domingo, 25 de abril de 2010

Cinema - A Estrada em uma resenha perfeita

A resenha que faz você ir ver o filme

Sabem quando encontramos algo máximo, magistral, perfeito. Eu tenho essa sensação quando estou lendo. Quando me deparo com um texto de extremo bom gosto. Quando me deparo com um texto que me faz parar, pensar, analisar e decidir algo. Quando encontro textos que me fazem mudar um conceito ou mesmo criar um conceito novo. Não precisa ser um texto prolixo ou acadêmico (muito embora eu adore um bom texto pedante).

Quando li este pequeno artigo que reproduzo abaixo, em forma de uma singela análise de cinema fiquei muito satisfeito em tê-lo achado. Confesso que já havia lido duas ou três análises em sites nacionais e americanos. Mas nenhuma foi tão clara e tão gratificante, e que me fizeram mudar meus planos para correr para o cinema, quanto a resenha feita por Regis Trigo no site CinePlayer. Gostei tanto que o reproduzirei na integra abaixo.

Por Regis Trigo

Normalmente, quando se decide verter para a tela grande um romance de grande sucesso, o filme é prejudicado por uma certa subserviência em relação material original. É como se o cinema, assumindo-se como uma arte menos nobre do que a literatura, precisasse não adaptar mas sim reverenciar – de joelhos, se possível – as obras nas quais se inspira.

A Estrada tinha tudo para cair nessa armadilha. Afinal, o filme seria baseado no livro de Cormac McCarthy, lançado em 2006 e recebido com entusiasmo nos EUA (Oprah Winfrey o elogiou abertamente em seu programa). O sucesso foi tanto que, por ele, McCarthy recebeu o Prêmio Pulitzer. A visibilidade adquirida pelo livro foi ainda mais potencializada após a penca de Oscar recebida por Onde os Fracos Não Tem Vez, filme dirigido pelos irmãos Coen e adaptado de outro de seus romances. A pergunta era: como transformar em imagens um texto tão conhecido e admirado? O diretor John Hillcoat e o roteirista Joe Penhall aceitaram o desafio e, pelo que se vê, passaram no teste com sobras. A Estrada, o filme, traduz para a tela o espírito da obra de McCharty (cujo estilo de prosa não é de fácil leitura), sem necessariamente se colocar numa posição inferior a ela.

A Estrada começa sua narrativa no tempo presente. Planos estáticos nos introduzem em um cenário bucólico. Flores, jardins, vegetação abundante. Uma mulher observa um homem acariciando seu cavalo. As cores são vivas e o ambiente é inundado pelo sol. Repentinamente, uma porta se fecha. Aquela reprodução do paraíso fica do lado de fora. A câmera permanece no interior escuro da casa, anunciando o mal que se aproxima. Logo em seguida, o casal acorda no meio da noite. Pela janela, o homem observa um clarão amarelo. De alguma forma, ele parece saber que aquele evento estava prestes a acontecer. Em vez de desespero, ação. Ele começa a estocar água na banheira, ciente de que a tragédia veio para ficar. Sua esposa, grávida, o observa. O fim do mundo chegou.

Mas qual a origem daquilo tudo? Como a humanidade chegou àquele ponto? Guerra nuclear? Aquecimento global? Efeito estufa? Uma mistura disso tudo? O filme não se preocupa em responder e, no fundo, pouco importa. A civilização, tal qual a conhecemos, não existe mais. O céu é cinza, fruto de uma névoa que não se dissipa. As temperaturas são baixíssimas. Todas as espécies de animais estão mortos. As árvores, sem vida, não mais se sustentam em pé. Os incêndios e as chuvas são eventos corriqueiros.

Os poucos sobreviventes se dividem entre refugiados e gangues armadas até os dentes. Todos vagam a esmo, com medos uns dos outros, na busca por combustível, comida e sapatos. A selvageria impera. Mulheres são estupradas e crianças violentadas. Para matar a fome, o canibalismo torna-se a solução extrema. O ser humano não pode mais confiar no seu semelhante. Em A Estrada, os zumbis somos nós.

