Quarto dia de Lunaluz de 1392
Nesta manhã acordei em Norm e deitarei, daqui a pouco, em Vallahim, capital de Tollon. Chegar aqui foi algo inesquecível não só para mim, mas para todos. Mesmo os mais esnobes não conseguiram esconder o brilho no olhar.
A magia teleportadora dos magos à serviço dos Cavaleiros da Luz nos levaram até a fronteira de Tollon, às margens do rio que separa este reino e Ashlen.
Nossa comitiva levou alguns minutos para recomeçar a seguir viajem pois os efeitos do teleporte, ainda mais para longe, derrubariam até o mais experiente e forte dos filhos de Khalmyr.
Mas enquanto íamos nos recuperando nossos olhos eram brindados com a impressionante imagem da majestosa floresta que ladeava a margem do rio, criando uma verdadeira barreira de troncos impressionantemente marrons. Eu sempre soube que Tollon era conhecida por sua inigualável floresta com propriedades mágicas, mas não estava preparado para esta beleza toda.
Para nós que, momentos antes estávamos em beleza pétrea de Norm, era um choque toda aquele verde e marrom à nossa frente. Chegar aqui foi uma tarefa fácil. Ao invés de percorrermos toda a extensão de quase mil e setecentos quilômetros em semanas de jornada, chegamos até aqui em questão de segundos. Os teleportes são práticas extremamente caras e raras. Mas, ao mesmo tempo, são um dispositivo que uma entidade como a dos Cavaleiros da Luz tem para utilizar em suas necessidades. As frentes seguidoras de Khalmyr contam com muitos tipos de soldados, guerreiros e cavaleiros, e magos fazem parte deste contingente.
Nossa parada na fronteira, às margens do rio, não era por incapacidade do mago teleportador que nos acompanhava, embora longas distâncias sejam muito cansativas para eles. Era mais uma questão de cordialidade e diplomacia. As orientações sempre eram para que quando chegássemos à um outro reino para tratar de um assunto oficial, como naquele momento, nos teleportássemos até a fronteira e depois, se necessário usarmos um mago do reino visitado para chegarmos ao nosso destino. Lógico que isso só funcionava mesmo para assuntos diplomáticos e visitas oficiais. A maior parte dos cavaleiros, quando em jornadas próprias, se valiam do teleporte da forma que melhor lhes servi-se.
Então, em nossa jornada oficial, seguimos as regras. Após aqueles momentos de completo embevecimento na entrada do reino de Tollon logo nos recompomos para seguir nossa jornada rumo à capital do reino. Já éramos esperados por um pequeno destacamento formado por três guerreiros e dois magos. Liderando o grupo estava um homem alto como as árvores às suas costas. Era Platek Kozyr, representante da Guilda dos Madeireiros. Mais tarde Sir Tussan contou-me que naquele reino o verdadeiro poder não vinhas das armas mas sim do comércio, e a guilda era a encarnação deste poder econômico que acabava por se refletir num poder realmente instituído. Nossa chegada foi saudada de forma calorosa como somente aquele povo sabe fazer. Tão logo nos recompomos e Platek avançou como um touro para Sir Tussan e os dois se engalfinharam num abraço que mais parecia uma luta amistosa entre gracejos e urros masculinos.
“ – Como está seu escremento duma vaca?” – gritou o enorme homem de Tollon.
“ – Grande, forte e bebendo cada vez mais!” – respondeu Sir Tussan.
Os dois já se conheciam de longa data. Não sei em quais circunstâncias, pois Sir Tussan não entrara em detalhes, mas havia alguma dívida de vida entre eles.
Enquanto eles conversavam calorosamente Sir Argnal e Sir Thelleon cumprimentaram o restante da comitiva. Todos os alunos, os vinte e cinco, permaneciam perfilados com os outros dois cavaleiros à nossa frente. Esses dois cavaleiros ainda eram, de certa forma, novatos e não se sentiam a vontade para manifestações espontâneas fora do regulamento.
Quanto à nós, cadetes, nos sentiam-nos como o centro do universo. Éramos todo orgulho. Em nossos cavalos mantínhamos a pose, de peito estufado e queixo ereto, lanças postadas ao céu e flâmulas ao vento.
