Dicas do Mestre
- Um contra todos -
A
cabeça de um rpgista está sempre conectada com qualquer coisa que possa se
transformar em jogo. Comigo não é diferente. Uma das coisas que mais gosto no
Netflix são os documentários. Há um conjunto de documentários muito
interessantes sobre castelos britânicos – “Secrets of Great British Castles”.
Nesses
documentários são apresentados todos os elementos sobre os castelos, sua
história e motivação de construção, características, peculiaridades e lendas. À
cada episódio um castelo. Um prato cheio para a mente inquieta de um rpgista.
Num
desses episódios, o quarto da primeira temporada, foi apresentado o Castelo de
Caernarfon, construído entre 1283 a 1294, o bastião do poder inglês em Gales e
o elemento principal do chamado Anel de Ferro (conjunto de castelos construídos
em território galês). Por sua própria história, antiga e moderna, ele já seria
muito interessante - ponto chave do poderio inglês em Gales, peça fundamental
para minar a resistência dos galeses frente o invasor inglês, residência do rei
Eduardo I, possuidor do inexpugnável Portão do Rei, entre tantas outras coisas.
De
todas as histórias referentes a este castelo mostradas no documentário a que
mais me chamou a atenção foi a ocorrida durante o reinado de Henrique IV, quando
da rebelião encabeçada por Owain Glyndwr, que usava a bandeira e símbolo de
Uther Pendragon, ninguém menos que o lendário pai do Rei Artur. Em 1403 apenas
vinte e oito soldados conseguiram impedir a invasão decorrente da rebelião galesa
reforçada pelo poderio francês. Um pouco devido a arquitetura inovadora e
funcional graças ao trabalho do arquiteto militar francês mestre James de St.
Geroge de Savoia, um pouco devido à falta de equipamentos pesados apropriado
para o ataque. O que importa é que aqueles bravos soldados mantiveram a
integridade do castelo e sua fama de inexpugnável.
Histórias
desse tipo sempre me encantaram, tanto que este tema foi usado por mim no
capítulo 38 da série de historias Diário de um Escudeiro. Isso me reavivou o
sentimento de falar desse tema como uma fonte de inspiração para uma aventura
ou parte de campanha.
Em
nossas aventuras normalmente somos o grupo que invade os lugares atrás de algum
item ou para matar algum vilão. Vamos inverter esse viés. E se estivéssemos em
um lugar, sendo atacados, sem a possibilidade de sair ou tendo que ficar para
protegê-lo? E se tudo estivesse contra nós - números, armas, tempo?
A
proposta é simples. Uma aventura onde o grupo de aventureiros é levando a
enfrentar um desafio contra todas as possibilidades de sucesso, seja pelo
número, seja pela localização. Pode não parecer lá muito inovador já que
normalmente os personagens enfrentam, sessão à sessão, perigos que desafiam
suas vidas. O que proponho e jogar esse perigo com um bom e traumático enredo.
Em
RPG podemos dizer que as situações são sempre muito semelhantes. Normalmente
envolve um mistério, que leva à descoberta de uma caminho, que exige uma
jornada (viagem) com testes à vidas dos personagens em graus de dificuldades
crescentes, novas descobertas, evolução dos personagens e uma batalha final,
concedendo-lhes os louros da vitória ou uma belíssima lápide. O diferencial
para não cairmos na mesmice é a história criada, a ambientação estudada e
rebuscada pelo mestre e sua condução.
Como
juntar essa minha ideia em uma aventura então? Os pontos centrais devem ser a
ambientação e a emulação da situação. Crie uma situação onde o envolvimento dos
personagens é fundamental, perturbador e, principalmente, crível. Eles têm de
ser obrigados à enfrentar a situação não importa as consequências mesmo que
sejam gritantemente injustas. E o mais importante de tudo – eles devem ignorar
tal situação até o último instante.