É nesse ambiente que vivem os dois protagonistas. Eles não tem nome. A catástrofe lhes tirou tudo, até mesmo suas identidades. São apenas O Homem e O Menino. Pai e filho. Cada um o mundo inteiro do outro. A missão do Homem é proteger o Menino. Ou como ele diz a certa altura: “o menino é o meu mandato”. Por isso mesmo, o pai carrega consigo um revólver. Dentro dele há duas balas. Uma para cada um. Seu único receio é não ter a coragem necessária quando o momento de dispará-las chegar.

O Homem já perdeu a noção de tempo. Talvez seja outubro. Talvez não. Calendários são coisas do passado. O fato é que ele sabe que não resistirá a mais um inverno naquele local. A solução é partir para o Sul, em direção ao mar. De dia, caminham pela estrada com a preocupação de encontrar algo para comer e esquivar-se de possíveis ataques canibais. De noite, dormem nas florestas ou no interior de veículos abandonados ao longo do trajeto. Durante a viagem, o Homem sonha com a sua esposa. Imagens de um casal apaixonado o remete para um passado que sequer parece ter existido de fato. Mas a Mulher não está ao seu lado. Anos antes, cansada e sem esperanças, ela optara pelo suicídio. Nas palavras do Homem: "ela partiu e a frieza do gesto foi seu último presente".

Numa primeira camada, o filme é o relato da viagem desses dois seres por uma América devastada por um inimigo desconhecido. No entanto, o objetivo de A Estrada não é simplesmente contar mais uma história sobre o fim do mundo. Para aqueles que tiverem interesse nesse material, é preferível passar na locadora mais próxima e levar pra casa outros títulos como O Dia Depois do Amanhã, Eu Sou a Lenda, 2012 ou coisas do tipo. Em A Estrada, o buraco é mais embaixo. Seu verdadeiro tema está na relação entre um pai e seu filho, e o quão forte, íntima e profunda ela pode ser para ambos.

Esse é um dos aspectos mais interessantes de A Estrada. Mesmo num cenário caótico como aquele, em que a Humanidade foi praticamente expurgada do planeta, o Homem ainda faz questão de transmitir seus valores morais e éticos ao Menino. Para tanto, ele conta ao filho histórias de coragem e justiça, que de tão antigas e distantes, são difíceis de recordar. À noite, antes de dormir e à luz de fogueiras improvisadas, o Homem lê livros infantis até que o Menino adormeça. A certa altura, o Homem tem a oportunidade de mostrar ao filho a casa em que viveu sua infância. Mais à frente, ambos tomam banho juntos – talvez o símbolo maior da intimidade entre um pai e um filho. No limite, o filme defende a tese de que palavras como dignidade, decência, honra, bondade, honestidade e compaixão, não são meros conceitos abstratos, mas sim princípios básicos e inegociáveis do ser humano.

O Menino, por sua vez, parece absorver esses ensinamentos. Quando nasceu, o mundo já estava destruído. Ele nunca vira o sol, muito menos o mar. Não sabia qual era o aspecto nem o gosto da Coca-Cola ("ela faz bolhas!"). Desconhecia o que era um arco-íris. E jamais se deparara com animais que não os empalhados e o de pelúcia que carregava durante a viagem. Na falta de qualquer referência material, o que o alimenta são os princípios éticos que lhe são ensinados. Em determinado momento do filme, ele diz ao pai que ambos devem rezar em agradecimento à comida que encontraram. Em outro instante, o garoto demonstra piedade pelo sofrimento de um andarilho desconhecido, oferecendo-lhe comida. E rejeita com veemência a punição que o pai impõe a um homem que roubara seus pertences. Num universo completamente inerte, incolor e apodrecido, o grande patrimônio daquele Menino é a sua humanidade.

Outro personagem importante em A Estrada é a Mãe. Ela só aparece em flashes, por meio dos sonhos do Homem. Poucos anos após a devastação da Terra, ela resolveu que não valia mais a pena continuar vivendo. Só não colocara um fim naquilo, porque, na última hora, o Homem sempre a convencia do contrário. Mas seu espírito já não está mais ali. Ao banhar o filho, ela não mais lhe devolve seus olhares cheios de amor e carinho. Sua despedida é lenta e silenciosa. Quando o momento decisivo finalmente chega, ela parte sem olhar para trás. Sua determinação é tanta que A Estrada pode até ser interpretado a partir do ponto de vista de uma mulher que simplesmente não dá conta da maternidade e do casamento.

A escolha do australiano John Hillcoat para a direção pareceu ser adequada. Seu filme anterior, A Proposta, lançado em 2005, tinha forte influência na obra de McCarthy. Mesmo com uma história sobre o fim do mundo, ele evita contá-la por meio do terreno fácil das sequências de ação, explosões, tiroteios e perseguições. Hillcoat está interessado unicamente em falar sobre a vida de seus dois protagonistas. E isso explica a opção pelo ritmo lento, contemplativo, reflexivo. É o interior que importa, não o exterior.

Vez por outra, o Homem e o Menino se deparam com grandes paisagens naturais completamente devastadas (há uma seqüência com dois navios encalhados, que teria sido aproveitada do desastre provocado pelo furacão Katrina). Muitos destes cenários foram gerados em computador. Os efeitos especiais, no entanto, são discretos e eficientes. E mesmo assim ajudam a dar o tom geral da obra. Definitivamente, A Estrada não é um filme de ficção cientifica.

Além do auxilio do computador, A Estrada vale-se muito do visual quase monocromático trazido pela fotografia do espanhol Javier Aguirresarobe. Seu maior desafio foi dar autenticidade a àquele mundo sem sol e sem vida. Para alcançar esse efeito, carregou nos “tons mortos”, como o cinza, o marrom e o verde. Com exceção das cenas ambientadas no passado, quando a cor é propositadamente acentuada, predominam no filme as imagens enevoadas e opacas. Em certos momentos, parece que A Estrada foi rodado em preto-e-branco. A trilha sonora, por sua vez, ficou por conta de Nick Cave, que já trabalhara com Hillcoat em A Proposta. Em determinadas passagens, sua melodia nos evoca algumas sequências de Valsa com Bashir.

Na maior parte da sua projeção, o elenco de A Estrada limita-se ao Homem, interpretado por Viggo Mortensen, e o filho, vivido por Kodi Smit-McPhee. A química entre os dois funciona, o que faz com que acreditemos naquela relação e torçamos para o destino de ambos. Mas o destaque vai mais uma vez para Viggo. Já vai longe o tempo em que ele era visto apenas como mais um galã a aportar em Hollywood, cuja carreira ziguezagueava em filmes como Um Crime Suspeito, Até o Limite da Honra, Daylight e Mar de Fogo. A trilogia O Senhor dos Anéis, na qual viveu o cavaleiro Aragorn, foi o seu ponto de virada. Mas a ratificação do seu talento veio com a parceria com o diretor canadense David Cronemberg e os filmes Marcas da Violência e Senhores do Crime (que lhe rendeu uma indicação ao Oscar em 2007). Em A Estrada não é diferente. Sua composição nos remete à figura de um Jesus Cristo cujo calvário é seguir vagando em busca de um mundo que já não mais existe.

Completam o elenco Charlize Theron, no papel da Mãe, Robert Duvall, como o andarilho, e Guy Pearce, como o Veterano, todos com participações eficientes, ainda que muito curtas.

A Estrada não é um programa fácil. A viagem do Homem e do Menino é penosa, dura e, acima de tudo, triste. Sim, o filme termina com uma pitada de esperança. Mas o retrato do apocalipse nos joga na cara o quão irresponsáveis somos com o planeta em que vivemos. Mais que isso, ao situar sua história num período tão próximo ao tempo presente (basta ver a idade do Menino), A Estrada nos mostra que esses eventos podem, mais cedo do que pensamos, deixar as páginas de ficção para se tornar realidade. E aí poderá ser tarde demais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente resenha. Ótimo post.