Em meio à conversa Platek se virou para nós e deu alguns passos juntamente com Tussan em nossa direção. Embora não movêssemos nossos olhos sabíamos que estávamos sendo escrutinados palmo à palmo. Os dois grandes homens de braços cruzados nos olhavam com cara tez franzida e meio sorriso na boca.
“- Você está ficando velho...” – disse com voz de trovão Platek – “agora estão te dando maricas para treinar! Isso deve ser a ruína de Khalmyr!” – e terminou numa enorme gargalhada.
“- Não o subestime minha capacidade de transformá-los em maricas bem treinadas!” – respondeu Tussan.
Ao longe os outros gargalhavam quase deixando-se ir ao chão. Mesmo o professor Edmund, que nos acompanhava, não consegui segurar o riso.
“- Vamos achar um desafio à altura deles lá no festival... Tenho algumas filhas que precisam treinar antes de completarem seus quinze anos!” – prosseguiu o enorme homem.
Platek se aproximou de Gustav que chegou a tremer nitidamente sobre a cela de sua montaria. O enorme homem era quase da altura do meu amigo mesmo estando com os pés no chão – “RAPAZ...” – ele gritou – “vamos lutar!!”
Gustav tremeu ainda mais. Ele olhava para o enorme homem, para Tussan, para mim e de novo para Platek – “co...co...co...mo senhor? Mas aqui, agora... por que? Agora?”
“- É realmente um maricas...!” – sentenciou platek às gargalhas enquanto virava as costas e ia até Tussan – “Espero que tenham dobrado seu soldo amigo... pois é uma tarefa impossível!”
Naquela hora a risada tomou conta não só dos cavaleiros, que tenho certeza que urinavam de tanto rir, mas também de todos os cadetes. Arlan chegou a cair do seu cavalo junto com outros dois. Gustav quase teve um desmaio depois daquilo. Esta foi a melhor forma de quebrar a tensão de nossa primeira viajem oficial.
Já era quase a metade do dia quando chegamos à uma pequena vila para comermos algo regado ao bom vinho local. Ficamos naquela vila até o meio da tarde esperando àqueles que nos levariam até a capital do reino – Vallahím.
Um grupo em capas pesadas e marrons, que os deixavam quase que camuflados em meio à floresta, surgiu por uma clareira e após curta conversa com Tussan e Platek mandou-nos em três grupos até nosso destino. A magia deles era diferente. A sensação, o efeito da jornada mágica, foi diferente. Era algo como que mais suave, sutil. Eu fui no último grupo e posso dizer que foi incrível ver aqueles quatro magos manipulando as forças invisíveis para aquilo que desejavam. Eu tinha a nítida impressão que toda a natureza ao redor de nós respondia aos seus movimentos de braços e pernas numa espécie de dança bucólica.
Tenho certeza que você, vô, se estivesse aqui, teria se maravilhado com isso. Não vejo a hora de que você tenha este diário em mãos... e que seja eu a entregá-lo.
Nós surgimos às portas da cidade. Vallahím lembra muito Namalkah. Acho que pela proximidade com a natureza e com sua deusa, Allihanna, ou pelo estilo de vida rústico. Mas sei que me senti muito bem naquele ambiente. Enquanto os cadetes provenientes das famílias mais abastadas sentiam-se como num pesadelo, eu me sentia como de volta à casa.
Tudo a nossa volta tinha as marcas das mãos trabalhadoras que haviam construído, moldado a madeira principalmente, para dar forma e por que não vida à tudo o que víamos. A cidade era baixa, se comparada com outras grandes cidades do Reinado. Como em Namalkah os prédios de madeira eram os únicos levantados em todos os lados. Mas isso não deixava a cidade mais feia ou menos atraente. A beleza sutil dos entalhes embelezava de uma incrível forma degrade cada porta, cada parede, cada janela. Os telhados de palha, em sua maioria, trazia um ar de vila pequena para um enorme cidade.
Em suma... eu estava em casa.
Nossa estadia seria sediada numa grande casa preparada para nós, entre o grande prédio do conselho de Tollon e o quartel dos caçadores. Nosso dia, por hoje, se resumia à isso. Sir Tussan nos mandou para os aposentos cedo para podermos madrugar com as galinhas amanhã. Após uma rápida refeição todos viemos para as camas. Arlan dormiu rapidamente. Gustav ainda está acordado enquanto escrevo essas últimas para hoje.
Amanhã espero ter um tempo para conhecer melhor este interessante lugar.