domingo, 31 de agosto de 2014

Contos da Confraria: Fortão, o gato aventureiro de Arton - Capítulo 6

Fortão, o gato aventureiro de Arton


Capítulo 6

A jornada rumo à capital do Reinado findava de forma tranqüila. O caminho pela Mata dos Galhos Partidos não poderia ter sido mais interessante para o grupo de aventureiros, mesmo com o ataque de orcs desgarrados. Mas terem tido o prazer de conhecerem pessoalmente os protetores daquele lugar – Tahndour, Neldor e Teodor – valeu qualquer recompensa. Acabaram perdendo um dia inteiro em uma deliciosa refeição enquanto trocavam histórias e experiências. As despedidas foram feitas com promessas de ainda dividirem alguma aventura juntos.

As mais de duas semanas que se seguiram de jornada foram tranqüilas e despreocupadas até que começaram a se aproximar de seu destino. A chegada à Valkaria foi um verdadeiro choque para Fortão. Ele já havia conhecido outras cidades consideradas grandes, como sua cidade natal, Malpetrin, e mais recentemente a capital de Tyrondir. Mas Valkaria ia muito além disto tudo. Ela era enorme em tamanho e em imponência, mesmo se não houvesse aquela colossal estátua. Quando ao longe começaram a avistar a cabeça e os braços da deusa Valkaria, Fortão ficou como que boquiaberto, se é que se pode dizer isso de um gato, enquanto os elfos cochichavam entre si sobre a expressão do felino.


Fortão estivera neste último percurso da viagem quase sempre sobre as mochilas amarradas nos cavalos hora de Bjander, hora de Allyohnas. Ele já fizera isso muitas vezes. Ele se acomodava em uma posição que pudesse tranquilamente ficar observando a paisagem e escutar a divertida conversa de seus colegas. Vez ou outra ele espichava o pescoço para atentar sobre alguma coisa que tivesse chamado sua atenção ou para ver o caminho à frente. Numa dessas olhadas ele quase caiu de cima de seu posto improvisado quando avistou os descomunais braços da deusa em direção aos céus que começavam a despontar no horizonte. Ele arregalou os olhos e pulou para o ombro de seu companheiro apoiando-se cobre sua cabeça.

“- Sei bem como se sente, amigo!” - disse o enorme guerreiro com uma voz suave e tranquila - “também tomei um enorme susto quando aqui cheguei pela primeira vez ainda em minha meninice.”

“- Impressionante como isso não trabalho de anões?” - exclamou Gustav - “para ser tão perfeito só sendo trabalho dos deuses mesmo!”

“- Isso é quase uma blasfêmia” - disse Ehllinthel rindo muito, acompanhado por seu irmão de raça - “ai, ai …. mais um exemplo da arrogância anã!”

Conforme se aproximavam mais e mais dos portões o fluxo de pessoas e carroças se intensificava. Do lado de fora dos muros existia uma verdadeira comunidade como que se a cidade estivesse escapando pelas muralhas. Aqueles que por ventura não tiveram chance ou condição financeira iam se aglomerando em amontoados de casas que formavam pequenos bairros ainda antes dos portões. Outros preferiam ficar de fora dos muros por quererem uma vida mais bucólica ou por simplesmente preferirem ficar longe da vista e influência das autoridades da cidade, como os membros do Protetorado. O que interessa é que a cidade começava já antes dos muros.

Tudo era novo para Fortão. A quantidade de pessoas trafegando pelos arredores parecia ser maior que toda a população de sua cidade natal em dia de festa. Mesmo Malpetrin sendo uma cidade comercial e berço de aventureiros, ele nunca havia visto tantos representantes de tantas raças convivendo tão bem. Eram centauros galopando e conversando com alguns humanos em seus cavalos, elfos saindo da cidade junto de alguns goblins, comerciantes halfings de fumo chegando com suas carroças enquanto iam vendendo suas especiarias para aqueles que transitavam pelo caminho, um mago entretendo crianças, além do mar de pessoas simplesmente normais.

E acima de tudo, Valkaria.

“- Ah.... esse aroma de cidade cosmopolita me deixa muito satisfeito, ainda mais quando eu estou com minha bolsa cheia de moedas!” - dizia Allyohnas - “e para você, meu amigo peludo, prevejo os mais extraordinários peixes que já imaginou comer, claro que você pagará com seu dinheiro!”.