Ainda
muito vago? Vamos à exemplos práticos:
-
Os personagens precisa de um item mágico poderoso, única arma capaz de livrar a
região de um ser maligno. Eles descobriram que tal item está na fortaleza de
seguidores de tal ser, justamente para proteção do item de algum desafeto de
seu senhor. Depois de uma luta feroz e desgastante o grupo vence, mas descobre
que para retirar o tal item de seu “cofre” precisam de um ritual que levará
algumas horas para ser realizado pelo feiticeiro do grupo. É início da noite e
as forças das milícias, que vão servir de reforço para o grupo chegarão apenas
pela manhã, na hora exata em que o cofre será aberto. Infelizmente não será
tempo de paz ou momento para recobrar as forças. As principais forças do ser
maligno pretendem entrar na fortaleza e recuperar o item mágico. Cabe apenas ao
grupo garantir, sozinho, que a fortaleza fique segura por tempo suficiente para
abrirem o cofre e fugirem ou até o amanhecer. Como eles defenderão os três
portões, únicas entradas da fortaleza, contra um exército?
-
A vila de Athyruac está no meio do caminho das intenções expansionistas e
cruéis do conde que comanda a região. Ele tem usado de todos os meios, mesmo os
sombrios, para colocar seus planos de crescer em andamento e poder reivindicar
a coroa. O grupo de aventureiros foi contratado para chegar rapidamente à vila
e garantir alguma proteção enquanto uma milícia melhor armada é organizada e
enviada. O que aprecia ser apenas uma missão de segurança mostra-se um
desesperador capítulo na vida deles e da vila. Ao chegarem à vila os
aventureiros descobrem que as forças sombrias do conde compostas por seres
poderosos e em número considerável estão se preparando para investir contra a
vila na manhã seguinte. Sem homens adultos – a maioria morta ou fora para as
lutas contra o conde – o grupo é a única coisa que pode impedir a chacina da
população indefesa repleta de crianças. Mesmo sendo uma vila murada, há muito o
que defender!
-
A caravana dos tecelões da aurora contratou o grupo para realizar o percurso
mais perigoso da sua viagem – o Desfiladeiro da Serpente. Eles devem chegar à
Cidade do Despertar para realizar o ritual de cura da deusa menor, a fonte de
vida de todos na cidade. Caminhos tortuosos e estreitos que serpenteiam por uma
área repleta de pântanos de gases venenosos, penhascos e desolação será o
percurso realizado por ser mais rápido. O caminho segue tranquilo quando os
batedores da caravana chegam com a notícia de que três frentes estão formadas
para impedir a chegada da caravana ao seu destino. Os rufiões são asseclas das
três grandes cidades que à centenas de anos disputam a hegemonia com a Cidade
do Despertar. Cada um deles virá de um dos três caminhos que levam ao
desfiladeiro, fortemente armados e sedentos de sangue. Lutar contra os três
juntos protegendo a caravana seria suicídio. Ao mesmo tempo a caravana não tem
como andar muito mais rápido. A solução é atacá-los, tal qual guerrilheiros,
antes que eles consigam sair dos penhascos e chegar ao desfiladeiros,
atrasando-os e dando chance da caravana chegar ao seu destino. A vida de todos
depende deles, já que todas as suas famílias também são da Cidade do Despertar.
São
três exemplos simples e que podem ser introduzidos na maioria das aventuras.
Notem os elementos que introduzi nos três exemplos. Primeiramente o grupo de
heróis esta sozinho para enfrentar o
perigo. Claro que necessariamente não precisam ser apenas eles, podendo haver algum
tipo de auxílio, mas os personagens serão os capacitados para realmente
enfrentar o perigo. Eles serão testados por suas capacidades frente à um perigo
muito maior do que eles. Eles podem ter ajuda? Sim, mas o foco da resistência
ou combate são eles. Por exemplo, seria muito interessante se no exemplo da
vila algumas crianças, ou idosos ou algum clérigo resolvesse se juntar à luta
sendo um verdadeiro sidekicks dos heróis como que ajudando-os trazendo flechas,
apagando pequenos incêndios, lhes alcançando pergaminhos de cura e tantas
coisas quanto o mestre bolar ou os jogadores inventarem. Ao mesmo tempo eles
seriam um sensacional elemento para atrapalhar a atenção do herói que já estará
sobrecarregado.
