Brasil pela editora New Order
- o sistema, previsões e entrevista
com o tradutor -
Fomos
pegos de surpresa com a notícia de que a editora New Order lançará o épico King
Arthur Pendragon no Brasil. Em meio ao final de semana do Diversão Offline, o
tradutor Fábio Romeiro Gullo fez uma pequena postagem em seu perfil pessoal do
Facebook informando o fato. A notícia pode ter vindo sem alarde, mas sem sombra
de dúvida ela é importantíssima para o rol de RPGs lançados no Brasil e mais
uma vez a New Order está à frente deste projeto.
Embora
eu nunca tenha tido o prazer de participar de uma mesa deste título, tenho
ótimas referências de amigos que já o jogaram e de resenhas, daqui e de fora. Para
aqueles que não sabem do que falo o jogo não é novo. Sua primeira edição data
de 1985, autoria de Greg Stafford, e lançado pela editora Chaosium. Daí em
diante foram 33 anos de sucesso, cinco edições e alguns prêmios: Melhor Regra
no Origins Award de 1990, Melhor Suplemento de RPG por Pendragon Campaign no
Academy Adventure Gaming Arts & Desgin de 1985 e teve o 12º lugar entre os
RPGs Mais Populares de Todos os Tempos numa votação junto ao público da Arcane
Magazine em 1986. Fora isso foram um sem número de resenhas e análises
extremamente positivas ao longo das décadas.
Procurei
pelo Anesio Vargas Junior, editor da New Order, e ele me informou que ainda não
há data definida para o lançamento, mas que há grandes chances de sair ainda
este ano. Ele será feito através de um financiamento coletivo com toda a
certeza - uma prática amplamente utilizada pela editora é já que já demonstrou
ser um sucesso garantido.
“Ter o Pendragon traduzido aqui é a prova que
nos
preocupamos em
trazer bons jogos.
O Brasil pode
esperar muito da New Order.”
[Anésio Vargas Junior]
O
jogo em si é um d20 onde seu traço marcante está na caracterização das
personalidades e paixões dos personagens. Se nos centramos nas regras ele
possui uma mecânica tradicional originada do Basic Role-Playing do mesmo autor,
similar a GURPS e Savage Worlds, onde usamos um conjunto de cinco atributos
como base, de onde derivam modificadores para uso em várias perícias e ações
básicas. As resoluções são feitas com rolagens que devem ser igual ou inferior
à um escore da perícia ou valor base. Outros detalhes: possui valores de
armadura e defesa com funções em separado; este é um cenário que se utiliza de
magia então temos também regras para uso de magia; vem com referências de todos
os personagens históricos; o material de ajuda do mestre é amplo contando regras
para torneios; regras e dicas para jogos com apenas um jogador e muito mais.
Um
dos pontos altos deste título é a importância dada às características de
personalidade dos personagens. Essas características são compostas por treze
personalidades opostas, virtudes e vícios, e por cinco paixões. Dentro das
personalidades temos: Chaste e Lustful, Energetic e Lazy, Forgiving e Vengeful,
Generous e Selfish, Honest e Deceitful, Just e Arbitrary, Merciful e Cruel,
Modest e Proud, Pious e Worldly, Prudent e Reckless, Temperate e Indulgent, Trusting e Suspicious
e Valorous e Cowardly (mantive os termos em inglês pois não sei qual tradução
terão). Esses conjuntos ganham vinte pontos cada onde devemos dividir da forma
que preferirmos conforme a personalidade que desejamos dar ao nosso personagem,
mas nunca ultrapassando esse total (exemplo 14/6, 5/15 ou 10/10) e onde cada
ponto acima de 10 torna-se ou 1 ponto de virtude ou 1 ponto de vício.