Fortão o escutava, mas não conseguia tirar os olhos de tudo à sua volta. Conforme foram se aproximando mais e mais das muralhas da cidade, ela ia crescendo à sua frente e ele ficava ainda mais impressionado. Ao atravessarem o portão ele notou a quantidade ainda maior de pessoas, guardas e outras tantas raças. Um labirinto de ruas, avenidas e vielas se entrecortavam e se perdiam para todos os lados. Todos os tamanhos de casas e prédios se aglomeravam por todos os lados salpicados por lojas de todas as espécies. Prédios novos e velhos, locais lindos e outros sujos, como em qualquer cidade, mas tudo em proporções impressionantes.

“- Meu amigo, essa é Valkaria, a capital de Deheon e de todo o Reinado. A maior de todas as cidades. A cidade que se construiu aos pés e à sombra da deusa. Diz a lenda que ela foi aprisionada sob a forma de uma estátua depois de uma briga entre os deuses. E ela assim ficou por incontáveis anos, até ser liberta por alguns nobres e impressionantes aventureiros que conseguiram vencer a ira dos deuses em desafios mortais.”

Fortão não tirava os olhos da descomunal estátua conforme mais e mais ingressavam no interior da cidade. A dupla de elfos já estavam fumando seus cachimbos com um fino aroma de tabaco tipicamente halfing que eles compraram numa carroça que cruzou o caminho quando estava entrando na cidade. O anão estava estranhamente quieto, mas isso não parecia incomodar ninguém.

O grupo continuou em passos lentos. Blander sabia exatamente por onde estava indo e fazia um zigue zague preciso por entre ruas e becos até parar bem em frente de uma movimentada taverna.

“- O Caneco de Bronze” - ele vociferou - “preciso de uma boa cama e de ótima comida!”

O enorme guerreiro desmontou, seguido de todos os outros. Os elfos estavam tagarelando em sua língua natal e com certeza fazendo piadas sobre os que estavam à sua volta. Fortão pulava de um cavalo para outro enquanto as mochilas e bagagens eram desamarradas. Apenas Gustav permanecia calado. Ele desatou suas coisas e as jogou em frente da escada, na porta de entrada.

“- Vocês podem levar para mim? Preciso acertar um assunto pendente!” - sua voz saiu firme, mas pouco amigável. Ele apenas deu de costas e sumiu por entre a multidão.

Todos os três ficaram quietos e apenas se entreolharam. Fortão não entendi nada. Mesmo Gustav sendo um anão, o que significa ser naturalmente ranzinza, ele era mais amigável do que parecia nos últimos dias e conforme iam chegando à cidade seu humor ia piorando.

“- Quanto tempo faz desde a última vez?” - perguntou Ally.

“- Uns quatro anos eu acho!” - respondeu Blander – “desde a últiam vez que estivemos aqui.”

“- Será uma longa noite para ele!” – comentou Ehlli com voz baixa.

Fortão apenas acompanhava o diálogo com uma enorme interrogação em sua feição. Allyohnas notou o semblante do gato e o pegou, colocando-o em seu ombro - “aqui mora o outro irmão dele” - ele disse - “sempre que passamos por aqui eles se encontram para conversar, mas nem sempre essas conversas são rápidas ou amistosas... as coisas nunca ficaram boas depois do caso da morte do filho de Gustav”.

o  O  o

O grupo entrou na enorme taverna entre um vai e vem impressionante de clientes. Logo na entrada podiam ver dois amplos ambientes, um para cada lado do balcão da recepção e da enorme escada de madeira. À esquerda havia um amplo local para refeições. Pelo menos quinze mesas estavam cheias de pessoas comendo, bebendo e conversando animadamente. Várias moças circulavam com bandejas com canecas cheias, vazias e tigelas de ensopados. À direita havia uma sala não menos ampla, mas muito mais silenciosa com mesas longas e cadeiras em quantidade. Um aroma de tabaco das mais diferentes espécies circundavam o ambiente e chagavam até o grupo de recém chegados. Este espaço era para reuniões e encontros. À muito que já se havia percebido que muitas aventuras iniciavam em tavernas então nada mais óbvio para uma cidade cosmopolita como Valkaria tirar vantagem e conseguir algum lucro com isso, oficializando um verdadeiro lugar para isso por uma módica quantia.

Blander levou seu corpanzil até a frente do atendente, um sujeito magro, baixo e de nariz aquilino. Os pequenos olhos piscaram por detrás dos diminutos óculos e ele começou a falar rapidamente, sem respirar e sem olhar para o grupo, de forma automática, enquanto mexia aqui e ali em um mar de papéis sobre o balcão.

“- Bem vindos amigos... dispomos do melhor ambiente para viajantes, aventureiros e comerciantes. Podemos arruma de quase tudo para que sua estadia seja a mais agradável possível e ...” - a voz dele foi sumindo quando ele ajeitou os óculos e fixou o olhar em Blander. Seu rosto foi mostrando um crescente sorriso como quem vai lentamente se recordando de uma piada à muito esquecida - “Blander! Quanto tempo faz?! Três anos?”

