sábado, 19 de abril de 2014

Dicas do Mestre: Criação de personagens - alguns devaneios


Criação de personagens
- Alguns devaneios -

O elemento central de um RPG é, mais ainda que sua mecânica e seu cenário, o personagem em si. Ele é a representação direta do jogador que o controla. Ele que viverá as aventuras para nós as vivenciarmos.

Quando resolvemos participar de uma seção de RPG, principalmente no início de nossa vida nesse hobby, estamos procurando sentir na pele as emoções das aventuras por terras maravilhosas e cheias de fantasia e mistério ou então nos transformarmos em nosso personagem favorito e enfrentar perigos inimagináveis.

Quase todos nós quando ingressamos no RPG temos a normal tendência de tentar criar personagens perfeitos, ases do combate, com inteligência superior e capazes de proezas atléticas dignas de um campeão olímpico. Isso é totalmente normal. Nós enchíamos nosso personagem de vantagens e perícias transformando-o numa mescla de Sherlock Holmes, Conan e Homem-Aranha. Criávamos uma criatura fenomenalmente hábil e forte, capaz de superar quaisquer dificuldades.

Em GURPS, por exemplo, tínhamos uma situação muito peculiar. Para quem conhece o sistema sabe que, em última análise, para cada coisa positiva que colocávamos em nosso personagem, tínhamos que colocar algo negativo para equilibrar a pontuação. Assim acabávamos criando personagens cheios de vantagens que eram quase impossíveis de jogar, pois também estavam repletos de desvantagens. Era hilário. Muitas vezes eu acabava com um personagem zarolho, gago, com baixa resistência a dor e de mau humor para poder ter as vantagens que desejava.

Naturalmente procuramos um personagem que represente nossos anseios e nossas expectativas fantasiosas. Queremos ser o herói, aquele que salva a princesa na torre mais alta. Queremos ser o matador do dragão que aterroriza a vila e libertar o povo das dificuldades. Queremos vingar a morte do rei ou mesmo ser o ladrão que rouba para os pobres. Queremos ser aquele que faz a diferença. E o RPG nos proporciona um modo de sermos tudo isso. Mas ele não é só isso.

De forma equivocada temos a impressão de que para sermos um ‘herói’ temos que ter um personagem perfeito, sem máculas, sem nada que denigra sua personalidade ou imagem. Isso é só um equívoco. Da mesma forma nos equivocamos ao achar que para nos divertimos temos que ser um herói em toda a acepção do termo. São equívocos comuns. Outro equívoco comum é o medo que temos de nosso personagem morrer, como se isso fosse uma heresia ou algo que impossível de ser imaginado ou vivenciado em uma mesa de RPG e para isso ‘turbinamos’ nosso personagem, deixando à beira da imortalidade.

A bem da verdade nada isso são erros. São apenas impressões que normalmente os novatos têm do RPG. A prática do RPG é uma forma de vivenciarmos uma outra realidade. É uma forma de termos experiências que seriam, em sua grande maioria, impossíveis.

Mas o que nos escapa nesse início é que para termos essas emoções e sermos heróis, ou melhor, para aproveitarmos a prática do RPG, não precisamos ser invencíveis. Nem ao menos precisamos ser cheios de qualidades. Se formos analisar à fundo, muitos dos heróis que conhecemos são falhos em muitos aspectos e quase sempre são ‘heróis’ apesar das adversidades, quando não por muita sorte.


Criar um herói tem de levar (ou deveria ter) o que for mais divertido para nós. Sempre usei com meus jogadores uma noção que aprendi nos videogames. Mesmo jogos muito bons, quando nos valemos e dicas, malhas, passwords ou walktrough, perde totalmente a graça. A noção de desafio e sua superação desaparecem por completo. Não importa a qualidade gráfica, o número de fase e a qualidade do enredo, tudo isso perde a graça. Da mesma forma, um jogo de videogame daqueles quase impossíveis, que nos faz perder horas de tentativas, tem um sabor todo especial quando superamos seus desafios.

No RPG é exatamente igual. Qual a vantagem se tivermos um personagem que é impossível de ser morto? Ou que nunca perde um combate? Ou mesmo que nunca caia em uma armadilha? O jogo com esse tipo de personagem será totalmente desinteressante, sem emoção e, mesmo que de forma inconsciente, totalmente fora da realidade. Ora, se procuramos o RPG para nos divertir simulando experiências como se fossem reais, qual a vantagem de o fazermos assim?

A diversão em RPG não está na facilidade, mas sim no percalço que deve ser superado, mostrando nosso valor. A dificuldade é o tempero que dá sabor à vivência de nosso personagem. Claro que não estou dizendo que o nosso personagem deve ser um ‘ser’ qualquer, sem facilidades, sem qualidades, ser uma pessoa normal. Claro que não. Estou dizendo que ninguém é perfeito em todos os seus atributos à ponto de ser invencível, beirando a perfeição. Estou dizendo que se esse personagem ficar beirando a invencibilidade, logo logo você perderá o interesse por ele, pela campanha e até mesmo pela prática do RPG.

Um personagem bem construído é justamente aquele que possui alguma qualidade, é óbvio, mas que consegue superar as dificuldades com força de vontade, e indo até mesmo contra as possibilidades negativas na parada de dados. Um bom personagem é aquele que representa uma ideia que tenhamos, um conceito, um parâmetro e que essa ideia não seja a perfeição ou a invencibilidade.

Construa personagens se valendo de uma noção do que ele é. As classes, existentes em alguns sistemas representam muito bem isso com aquelas noções que já são senso comum entre os rpgístas como um mago ser poderoso em seus sortilégios, mas fraco em sua constituição, ou mesmo um guerreiro que é extremamente forte, mas com agilidade reduzida. Não importa no que, sempre haverá coisas que ele não saberá ou não conseguirá fazer.

Um outro ponto que gosto de apresentar para o novatos é que achar saídas para as enrascadas ou dificuldades que nosso personagem se envolve, sejam lutas ou enigmas, tendo uma ficha de um ser não tão perfeito em mãos, é muito mais divertido. Não existe nada comparado ao grupo de aventureiros decidindo fugir de um mago que prepara uma bola de fogo ou você se deparar com um dragão.

Há uma infinidade de sistemas hoje em dia, graças aos deuses. Não importa qual deles você esteja jogando. Pense por um minuto no que você espera de seu personagem.


O realismo está na dificuldade de se atingir o objetivo.

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