Inicialmente o personagem deve começar com cinco desses conjuntos na proporção
13/7 (ou seja, 13 em um e 7 em outro). Jogadas com d20 são feitas para usarmos
uma virtude ou para resistirmos à um vício. Ainda ligado à esses valores de
virtudes e vícios, a soma de pontos em virtudes ou vícios que somados ficarem
acima de 80 pontos geram bônus ou penalidades na prática de cavalaria. Dentro
das paixões temos honor, loyalty, hospitality, hate e love, escolhidos através
de 3d6 (ou 2d6+6) somando ou tirando modificadores. Todo este conjunto de
informações espelha o modo de ser do personagem e como ele se relaciona com o cenário
e com os outros entes, mas principalmente, ele influencia para que as ações
cruciais dependam de rolagens espelhadas, influenciadas e influenciantes em
relação à esses traços. Nunca as consequências de falhas serão tão importantes.
A
intenção aqui não é destrinchar o sistema, mas apresentar os pontos interessantes dele, por isso não vou me deter muito e deixar para que se surpreendam.
Mas
acima de tudo, o ponto alto é a possibilidade de jogar e vivenciar uma história
tipicamente cavalheiresca, dentro de um dos maiores e mais icônicos cenários de
fantasia do imaginário moderno. Em tempos que estamos acostumados a vermos
todos encantados com as várias mídias que títulos como Game of Thrones ou
Senhor dos Anéis influenciam, vamos ao pai de todos eles e beber direto da
fonte histórica deles – a lenda do Rei Artur e seus cavaleiros. É certo que ele
foge um pouco de títulos mais comuns de RPGs de fantasia e seus perfis muito
mais crus, mas é uma opção imperdível para quem procura uma história única, com
um sistema impressionante e uma arte maravilhosa.
Mas
sem dúvida alguma, sempre que temos um novo título trazido para o Brasil a
primeira coisa que me pergunto é como será sua tradução - um ponto crucial para
mim. Tendo isso em vista aproveitei a oportunidade e já fiz uma mini entrevista
com o tradutor de King Arthur Pendragon, Fábio Romeiro Gullo, muito elogiado
pelo Anésio Vargas Junior. São poucas perguntas que fiz via mensagem, mas
podemos perceber o comprometimento e a paixão do Fábio pela franquia, algo
crucial para o sucesso de um trabalho.
• Qual tua
relação com esse jogo - primeiro contato, experiência, etc?
O
primeiro contato, se a memória não me engana (ela o faz com frequência rsrs),
foi lá para os idos da década de 1990, quando ainda não tínhamos a internet e
as novidades eram transmitidas boca-a-boca (no bom sentido!) ou por meio da
mídia impressa. A maior parte dos jogos que eu conhecia, então, eu o fazia
geralmente via revistas de RPG importadas (e algumas nacionais, como a saudosa
Dragão Dourado, que me apresentou, por exemplo, ao Hero System e ao
RoleMaster).
O
Pendragon me foi apresentado por uma resenha – como não poderia deixar de ser –
super elogiosa da Dragon Magazine, que me fez sair correndo para a loja de RPGs
da Associação Santista de RPG (àquela época o hobby estava em alta, tínhamos um
sobrado na região nobre da cidade Santos com loja, lanchonete de muitas salas
para os jogos) e encomendar a enorme quarta edição do jogo e todos os
suplementos existentes (e os inexistentes, se possível!).
Todo
esse entusiasmo tinha a ver, primeiramente, com as qualidades do jogo em si,
cantadas pela resenha na Dragon Magazine. Mas também tinha a ver com meu
interesse desde criancinha no tema arthuriano, que provavelmente começara, com
força, no fanatismo pelo filme Excalibur, no vício nos álbuns gigantes que a
Ebal publicara do Príncipe Valente (os quais eu não tinha então – agora tenho
todos –, mas que devorava na Gibiteca Municipal de Santos), no livro Fadas do
Brian Froud e Alan Lee, na Trilogia Merlin da Mary Stewart, em as Brumas de
Avalon, naturalmente, isso sem contar, falando de RPGs, no GURPS Camelot e
GURPS Celtic Myth.
A
minha experiência com o Pendragon foi exclusivamente como Mestre de Jogo. Ao
longo do tempo tive muitos grupos, com poucos ou muitos jogadores (de dois a
oito), com os quais sempre me esforce por explorar os diversos estilos de jogo
indicados pelo autor na introdução do livro: do estritamente histórico (uma
impossibilidade, sei, mas com o que quero dizer com a total ausência do mágico
e maravilhoso), o low-fantasy, o high-fantasy...