Outra
coisa que está nesses exemplos é que eles devem se separar.
Por quê? Fica muito mais interessante. Na maioria das vezes os grupos são
pensados para serem equilibrados. Temos aqueles para ataque direto, aqueles
para ataque à distância, os que curam, os que furtivamente ajudam, os que
lançam magias. Em conjunto eles são extremamente versáteis, se adaptando para a
maioria das situações. Mas se eles forem obrigados à se separarem terão que
criar formas de vencer a luta por si sós. Por exemplo, no primeiro exemplo que apresentei,
na Fortaleza, o grupo poderia ser obrigado a cobrir três entradas para impedir
a invasão. Imaginando que o grupo tenha seis membros disponíveis para isso
poderíamos ter duplas em cada entrada. Como eles se dividiriam para que
tivessem sucesso? Nisso temos que ter uma grande atenção e cuidado do Mestre. Seria
aconselhável o mestre estudar bem o grupo para que as opções sejam adequados à
cada tipo de personagem. Não estou dizendo que devem haver facilidades, mas
algo que torne a cena ainda mais épica e divertida. Pode haver uma das entradas
onde claramente alguém de ataque à distância, como um arqueiro, teria uma certa
vantagem (uma torre ou sacada, algo no estilo torre da igreja em o Resgate do
Soldado Ryan... lembram?!) enquanto outra entrada precise de alguém pesado para
defesa direta. Lógico que isso só dará certo se as entradas não forem em maior
número do que de personagens.
Outro
ponto importante é o envolvimento
dos personagens. Para uma carga de dramaticidade os personagens devem entender
o que uma falha pode acarretar. A proteção do companheiro feiticeiro no
primeiro exemplo, defender inocentes de uma chacina no segundo exemplo ou
garantir a vida de suas famílias no terceiro exemplo. Esses são apenas algumas
formas para isso, mas o importante é que todos (ou a maioria) estejam dispostos
à lutar até a morte se necessário. Serão ótimos momentos para interpretações,
narrações de ações e tantas outras coisas que farão da cena algo para guardarem
na memória. Inclusive as mortes nessas situações serão momentos épicos para a
continuidade da aventura daqueles que permanecerem de pé.
Uma
coisa que o Mestre pode fazer é deixar algum ajudante com o aventureiro e que a
ficha desse NPC seja usada pelo jogador em questão, principalmente quando esses
jogadores forem enfrentar o desafio sozinhos.
Uma
pergunta que já me fizeram com relação à essas dicas é como levar a sessão quando
os focos estão fragmentados. Seria um erro mestrar em separado, pois a cena é
simultânea, embora esteja acontecendo em pontos diferentes da estrutura.
Conforme o tamanho da estrutura inclusive, jogadores podem trocar de lugar conforme
os perigos se alternam em cada ponto. Eles podem se comunicar mesmo que à
distância (desde aos berros ou usando NPCs para isso) ou mesmo se ajudar,
avaliando sair de seu lugar para ajudar outro em pior situação. Mas a condução
da sessão deverá ser feita pouco à pouco com cada núcleo. Uma boa ideia são
umas duas rodadas de combate antes de passar para outro núcleo. Pesar no
suspense também é ótimo. Logo antes de algum clímax mude para outro núcleo
deixando o jogador em questão surtando de expectativa.
Como
eu disse, o mais importante é fazer com que os jogadores se sintam intimamente
ligados à situação e tenham um sentido de urgência. Lógico que isso cabe ao
mestre ao longo da construção de sua narrativa da aventura e de uma boa dose de
cumplicidade dos jogadores. Mas tendo isso em mãos, e com o enredo bem
construído, a situação à qual os jogadores terão de enfrentar tornar-se-á
épica.
Bom
jogos!!!
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