“- Olá! Na verdade fazem quatro longos anos que não volto para cá, embora sonhasse todos os dias com o ensopado de ovelha com cenoura daqui!” - ele jogou as mochilas no chão - “o que conta de novo?”

Antes que o taverneiro conseguisse responder Fortão pulou sobre o balcão para susto e espanto de Dorten, o dono do estabelecimento. Ele olhou para o gato com um ar de curiosidade e um pequeno sorriso de canto de boca - “deixe-me adivinhar, finalmente aquele anão rabujento conseguiu importunar uma mago com pouca paciência e acabou transformado em um gato!?”. Os elfos não se aguentaram e começaram a rir.

“- Ou foram vocês que não aguentaram e o trocaram por este lindo felino, o que seria uma grande vantagem para o grupo” - agora os quatro riam às gargalhadas. Fortão se limitava em farejar o ambiente e alguns objetos sobre o balcão enquanto intimamente concordava que ele havia sido uma ótima aquisição para o grupo.

Blander secou as lágrimas que corriam o seu rosto de tanto rir - “não, não, meu amigo, embora a ideia seja tentadora, mas esse é um novo companheiro de jornada e de aventuras... e posso dizer que Fortão é mais valente que muitos dos aventureiros hospedados aqui.”

“- Então temos aqui um aventureiro de quatro patas, hein!?” - Dorten disse enquanto fazia uma referencia respeitosa - “seja bem vindo à minha humilde taverna, sinto-me muito honrado em ter o primeiro aventureiro felino de Arton aqui, pelo menos que eu saiba. Espero que o ambiente seja de seu agrado”.

Fortão olhou o homem de forma impassível, sob o olhar dos amigos. Depois ele olhou para cá e para lá como que averiguando o ambiente e parou de frente para o grupo soltando um estridente miado de aprovação.

“- Aha... Fortão aprovou.... então ficaremos!” - gritou Blander divertindo-se com a situação e apertando a mão de Dorten.

“- Farei sua estadia aqui perfeita pequeno senhor” - disse Dorten para o gato - “e conte-me tudo sobre suas aventuras e como agregaram esse nobre felino!”. O resto do dia foi de descanso depois da longa jornada com promessas de uma animada noite para trocarem histórias e notícias. Hurin iria preparar um ótimo jantar e reservar um lugar especial próximo da lareira das bebidas.

o  O  o

Quando a noite chegou todos estavam mais relaxados. Fortão havia encontrado um ótimo lugar sobre uma almofado na cadeira sob a janela. Blander passou as últimas horas atirado sobre a cama quase imóvel. O gato chegou algumas vezes a duvidar que ele estivesse respirando, mas um ronco mais gutural acabava por confirmar que ele ainda estava vivo. O gato se espreguiçou demoradamente olhando para a segunda cama do quarto vazia. O anão não havia dado sinal de vida desde que chegaram na cidade. Ele não o conhecia tão bem assim, mas achava aquela atitude muito estranha.

Suas orelhas indicaram a chegada de dois visitantes ainda antes de duas pancadas serem dadas na porta. A dupla de elfos estava no quarto ao lado e pelo adiantado da hora suas barrigas deveriam estar roncando tanto quanto a dele. As batidas foram apenas por educação pois nem esperaram a resposta e foram entrando e acordando Blander.

A conversa foi rápida e logo todos já estavama à caminho da sala de refeições. Nenhum deles parecia preocupado com a demora de Gustav e isso deixava Fortão tranquilo também. A descida pelas escadas foi ruidosa e animada como tudo o que aquele grupo fazia. O gato veio meio que escorregando pelo corrimão enquanto os elfos desciam como crianças, se empurrando mutuamente. O guerreiro descia mais atrás divertindo-se com os amigos ainda entre um bocejo e outro. Mesmo antes de chegarem ao andar de baixo Blander já chamava o dono e amigo - “Dorten! Onde está aquele ensopado maravilhoso que nos prometes-te!?”

“- É para já... e com muito vinho! … Guerta! Guertaaaa!” - ele saiu berrando - “pegue uma das meninas para servir nossos amigos! ….. Gueeeertaaaaa!.... onde está aquela imprestável!?”

De uma porta lateral, logo depois da entrada do enorme salão, saiu uma meio-orc carrancuda com um avental acinzentado com manchas de toda a sorte de condimentos e com o cabelo desgrenhado. Ela bufava de irritação e batia os pés para demonstrar toda sua raiva.