Duas
experiências/campanhas em especial me marcaram: uma, com um grupo de seis
jogadores, baseada no cenário idealista low-fantasy das histórias do Príncipe
Valente, em que um dos jogadores representava o príncipe do título; outra, com
apenas dois jogadores, dentre os quais minha esposa, de caráter (e qualidade)
mais literária, em que o desenvolvimento familiar e psicológico dos personagens
foi de uma magnitude inesquecível e muito, muito pessoal para todos os
envolvidos.
Em
toda a minha experiência com RPGs, nem de longe conheci um cenário e,
principalmente, um sistema de regras que tenham me possibilitado experiências
tão díspares e profundas.
• Como foi o processo de negociação
(se é que podes contar)?
O
processo de negociação foi especialmente demorado por conta do falecimento
recente do, à época, presidente da Nocturnal Media (atual editora do jogo), o
Stewart Wieck. Muita gente o conhece como ex-editor da White Wolf e,
principalmente, como criador do Mago: A Ascenção. O fato é que ele, ao lado do
Mark Rein-Hagen e de praticamente todos os “lobos brancos”, sempre foram fãs
“hard core” do Pendragon (O Ars Magica foi diretamente inspirado no Pendragon,
embora pessoalmente, e em resposta a uma pergunta minha, o Mark Rein tenda a
negar isso; veja: num jogo você joga exclusivamente com cavaleiros; no outro,
com magos... e basta comparar o histórico de publicação de ambos os jogos – o
Pendragon é de 85, o Ars Magica de 87 – para confirmar a minha hipótese!),
enfim, o Stewart Wieck era grande fã do Pendragon e por conta disso publicou a
quinta edição do jogo pela White Wolf, em seguida adquiriu os direitos e
publicou as edições 5.1 e 5.2 pela sua Nocturnal Media. Pelo o que entendo,
pouco antes do lançamento da 5.2 ele faleceu e daí, claro, todos os lançamentos
e atividades da editora sofreram adiamentos, passando para as mãos da sua
esposa e do seu irmão, Jennifer e Steve Wieck.
Foi
nesse interregno que, em nome da New Order, eu tentei entrar em contato com
eles para a aquisição dos direitos de tradução do jogo. Pelos motivos
explicados acima, meu e-mail ficou perdido em meio ao backlog deles... o que me
fez, após um mês de espera, tentar contato via Facebook/Messenger, o que também
foi um processo bastante demorado... O importante é que deu tudo certo e agora
teremos o Pendragon no Brasil e, muito importante, pelas mãos da melhor editora
nacional de RPGs!
• Quais as dificuldades e
particularidades de traduzir esse título em especial?
Creio
que as peculiaridades da tradução do King Arthur Pendragon começam pelo título:
como trata-se de um nome próprio, Arthur ou Artur? De lado isso, e mais
importante, a comunidade de jogadores raramente, se muito, refere-se ao jogo
pelo título completo, tipo, “hoje vamos jogar King Arthur Pendragon?”; em geral
se diz apenas “Pendragon”, então, logo de cara pintou a dúvida: traduzir o
título completo ou adotar apenas o “Pendragon” do uso comum? A solução adotada
foi: na capa e na página de rosto usar o título completo; ao longo do texto,
usar, por brevidade e para aliviar o famoso problema de textos vertidos do
inglês para o português sempre ficarem mais extensos, usar apenas “Pendragon”.
O
texto do próprio autor, ao longo do livro – tanto o descritivo (cenário) quanto
o explicativo (regras) – é bastante direto e legível, não apresentando maiores
dificuldades. Estas se encontram, principalmente, nas citações espalhadas no
texto, retiradas de fontes literárias antigas, em especial o Le Morte D’Arthur,
do Sir Thomas Mallory, a fonte primária de todo o cenário. Aí, além de
estruturas sintáticas arcaicas e mais elaboradas, temos o uso de palavras
desusadas, etc.
