sábado, 27 de julho de 2013

Contos da Confraria: Fortão, o gato aventureiro de Arton - Capítulo 4

Fortão, o gato aventureiro de Arton



Capítulo 4

Algum tempo se passara desde a incrível estréia de Fortão no mundo de aventuras de Arton. A performance do felino lhe trouxe no mínimo a admiração de seus companheiros. Sim companheiros, nenhum dos aventureiros admitiriam que o gato fosse o animalzinho de estimação de algum deles, nem mesmo o próprio Fortão.

Logo após dois dias de repouso Fortão já estava em plena atividade. Ele ganhara o respeito que só o sucesso em um grande desafio é capaz de proporcionar. As Ruínas de Toorer foram um desafio considerável para uma primeira vez, mas também fora uma prova de que a natureza do gato, que sua alma, era de um verdadeiro aventureiro. E em Arton ninguém duvidava que isso pudesse acontecer.


Depois de passarem pela cidade de Van Raar, próximo a costa da ilha de Colen, a terra homens dos olhos estranhos, e trocarem algumas das riquezas que encontraram na ruína por tibares de ouro, prata e bronze, voltaram a costa e ingressaram no primeiro navio de condições não tão duvidosas quanto aquele que lhes trouxe de Petrynia.

Fortão se considerava como um deles e a divisão dos espólios, em cinco partes iguais, só confirmava seu novo status. Isso era inclusive tratado com graça e motivo de piadas entre eles. Lógico que o alvo das piadas era Gustav, o anão, alvo preferido dos elfos, que a todo o momento era chamado a responder como ele se sentia recebendo o mesmo que um gato.

Enquanto estiveram na ilha todos gastar suas riquezas com boas rodadas de rum, a melhor bebida para aquecer a alma nos portos de todo o Reinado. Mas Fortão preferiu ir gastando-a comedidamente em ótimos petiscos de frutos do mar que ia solicitando à cada refeição com seus miados insistentes junto de um ronronar típico. À noite pernoitavam em boas tavernas e hospedarias, um luxo que não dispensavam enquanto o dinheiro ainda estava nas bolsas.

O destino da embarcação, um veloz slooper de transporte de mercadorias caras, era a costa de Tyrondir. Collen era conhecido por suas peças chiques feitas de pérolas, muito valorizado pela corte Valkaria, capital do reino de Deheon, e  Tyrondir era a passagem mais comum para a cidade capital.

Fortão ainda não estava muito habituado com as jornadas pelo mar, embora seu estômago felino não se revoltasse muito. Em pior situação estava o anão. Ele mesmo dizia que anões foram feitos para andar debaixo da terra, e não longe dela. No primeiro dia desta nova jornada pelo mar o anão ficou o tempo todo em sua cabine, deitado e colocando para fora qualquer coisa que ousasse entrar em seu estômago. Os elfos, Allyohnas e Ehllinthel, até lhe deram uma folga nas brincadeiras, enquanto eles mesmos conversavam com um outro de sua raça, uma habilidosa feiticeira que estranhamente havia escolhido a vida de marujo. Enquanto isso Blander, se divertia com as histórias que a tripulação contava enquanto trabalhavam no convés. Não era a primeira vez que os quatro aventureiros tomavam aquela embarcação para suas jornadas. Mas era a primeira vez que vinham com Fortão. E isso acabou por trazer um grande espanto dentre a tripulação e o capitão Caolho Norton.

Mas o que no início se mostrou quase como que um devaneio, aos poucos foi se transformando em perplexidade. Fortão transitava por entre a tripulação quase sem se importar com o movimento cadenciado da embarcação, mesmo nos momentos de mar mais agitado. Enquanto mesmo os mais experientes quase perdiam o equilíbrio, o gato saltitava com movimentos seguros graciosos. Logo era admirado por todos e a história de sua primeira aventura, que no início soava como uma fábula, começou a ser aceita como a mais pura verdade. “Ora”, eles diziam, “estávamos em Arton e nada mais natural que coisas como aquelas acontecessem”.

A jornada pelo Mar Negro durou perto de uma semana graças aos ventos que o deus Oceano lhes proporcionou. Logo que ingressaram no território de Tyrondir o caminho não foi nenhum porto na costa. As coisas estavam quentes por aquelas bandas com as tropas da Aliança Negra e seus globinóides avançado pouco à pouco rumo à capital. Valendo-se de um tamanho menor a embarcação poderia, se bem conduzida, navegar por rios desde que tivesse a profundidade adequada. E era justamente isso que o capitão Caolho fizera quando chegaram á costa, avançando em direção à cidade de Cosamhir, capital daquele reino, por um rio.

A cidade não chegava a ficar próximo do rio, mas das pequenas vilas com portos que estavam perto da nascente do rio, seria apenas mais dois dias de viajem à pé até a capital. Esse trajeto, percorrido dessa forma, era muito mais comum do que se imagina e o tráfego de embarcações de todos os tipos pelo rio era grande.

