A Lenda do
Cavalo Árabe
(uma adaptação
para Arton)
Ainda nos primórdios da criação de Arton, Allihanna vislumbrava encantada toda a magnitude de criaturas criadas por ela. De ponta à ponta do continente centenas de milhares de espécies de animais e plantas cresciam e floresciam. Cada novo nascimento lhe conferia um êxtase de satisfação indescritível. E cada um fora moldado por suas próprias mãos.
Mas havia um canto isolado naquele universo de terra e água. Um lugar desolado, árido, inóspito e vazio. Um lugar de calor e areia. Para ela era um lugar maculado. Um lugar que não merecia sua atenção. Negava-se à criar qualquer coisa diferente de dureza e aridez do ambiente.
Um dia Allihanna procurou Azgher em seus domínios. Sob a forma de uma humana feita em parte de carne, em parte de ramos e galhos, foi ao encontro do enorme beduíno sentado sobre uma pedra. O vento arrastava a areia que ia desviando naturalmente da figura enquanto o calor era quase isuportável. Por onde Allihanna caminhava, na direção de Azgher, pequenas pegadas de relva verde brotavam para logo depois secarem e sumirem frente aquela inóspita condição.
“- Este lugar é morto, como o coração de quem o governa” – declarou calmamente a deusa.
“- Muito pelo contrário fêmea. Este lugar, o meu, é vivo como a chama que nunca se apaga. É ardente como a vida de quem luta pela sobrevivência. É o lugar de fortes” – exclamou Azgher sem virar a cabeça na direção da deusa.
“- Nada belo vinga. As criaturas têm de se esconder sob o manto da deusa negra nas profundezas. Se és dono disto, és dono de um nada. E não por menos que d-i-v-i-d-e-s esta ‘tua terra’ com Tenebra” – exclamou a deusa com desdém.
“- A insolência não lhe cai bem aos lábios senhora das bestas. Se nada belo foi criado por ti para esta terra é por que simplesmente não tens a capacidade de ver a beleza do detalhe da flor do cactos no amanhecer nem a sincronia nas ínfimas pegadas do escorpião na fina areia.”
“- E tudo isto criado por mim” – declarou ela abrindo os braços e girando lentamente vendo em sua mente cada ser criado por ela – “mas tu conseguiste criar um mundo de areia e pedra, de dor e morte”.
Azgher bufou mesclando indolência e desinteresse – “Tu és uma deusa. Tu és uma igual entre as iguais. Tens poderes para criar qualquer coisa. Faça se quiseres”.
“- Claro que posso fazer. Mas por que faria? Esta terra tem de ser como seu deus” – abaixou e pegou um punhado de areia numa das mãos e ficou deixando-a escapar lentamente por entre os dedos e a vendo voar ao vento – “tudo igual como cada duna”.
Pela primeira vez Azgher moveu a cabeça e uma tempestade de areia formou-se ao longe. Ele se levantou lentamente e a terra tremeu.
“- Queres beleza!” – gritou com voz de trovão transformando o vento do deserto em tormenta de pedras – “terás!!”
Azgher cresceu em cem vezes. Mais imponente do que nunca parecia que seu diurno sorriso havia descido ao chão. Ele lançou uma de suas descomunais mãos à areia trazendo-a repleta. Tal como uma prensa juntou as duas mãos pressionando a areia com toda a força de um deus.
Moveu-se alguns passos em direção à um oásis. Com um movimento ele arrancou o pequeno ponto de água em meio à areia e junta com a terra que já estava numa das mãos, pressionando-os novamente.
Brilhando cada vez mais sua voz começa a ecoar por todas as partes do deserto.
“- Meu filho... Te darei vida para seres ímpar em meu reino. Te darei vida para embelezar meu mundo. Te darei vida para seres invejado. Terás tudo e darás tudo ao meu povo. Como irmãos dominarão minhas areias, beberão em meus oásis e rogarão à mim, apenas à mim. Sede perfeito. Sede inteligente como a irmã Tanna-toh, sede justo como o Khalmyr, sede sagaz como a grande serpente, sede implacável como Keenn, sede vivaz como Lenna, sede saudável com a benção de Marah, sede rebelde como Ragnar e sede indócil e livre como Nimb. Sede digno de meu nome”.
Azgher pressionou mais ainda as palmas das enormes mãos. O deserto ao seu redor fervilhava num horror de tempestades, trovões e terremotos. Apenas onde estava Allihanna estava calmo e sereno como uma manhã de primavera.
De repente tudo parou como se nada tivesse acontecido. Aos poucos ele foi afrouxando as mãos até que elas se separaram.
Na palma de uma delas ficou um animal. O mais lindo de todos. Um cavalo, mas diferente de todos os outros, um cavalo do deserto. Um representante único, perfeito. Mesmo Allihanna ficou perplexa com tamanha formosura.
Indócil sobre a palma da mão de Azgher, o cavalo empinava e relinchava. Mas, sob o olhar severo do deus ele silenciou e como reverenciando abaixou a cabeça.
“- Vá....” – Azgher assopra suavemente o cavalo sobre sua mão criando uma fina tempestade de areia que viajou no ar formando uma núvem como se uma manada de garbosos exemplares dele viajassem. A manada dividiu-se e rumou para muitas direções espalhando-os por todos os cantos do deserto.
Azgher volta ao seu tamanho anterior e novamente senta sobre a rocha. Allihanna ainda na mesma posição vira-se para partir, mas para, de costas e faz uma última pergunta – “de quase todos os deuses ele ganhou algo, e de mim o que tem?” – indagou a deusa permanecendo de costas.
“- Nada” – respondeu Azgher sem se mover – “ele não precisa, eu o fiz de areia e água, eu o fiz de mim, não responderá à mais ninguém.”
Nota: esse foi um pequeno conto que criei em 2009 para um projeto do Fórum Jambô onde estávamos criando (ou enriquecendo) o Deserto da Perdição, parte integrante de Arton, do sistema Tormenta RPG. Ele é uma adaptação da lenda muçulmana sobre a criação do cavalo árabe.
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