Fugindo da Ficha
Como ser espontâneo no RPG
O guerreiro Turgan corre pela floresta seguido por seus colegas – um anão igualmente guerreiro chamado Dokin e um feiticeiro chamado Istan. Sua pressa é justificada por um grito feminino pedindo ajuda. Prontamente o grupo saiu da estrada de terra, por onde estavam passando, e se embrenharam pela mata. Poucos metros depois de entrarem na mata encontraram uma carroça semi destruída. Ao lado de uma das rodas haviam duas pessoas abraçadas. Uma delas, um homem já de certa idade, estava ferido e desacordado. A outra pessoa era uma senhora que abraçava protetoramente a primeira pessoa enquanto soluçava em desespero. Em poucas palavras a senhora contou que bandoleiros os emboscaram e, além de levarem seus pertences, raptaram sua jovem filha.
As suplicas da mulher comoveram o grupo, que prontamente concordou em ajudar.
Os três personagens se entreolham com um ar inquisidor e começam a debater, por meio de seus jogadores:
“- Que vamos fazer?”
“- Prometemos ajudar e não podemos perder tempo!”
“- Vamos procurar pistas...”
“- Já viu um guerreiro rastreando algo? Não acho nem uma rua em uma cidade com um mapa!”
“- Mas eu também não tenho como...”
“- Eu sabia que deveríamos ter um ladino neste grupo!”
“- Céus... estamos perdendo tempo...”
“- Já sei... vamos correr cada um para um lado e ver se conseguimos achar alguém. Se encontramos alguma coisa voltamos e chamamos os outros!!!”
“- Feito, vamos lá!”
O grupo então se dispersa na vã tentativa de achar os bandidos no meio da floresta.
Quando criamos personagens para nossas seções e posteriormente os usamos, nos baseamos em certos critérios – gostos pessoais, a aventura proposta, elementos subjetivos, benefícios das regras – que definirão nosso alter-ego. Delapidamos cada aresta deste personagem à qual estamos dando vida e o aprontamos para o jogo.
Não sei se por preciosismo ou por um entendimento equivocado de regras e sistemas, mas muitos transformam esse personagem quase como uma prisão para a espontaneidade dos jogadores. Sua ficha, os parâmetros de seu personagem, é o limite máximo de onde partem e chegam. Não se afastam um milímetro de seus desígnios.
Sempre fui adepto da diversão acima de tudo no RPG, mas também da procura do realismo como forma de chegar à esta diversão. Esse realismo, quando fomentado, é no sentido de tentarmos tanto jogar de forma natural, fugindo da interpretação mecânica, como também alcançar um realismo no sentido das ações (salvo quando o jogo se propõe à algo diferente). Lógico que não prego o jogo massante como uma adaptação literária, mas isso é outro assunto.
Darei um exemplo prático. Numa situação de ação como aquela descrita no início deste artigo, o mesmo acontecendo no mundo real, ninguém vai parar e ficar pensando se seu conhecimento lhe permitirá rastrear ou não seu alvo. Ele simplesmente fará o necessário e o possível para resolver seu problema. Ele se agachará e procurará algum indício do caminho seguido por seu oponente, podendo ser ou não feliz em sua tentativa. Com este raciocínio empregado no jogo, ou melhor, com esta forma de proceder, somos levados ao simples entendimento de que para sermos espontâneos devemos nos “afastar” da ficha (não esquecê-la), mas nos distanciamos.
Com este afastamento, por incrível que pareça, seremos aproximados ainda mais do realismo de um personagem com personalidade. Parece um paradoxo, mas o afastamento nos aproxima de um ente completo. Sem a preocupação pro forma, que a ficha nos impõe, podemos ganhar na espontaneidade que todos os sistemas nos permitem.
Praticamente todos os sistemas baseiam suas ações, ou seus testes para realizações de tarefas, em perícias ligadas à atributos básicos (ou outras formas semelhantes). Em praticamente todos esses mesmos sistemas é dito que o jogador poderá fazer um teste quando for relacionado com uma perícia que possua ou terá algum tipo de ‘redutor’ ou ‘penalidade’. Em raríssimas exceções – naquelas perícias que precisam de treinamento – não são permitidos testes quando o personagem não a possua. De qualquer forma um teste sempre é permitido, tendo ou não a perícia em sua ficha, para ser realizado com o ônus da possibilidade de falha.
A espontaneidade do personagem parte da capacidade que ele possui de tentar ações mesmo quando todas as chances estão contra ele. Assim um anão troncudo e que passou a vida inteira dentro de uma montanha poderá sim tentar rastrear alguém em plena floresta em uma situação desesperadora ou crítica. Isto faz parte do realismo que o personagem se permite.
Muitas vezes eu acho que os jogadores e alguns mestres simplesmente se esquecem que as regras permitem realizarmos testes mesmo quando todo o universo conspira contra nossas chances.
Para que o realismo se mantenha e para que a tentativa se encaixe perfeitamente no jogo cabe o mestre usar de subterfúgios para manter o ritmo do jogo. Algumas vezes, quando mestro, eu me aproprio de uma prática que alguns de meus jogadores odeiam, mas aprovam. Num momento de tensão em que um dos personagens realizará um teste crucial (no mesmo estilo do que está descrito no início deste artigo) eu faço com que ele realize o teste ‘no escuro’. Ele declara que realizará o teste e qual sua intenção e eu não dou nenhuma informação sobre redutores ou bônus que ele terá. Ele joga de forma que apenas eu veja o resultado e eu simplesmente dou a informação, sem ele ter nenhuma noção da possibilidade de ter acertado ou errado. De qualquer forma muitas são as alternativas de procedimento do mestre. Lógico que isto funciona muito bem em grupos que se conhecem depois de muitos anos de RPG e que, por isso mesmo, confiam uns nos outros.
Um jogo ganha muito quando estamos livres de tentar não falhar e nos preocupamos principalmente em como nosso personagem verdadeiramente pensaria ou qual a sua ação frente a cada desafio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário