Interpretação: O Teatro da Realidade
Quem disser que não sabe qual a relação de RPG e interpretação, por favor, procure outro jogo. Numa tradução muito mais de entendimento do que literal, RPG seria um “jogo interativo de interpretação”. Ou seja, um jogo onde somos chamados a não só vivenciar um personagem, mas nos portarmos como ele em suas escolhas, experiências e modo de agir.
Desde muito cedo o RPG levou seus jogadores ao clímax da interpretação jogando-os dentro de aventuras vívidas e cheias de emoção. Mas um jogo pretender isso não garante que tal resultado seja alcançado. O sucesso desta emoção vem quase que única e exclusivamente dos jogadores. Por incrível que pareça a interpretação é o ponto, ao meu ver, mais difícil e crucial para tal sucesso. Por que digo isso e em que ponto avalio isso?
Criar uma ficha de um personagem na maioria dos sistemas existentes requer um pouco de cuidado, alguns cálculos, inspiração e uma idéia pré-estabelecida por parte do jogador ou do mestre. Vestimos e armamos esse personagem e acrescentamos uma pitada de realismo dando características física e sociais para torna-lo mais humano.
Manter a coerência com relação ao seu personagem é a real interpretação. Fazer com que seu personagem manque, ou seja cego, ou cago, ou algumas das inúmeras ‘desvantagens’ de GURPS (por exemplo) também é uma interpretação, mas apenas uma parte dela.
Para mim existe uma segunda parte da interpretação. A mais difícil e que exige do jogador uma perfeita compreensão do que é RPG e de sua real diversão. Se pretendemos realismo devemos procurar realismo. Interpretar não é somente narrar defeitos ou desvantagens, mas sim demonstrar uma coerência e coesão do pensamento e modo de ser do personagem que só é possível quando conseguimos unir esses dois tipos de interpretação. Essa segunda parte da interpretação é conseguir unir o personagem em seu ambiente (o cenário do jogo) como se estivéssemos realmente lá e fossemos realmente ele com toda a qualquer característica existente nele. Veja o exemplo que aconteceu à muitos anos.
Seis personagens – três guerreiros, um ladino, um mago e um ranger – entram numa galeria de túneis à procura de um artefato qualquer:
Jogador 1: “Vamos dividir o grupo, três vão por esse túnel e os outros por aquele.”
Mestre: “Ok, o grupo se dividiu. Cada grupo andou cerca de dez minutos por túneis escuros, mas sem nenhum sinal de armadilhas ou inimigos. Até que o primeiro grupo – onde estão o guerreiro, o ladino e o ranger – encontram um homem ferido jogado em um canto. Com uma conversa rápida ele lhes conta que ele e seus colegas também haviam se separado, mas que infelizmente o grupo que pegou o outro túnel encontrou uma porta com uma armadilha mortal. Depois da narrativa vocês três se olham e percebem que a porta deve estar no caminho de seus colegas.”
O mestre faz uma pausa macabra e se vira para os três jogadores do outro grupo.
Mestre: “Vocês encontram uma porta de madeira com aspecto apodrecido e frágil.”
Membro do grupo 1 (o ladino): “Vou tentar correr o máximo que eu puder para chegar até o outro grupo.”
Os jogadores do grupo dois se entreolham e decidem e decidem sem pestanejar.
Jogador do grupo 2 (um dos guerreiros): “Eu dou uma olhada na porta, coloco o mão na maçaneta e a abro.”
Esse guerreiro morreu instantaneamente (nem me lembro por que). Mas sua interpretação serviu de inspiração (e experiência) para o resto do grupo.
O jogador falecido conseguiu, mesmo sabendo o que ia lhe acontecer, interpretar de forma primorosa o que um ente como aquele, naquela situação, naquele momento, faria. Ele tornou-se o personagem e realizou o desfecho perfeito para aquele momento.
Lógico que um mestre pode interferir para que o realismo seja mantido. Mas a diversão de todos fica muito mais palpável quando isso acontece de forma espontânea, sem interferências, sem ordens. Quando atingimos esse ponto podemos dizer que o grupo amadureceu e realmente descobriu a beleza de interpretar de forma incrivelmente divertida seus personagens.
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