Em uma semana e meia o grupo estava, desta forma, entrando pelo grande portão de Cosamhi. A vista da cidade impressionava pelo tamanho. Sua enorme muralha de pedra, erguida no decorrer dos anos devido à ameaça globinóide, deixou Fortão boquiaberto.

“- Este é um trabalho que só poderia ter a assinatura dos anões!” – dizia Gustav à todo o momento. Realmente, as muralhas de Cosamhi eram fruto de um projeto dos famosos anões arquitetos de Doherimm, resultado da influência do joalheiro e vidreiro, também anão, Wasurerimm.

O grupo já havia passado pela cidade por mais de uma vez, então já estava razoavelmente acostumado com seu tamanho. Mas Fortão, que vivera a vida toda na cidade-porto de Malpetrin, não tinha palavras para contar o que presenciava. Para ele tudo era em exagero. Casas enormes, palácios gigantescos, gente demais.

Blander percebia que Fortão estava meio que perdido diante de tudo isso e não tardou em falar-lhe – “Amigo, calma, não se preocupe com o tamanho disso... ainda existem cidades maiores, pode apostar... e, além disso, em grandes cidades encontramos o início de grandes aventuras!”

o  O  o

O grupo se dividiu logo depois de uma farta refeição em uma taverna próxima aos portões de entrada. Uma cidade tão grande tinha atrativos suficientes para o gosto de cada um dos membros do grupo. Blander, que desejava um machado de combate mais eficiente, se direcionou para o Bairro dos Minotauros, um verdadeiro pedaço de Tapista em plena Tyrondir. Gustav procurava algumas notícias de sua terra natal, Doherimm, capital subterrânea dos anões. Já a dupla de elfos preferiu procurar algumas peças de sortilégios na Rua dos Pergaminhos, reduto de elfos, embora eles não tivessem um bairro ou zona só de sua raça, como em Valkaria. Fortão queria conhecer todos os lugares, mas acabou se decidindo por acompanhar os elfos.

Caminhando vagarosamente, no mesmo passo da dupla de orelhas pontudas, Fortão ia vasculhando cada canto com os olhos e cada novo odor com o faro. Sua escolha foi saudada pelos dois que lhe mostravam cada nova peculiaridade da arquitetura élfica representada no estilo das construções da cidade, inspirada no antigo reino de Cobar, em Lamnor. Ally lhe contava sobre a sutileza das linhas alongadas élficas em contraposição à rudeza da pedra das grandiosas construções dos anões. Como ele mesmo dizia – “isso é fruto de um recalque por seu diminuto tamanho!” – e ambos elfos riam.

Mas de todos os lugares que conheceu nas redondezas da Rua dos Pergaminhos o que mais o impressionou foi uma espécie de pequeno parque entre as construções. Carvalhos frondosos dividiam espaço com um gramado de um verde vivo que movia-se como que em dança cadenciada conforme o vento soprava. Um pequeno lago de águas cristalinas brotava do chão e dava vida à um córrego que percorria toda a área do parque como uma teia. Aqui e ali pequenas pontes eram formadas por troncos que moldavam sua forma para facilitar a travessia. Flores e mais flores de cores inimagináveis surgiam em moitas em todos os cantos. Fortão estava surpreso.

Logo que chegaram à beirada do parque Fortão foi atraído como que por encanto para dentro daquele quadro bucólico. Ehllinthel e Allyohnas o seguiram sorrindo de forma comedida, quase reverencial. Enquanto isso o gato avançava cada vez mais rápido para dentro do pequeno parque saltitando como que se tentando alçar vôo. Nem ele mesmo entendia sua reação. O sol quente da proximidade da metade do dia e os odores estranhos, mas agradáveis, o inspiravam.

A dupla de elfos encontrou uma moça, pouco mais que uma adolescente, sentada em uma pedra e passaram a conversar com ela. Vestida com uma espécie de túnica rústica da cor da terra ela tinha cabelos desgrenhados graciosamente até quase atingir o chão e um olhar selvagem, mas doce. Os elfos a reverenciaram de uma forma que Fortão nunca havia visto e passaram a conversar reverenciosamente com ela.

Mas algo chamou a atenção de Fortão em outra extremidade do pequeno parque. Um pequeno aglomerado de pássaros e roedores, esquilos e ratos, circundavam uma menina que estava sentada no chão, com as pernas cruzadas, de costas para Fortão. O estranho é que parecia que os animais estavam prestando atenção em algo que a menina falava e eles mesmos respondiam como se ela pudesse entender.

Ele estava confuso. A comunicação entre seres humanóides e animais sempre foi muito limitada. Até mesmo entre espécies diferentes era muito difícil. Ele entendia perfeitamente outros felinos e muito pouco do que os cães latiam, muito menos de outras espécies. Já o que os humanos diziam era entendido por ele. Mas ali parecia que todos estavam conversando animadamente. E o  mais estranho, ele mesmo estava entendendo o que as outras espécies diziam.

