aprecia incrivelmente
mortal.
Instintivamente eu acelerei o carro fazendo-o perder o equilíbrio e forçando-o
ao chão. Nós atravessamos a avenida em meio à tiros que não nos acertaram por
pouco e entramos numa rua estreita de um bairro residencial indo na direção da
zona leste. A imagem por onde passávamos agora era outra. Era macabra. Era
mortal. A horda estava vindo daquele lado. Haviam muitos corpos espalhados pela
rua – inteiros e aos pedaços. Soldados e civis. Era o sinal de que uma luta
havia ocorrido não fazia muito tempo. De quando em quando presenciamos um dos
supostos mortos sofrer como se fosse algum tipo de espasmo e levantar, como por
milagre.
Pessoas normais ainda corriam de um lado para o outro, perseguidas ou não.
Alguns tentavam manter seus lares disparando e atacando à menor aproximação de
um daqueles zumbis. Mas cada vez havia mais e mais destas pestes surgindo de
todos os lados.
Permanecíamos mudos enquanto a única certeza que eu tinha, enquanto acelerava
ao máximo, era que as coisas ainda iam piorar muito. Eu estava tão atônito que
nem me lembrava do básico – ligar para a minha filha. Pedi para o Raul e para o
Paulo tentarem usar o celular para ver se conseguiam falar com alguém.
Apenas algumas operadoras estavam completando as ligações, mas infelizmente não
consegui completar a ligação para casa. Raul conseguiu falar de novo com seu
irmão. As notícias eram ainda piores. Todos estavam escondidos na casa dele na
zona sul da capital, no bairro Serraria. Ele disse que a vizinhança estava
enlouquecida e que haviam muitos mortos espalhados pela rua, além de muitos
zumbis perambulando, mas que ainda estavam incógnitos. Ele prometeu que iria
buscá-los no que desse.
Depois de uma conversa rápida decidimos tentar chegar à minha casa primeiro que
ficava no caminho, no bairro Intercap. Os outros dois residiam bem mais para o
sul da cidade, em Teresópolis e no Guarujá.
Nossa sorte é que conforme íamos nos afastando da zona norte de Porto Alegre as
coisas iam se acalmando, pelo menos na quantidade dos zumbis. O maior problema
é que haviam muitos carros parados pelas ruas que já eram estreitas, além de
muitos acidentes. Isso nos obrigou à ziguezaguear por uma infinidade de ruas
transversais. Acabamos saindo na Manoel Elias, perto da ex-Faculdade
Porto-alegrense.
Daqui seria apenas mais uns dez minutos, se não tivéssemos nenhum bloqueio,
para chegar em casa.
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