“- Pelo inferno dos vinte deuses homem, como posso me concentrar na cozinha e comandar esse monte de meninas se não me dá um minuto de sossego?”. Ela parou na frente de Dorten olhando para baixo. A imagem era muito estranha para Fortão. A enorme meio-orc tinha quase o dobro da altura do dono da taverna, obrigando-o a curvar o pescoço e as costas para trás de uma forma que ele quase caia de costas. Os dois se encararam com fúria nos olhos por alguns segundos e o gato tinha certeza que uma luta seria iminente entre eles. Mas o olhar entre eles mudou e Dorten pulou nos braços da enorme cozinheira à pelo menos três palmos do chão e ambos trocaram um improvável beijo. Fortão ficou extremamente confuso com a cena, mas parece que não foi nenhuma novidade para o grupo de aventureiros.

Guerta soltou Dorten e virou-se para o grupo com um largo sorriso - “achei que os tinha matado de tanto comer da última vez... quanto tempo faz crianças? Quando Dortenzinho me disse que vocês estavam aqui nem acreditei... mas caprichei no ensopado...”.

Ela deu um grande abraço com seus enormes braços. Fortão permanecia atento ao lado do guerreiro quando Guerta o percebeu - “e você deve ser o novo integrante da trupe! Tenho algo especial para você ...” - disse ela indicando uma mesa próxima à lareira, em um canto bem espaçoso.

Fortão adiantou-se calmamente como costumava fazer. Aos olhos de algum desavisado poderia parecer que ele era o verdadeiro líder daquele grupo. Ele pulou para uma das cadeiras vazias e sentou-se olhando para Guerta na espera do “algo especial”.

Ela fez um sinal para uma das meninas que estavam vindo e ela adiantou-se colocando uma travessa à frente do gato. Nela haviam pelo menos cinco tipos de peixes diferentes cuidadosamente picados e crus. Fortão espiou a travessa e quase caiu de costas. Ele virou para a enorme meio-orc e soltou um sonoro miado de agradecimento, arrancando gargalhadas de todos próximos à mesa.

A refeição foi farta e divertida. Um grupo de músicos entoava cantigas alegres e alguns pares mais animados dançavam por entre as mesas. O quarteto de aventureiros, contando o gato, é claro, deliciava-se nas várias tigelas de ensopado espalhadas pela mesa, entre canecas de vinho e hidromel e nacos de pão. A música e o clima festiva faziam o grupo ficar cada vez mais relaxado. Fortão sentia-se estufado, mas ainda permanecia preocupado com o sumiço de Gustav. Já faziam muitas horas desde que se separaram logo depois da chegada à Valkaria. Ele sentou-se impassível à frente de Blander e encarou-o.

O enorme guerreiro de rostou corado pela bebida estava em meio à um gole de vinho quando percebeu o inquiridor olhar do gato. Ele o encarou de volta quase se engasgando - “cof...cof... o que foi Fortão?”. O gato olhou com desdém para a cadeira vazia e voltou a olhar para Blander.

“- Gustav? Ele está bem.... aquele anão é muito durão. Ele sempre faz isso quando estamos por aqui. Não sabemos bem da história dele e dos problemas com seu irmão, mas ele sempre volta.”

Fortão não parecia satisfeito com a explicação e algo lhe cheirava mal. Muitos diziam que os gatos eram seres com ligação com os mistérios obscuros da magia e da adivinhação. Para ele era apenas uma coceirinha irritante atrás da orelha esquerda, mas sempre que isso acontecia ele sabia que algo nada bom estava prestes a acontecer.

A festividade é interrompida com um estrondo na porta da frente. Um anão esbaforido entrou correndo pela porta do salão derrubando alguns clientes. Ele nem parecia um anão devido ao seu tamanho, mas seu porte e aparência era inegáveis. Braços extremamente musculosos e uma longa barba branca e trançada ajudavam no reconhecimento. A atenção dos três aventureiros e do gato fixou-se nele. Ele bufava e olhava com olhos arregalados como que à procura de algo até que olhou para a mesa do grupo.

Ele avançou aos trancos até aproximar-se de Blander - “Enfim os achei... pegaram Gustav!” - enquanto ele falava apoiado na mesa para retomar o fôlego, dava para perceber manchas de sangue em suas mãos e barba. Todos se levantaram prontamente.

“- O que aconteceu?!” - rosnou Blander.

“- Levaram ele e a culpa é minha, toda minha...não pude fazer nada... nós pegaram de surpresa.”

À esta altura todos no recinto estavam em silêncio e observando a cena.

“- Temos que correr, a vida dele depende de nós!”


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Acompanhe os outros capítulos:

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5

Capítulo 07 - AQUI

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