O felino foi se aproximando vagarosamente até que todos notaram sua chegada e se calaram. Ele estaqueou no lugar quando escutou a menina dizer em uma inacreditável bela voz que soava como uma música impossível de ser composta: “- Aproxime-se Fortão!... Aqui somos todos irmãos!”

Quando ela se virou ele tomou um susto. Seu rosto pareceu, por uma mera fração de segundo, ser a composição de muitas e muitas faces de animais diferentes. Mas quando ela ficou de frente para ele ela tinha a fisionomia de um felino. Embora ele estivesse confuso e assustado, o olhar dela o manteve na mais pura paz. Uma sensação que ele só poderia descrever como o abraço amoroso de uma mãe, uma das poucas lembranças de sua mais tenra infância. Só depois dessa surpresa inicial é que ele se deu conta de que ela sabia seu nome.

“- Se aproxime amigo!” – ela disse mostrando com a mão um lugar bem a sua frente – “Por que tens medo?”

“- Não tenho medo, estou apenas surpreso” – as palavras saíram instantaneamente. Nem mesmo ele sabia o porque de tê-las dito já que os humanóides não o entendia. Mas ele acabou dizendo automaticamente. E para sua surpresa ela as entendeu.

“- Mas não era essa curiosidade pelo desconhecido que o fez sair em um mundo de aventuras, Fortão?” – suas palavras foram ditas com uma mescla de sorriso e amabilidade – “não estou certa? Não era este seu sonho? Ou seria seu destino?”

As palavras entravam diretamente em sua cabeça e uma espécie de filme passou diante de seus olhos com tudo o que acontecera nos últimos tempos. Mas ele voltou à realidade. Ele tentava sentir o odor daquela menina com rosto felino, mas as sensações não coincidiam. Cada vez que ele fungava, ela cheirava como um animal diferente.

“- Que lugar é este?” – ele perguntou olhando para os lados.

“- Cada um vê o que seus olhos desejam ver. Para alguns é apenas um espaço pouco aproveitado entre as casas dos humanos. Para outros é um refúgio tranqüilo da vida de pedra e sangue. Para mim é um pedaço de Arbória que resolvi presentear aos animais desta cidade.” – ao dizer isso todos os animais que estavam escutando a conversa saíram correndo e festejando cada canto daquele diminuto parque, deixando apenas os dois ali.

Fortão estava escutando tudo com a atenção de todos os seus sentidos. Era realmente um lugar mais que especial e que tocava sua alma profundamente.

“- E quem é você?”

“- Já fui chamada de muitas coisas. Já fui esquecida e já fui redescoberta. Cada lugar me conhece por um nome. Oghalla. Allihannatantala. Grande Nagha. Mas você sempre me chamou, em suas orações, de Grande Mãe.”

Aquilo atingiu Fortão em seu interior. Ele não conseguia acreditar que a própria deusa estava em sua frente. Ele já ouvira comentários de como ela era e do que ela representava, mas não acreditava.

“- Mas por que está aqui?”

“- Por que não... Somos todos irmãos! Eu sou parte de vocês assim como vocês são parte de mim. Toda a natureza sou eu, assim como sou toda a natureza. Mas hoje estou aqui por ti, minha criança.”

Ele tomou mais um susto e as palavras simplesmente sumiram em sua boca.

“- Estou aqui para dizer que o destino é mais forte que mil deuses e que o seu destino está traçado desde que saiu de sua antiga cidade” – ela diz isso enquanto se levante e começa a caminhar ao lado do gato. Cada passo seu deixa um rastro de pequenas flores com um perfume inimaginável.

“- Embora você esteja percorrendo seu destino ele pode mudar conforme você muda suas decisões. Você pode ser grande ou sua grandeza pode levá-lo ao precipício. Como sua mãe eu não posso levá-lo pela mão, apenas aconselhá-lo, algumas vezes ajudá-lo, mas nunca decidir por você” – ela se agacha e acaricia o felino com afeto – “lembre que mesmo nos piores momentos eu sempre estarei ao seu lado, como estou ao lado de toda a natureza”.

Ele escuta tudo com muita atenção.

Ela dá mais uns passos e novamente o acaricia na cabeça – “por isso estou lhe dando um presente... este é apenas o primeiro dos muitos que meus filhos podem e recebem... basta apenas que mereça... que seja honrado... que seja um verdadeiro aventureiro levando o meu nome”.

Ele sente um formigamento que logo cessa e quando se dá conta ela já havia sumido. Ele olha para um lado e par ao outro tentando achar a menina com rosto felino, mas ninguém estava mais ali. Tudo voltou ao normal. Ele se pergunta se fora um sonho. Apenas os elfos conversando com a moça ainda estavam ali, se despedindo.

Quando os três saem daquele pequeno parque Fortão sente como se ele fosse outro. As palavras de Allihanna lhe tocaram fundo e ele ainda tentava entender o que elas queriam dizer.


Capítulo 05 - AQUI.



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