O
vocabulário próprio do feudalismo, também, deu (está dando) bastante trabalho,
no caso da pesquisa para encontrar equivalentes no português brasileiro de
termos em franco desuso e que, muitas vezes, não possuem equivalentes diretos
em nossa língua, dado em nossa história novo mundista não termos passamos pelo
feudalismo propriamente dito. Por exemplo, o termo manor, que poderia ser
traduzido como “senhorio”, “manso”, “manso senhorial”... mas que optei por
traduzir, um tanto imprecisamente, como “feudo”, que no caso seria a tradução
exata de “fief”, mas que escolhi por ser esse o modo mais natural e de uso
corrente quando nos referimos às terras de um nobre ou cavaleiro medieval.
Outro
exemplo óbvio, mas que exigiu muita pesquisa – e para além dos domínios da
internet – foram os termos heráldicos: área na qual não tive escolha, em certos
particulares, a não ser usar termos do português de Portugal.
Em
termos de sistema de regras, se houve uma dificuldade, foi com os termos do
subsistema de Traits and Passions (“Traços e Paixões”), o subsistema, sem
sombra de dúvidas, mais revolucionário (para o hobby), influente (em jogos
posteriores) e importante para o (e definidor do) próprio Pendragon. O sistema
de Traços, em particular, utiliza 20 pares de traços de personalidade, com cada
um oferecendo traços opostos, como casto/luxurioso, valente/covarde, etc. Aqui
foi muito importante o esforço para chegar à tradução mais exata possível de
cada termo em si, depois em relação ao seu par, em seguida em relação (do termo
em si e do par) com os demais termos e pares. Como no caso de indulgente/vingativo
e clemente/cruel, em que os primeiros termos de cada par podem, numa tradução
descuidada ou apressada, dizerem basicamente a mesma coisa, o que de fato
acabam inevitavelmente fazendo em maior ou menor grau, só sendo possível
distingui-los com precisão quando os vemos no contexto do seu par “sombrio”, e
comparando os pares entre si. Num último exemplo, há toda uma diferença em
adotar, para “valorous”, a tradução “valente” em vez de “corajoso”, o que tem a
ver com o significado específico de cada palavra e com o seu uso na tradição da
literatura de cavalaria, além de, por assim dizer, na tradição particular da
obra do autor, Greg Stafford, que criou o excelente (e precursor pioneiro dos
populares sistemas de pilhas de dados) RPG do Príncipe Valente.
Naturalmente
eu poderia dar mais centenas de exemplos, mas estou certo de que já me estendi
além da conta rsrsrs.
• Apenas mais
uma pergunta em adendo (algo que muito me preocupa em comparação à outras
traduções que já vimos pelo mercado nacional). Qual a tua estratégia/mecânica
para tradução de nomes próprios e de lugares/locais? Visto que o cenário e
personagens ligados à mitologia do rei Artur é amplamente presente em diversas
mídias ao longo das décadas (como tu mesmo já salientou) como pretende tratar
isso?
Então,
o autor tem uma política de tradução de nomes muito específica, a qual resolvi
seguir também. De um modo geral, os nomes próprios ficam como ele escolheu:
então teremos em português Lancetot du Lac e não Lancelote do Lago. No caso de
Arthur Pendragon, fica Arthur com "h" e não "Artur", muito
menos "Pendragão". Até Tristam, que é comumente conhecido como
Tristão em português (por conta da história Tristão e Isolda), ficará Tristam
mesmo. Para não dizer que não mudei nada, fiz mudanças mínimas como ao adotar
Guinevere em vez de Guenevere. No caso dos pronomes de tratamento, optei por
manter "sir" e "lady" assim mesmo, "sir" e
"lady", por exemplo. Em resumo, na maioria esmagadora dos casos, os
nomes próprios e topônimos ficam como no original, a não ser casos em q o
aportuguesamento é incontornável, como no caso de Londres (não daria p usar
"London).
Para
um romance, como O Sr. dos Anéis, acho viável, por exemplo Bolseiro no lugar de
Baggins. Mas no caso específico do Pendragon, por conta da política do próprio
autor, que é americano mas optou por manter nomes próprios franceses em muitos
casos, eu não vejo como não fazer o mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário