terça-feira, 11 de setembro de 2018

Fantasia & Realidade: O Tarrasque



Fantasia & Realidade
O Tarrasque

Estamos acostumados a jogar RPG e interagir com muitos de seus elementos e não imaginarmos qual sua verdadeira origem. Muitos se acostumaram a pensar que tais elementos ou foram tirados da mitologia tolkiana ou da imaginação de criativos autores. Vamos ver um desses elementos para reinaugurar nossa seção Fantasia & Realidade. Nosso alvo de hoje é o temido Tarrasque.

Quando escutamos esse nome logo pensamos em um ser monstruoso, reptiliano, gigantesco e feroz. Uma verdadeira máquina de destruição. No RPG ele é um ser temido e difundido, amado pelos mestres e odiado pelos jogadores, mas unânime quando pensamos em algincrível.o


O Mito
O folclore do sul da França mistura-se e se confunde com a lenda bíblica. A lenda conta que havia um terrível animal que habitaria entre as florestas de Arles e Avignon - uma quimera, com cabeça e patas de leão, dorso de uma cabra - com cauda de escorpião, patas de urso e casco de tartaruga - próximo ao reino de Nelric (Provence). Marta, irmã de Maria (mãe de Jesus) e Lazaro, vai morar com seus irmãos na aldeia de Betânia [alguns dizem que é em Betânia, outros em Tarascon e vocês entenderão o por que dessa confusão]. Ela testemunha o ataque da grande besta e resolve enfrentá-la. Marta usa apenas um crucifixo, água benta e orações. Ao jogar a água benta na criatura, e batê-la com o crucifixo, ela torna-se mansa e é levada por Marta para a aldeia. Ao chegar lá a criatura é morta pela população assustada. Marta fica indignada com a morte da criatura que já não era mais um perigo. A população para, como forma de arrependimento, converte-se ao cristianismo e muda o nome da cidade para Tarascon.



A tradição religiosa e mítica tem muitas variantes. O mito foi difundido através da Lenda de Ouro (Legenda Sanctorun, de 1260) e escrito por Jacobus de Varagine. A escrita em latim simples fez com que fosse amplamente espalhado pelo continente europeu sendo considerado o mais próximo de uma enciclopédia do folclore medieval. O monstro seria formado por parte animal terrestre e parte peixe e matava as pessoas ao tentarem atravessar o rio. Não conseguiam matá-lo, pois ele passava escondido debaixo da água: Era mais gordo que um boi, mais comprido que um cavalo, com rosto e cabeça de leão, dentes afiados como espadas, crina de cavalo, as costas afiadas como um machado, escamas arrepiadas e penetrantes, seis patas com garras de urso, uma cauda serpeteante e uma concha de cada lado como uma tartaruga.” Era uma clara influência dos monstros Leviatã (Livro de Jó) e Bonachus (bestiário medieval). Marta teria ido morar na região com sua família por volta do ano 48 e teriam suplicado à ela que o enfrentasse (a tradição religiosa considera que ela já era santa e por isso da súplica para que ela fizesse algo). Marta teria visto que a criatura teria certa beleza e o enfrenta com cânticos, orações, água benta e o crucifixo. O povo da região o mata, como no mito, mas Marta os perdoa. Eles teriam ficado cego ao matar a criatura e ela passa a cuidá-los e converte-los.
 
Lenda de Ouro (Legenda Sanctorum)

Marta seria canonizada como Santa Marta, padroeira dos servos, viajantes, empregadas domésticas e esposas.

A lenda acaba unindo vários elementos. Primeiramente a questão religiosa e a história da cristianização do sul do que hoje é a França, mostrando a religião vencendo o paganismo. Temos ainda elementos mais mundanos como a interpretação da população das várias enchentes que a região Rhône enfrentava. Ela ainda assumiu o papel de conto infantil típico da idade média provavelmente para impedir que as crianças fossem muito longe da cidade ou mesmo tentando impedir que fossem aos rios sozinhas.

A importância da lenda do Tarrasque é tão grande que em 2005 a UNESCO a reconheceu internacionalmente como parte da herança oral e imaterial da humanidade. Da mesma forma a ciência homenageou a lenda batizando um determinado tipo de fóssil encontrado em 1991, em Lambeau de Beausset (França) com o nome de Tarascossauro. Além disso, temos a artilharia de 20mm antiaérea francesa 53 T2 que foi batizada de Tarrasque. Historicamente os franceses, na época da ocupação do Vietnã, batizaram um monstro mitológico marinho lendário que viveria na baía de Halong como Tarrasque.


No RPG
Encontrado em muitos dos sistemas de RPG com cenários de fantasia medieval, o tarrasque é sinônimo de ferocidade e destruição imparáveis. Muito embora Franz Mentzer (um dos designs das primeiras edições de D&D) diga que o tarrasque seja uma invenção desenvolvida por François Marcela-Froideval para o Monster Manual II (1983), isso não seria bem verdade. O certo seria dizer que o monstro tenha sido adaptado por François para a obra de Gygax, e dali tenha ganho o mundo dentro do imaginário dos fãs e autores de RPG.

Pronunciando-se ta-RRAsk (conforme esclarecido por Frank Mentzer na revista Dragon #93, janeiro de 1985), o monstro de forma geral seria um gigantesco animal com características reptilianas, extremamente feroz e destrutivo. Tendo isso como elemento constante, muitas características mudaram ao longo dos anos de edições de variados sistemas. Vamos usar como espécime básico a versão do D&D e ir comparando com outros sistemas e com a lenda e entender como ele se desenvolveu até hoje.

A primeira aparição do Terrasque foi no Monster Manual II, de 1983, na primeira edição de Dungeons & Dragons. Ele é descrito como o monstro mais temido de todos. Com seus 15m (50 pés) de altura ele devora ou destrói tudo, vida animal ou vegetal por quilômetros. Seus ataques seriam com as duas garras, a cauda em forma de chicote, a mordida poderosa, além dos dois chifres. Como proteção ele possui uma carapaça com extremamente dura e reflexiva. Se tudo isso não fosse suficiente, ele regenera 1 ponto de vida por rodada, sendo que para que sua morte seja alcançada, ele deve ser reduzido à -30 pontos de vida.

Monster Manual II (1983)
A sorte é que esse monstro não ficava ativo o tempo todo. Ele andaria destruindo tudo e se alimentado por um período de uma a duas semanas, então procuraria um local subterrâneo para dormir entre 5 e 20 meses. Uma vez à cada década o tarrasque ficaria particularmente ativo sem dormir por meses, mas logo depois dormindo por 4 a 6 anos. Nesta primeira aparição do tarrasque em um suplemento não é dito se existem apenas um ou vários.

Essa primeira aparição moldou o que seria representativo do visual do tarrasque nas décadas seguintes - um gigantesco lagarto, com carapaça, chifres, cauda reptiliana, garras e uma carapaça como de tartaruga. Nesta primeira aparição (e na segunda) ele era quase uma versão Godzila do tarrasque, mais ereto. Nas edições seguintes ele teve o visual mais próximo de um enorme dinossauro, com membros inferiores arqueados mais próximos de um grande reptil.

Quando chegamos à segunda edição, no AD&D Monster Manual (1993 – uma reimpressão do Monstrous Compendium Volume Two, de 1989), temos uma primeira e sutil mudança em seu texto. Ele passa a ser declarado como uma criatura única: “O legendário e único tarrasque é o mais temido monstro originário do plano Material Primário. Bípede escamoso, tem dois chifres, uma cauda comprida e uma carapaça refletora.” A questão dele ser um elemento único no cenário é principalmente importante para enredo. Para regras ele mantém todas as características mostradas anteriormente, com pequenas mudanças nos períodos de atividade e descanso agora decididos com dados (passando para 5d4 meses de torpor e 4d4 anos de torpor depois do maior período de atividade). Na sua mecânica ele ganha algumas coisas novas: a possibilidade de atropelar, dano dobrado com os chifres e a capacidade de atacar e se mover no mesmo turno.

AD&D Monster Manual (1993)
Antes de chegarmos à edição seguinte, tivemos o acréscimo de uma interessante informação. No Practical Planetology (1991), dentro do cenário Spelljammer, é informado que exite um planeta chamado Falx repleto de tarrasques. Neste planeta em especial os monstros são relativamente tranquilos, mas quando eles são tirados de seu ambiente natural eles se tornam extremamente violentos. “Enquanto o tarrasque verdadeiro tem a reputação de ser único, existem várias centenas desses enormes monstros espalhados pela superfície de Falx. Alguns sábios afirmam que este mundo é o lar do tarrasque, e que aquela criatura única é realmente um único espécime transportado através do espaço por algum motivo. Outros sábios apontam que pode haver diferenças sutis entre os tarrasques de Falx e a versão terrestre. O espaço é grande, afinal de contas, e a semelhança pode ser apenas coincidência.”

Na terceira edição de D&D temos o início da era d20. Com ela o D&D Monster Manual (2000) volta com o tarrasque dentro das novas regras do sistema. Algumas mudanças foram implementadas. Para matá-lo é necessário não só reduzir seus pontos de vida à níveis negativos, mas também aplicar a magia Desejo ou Milagre. O período de atividade reduziu para 1d3 dias acordado com intervalos de 6d4 meses adormecido, onde à cada década ele tem uma atividade prolongada de 1d2 semanas, hibernando depois por 4d6 anos, se não for perturbado.

Monster Manual (2000)
Todas as outras características permanecem as mesmas apenas sendo adequadas ao novo sistema de regras. Uma coisa interessante que foi colocada literalmente é que o tarrasque não fala. Nessa edição é a primeira vez que o tarrasque não é colocado como a criatura mais poderosa, atrás dos mais antigos dragões. Uma novidade que tivemos nessa edição foi a apresentação clara das dimensões da criatura. Até aqui ele era referenciada como tendo 15m. Agora foi informado que ele possui 15m de altura (50 pés), 21m de comprimento (70 pés) e 130 toneladas.

Ainda dentro da terceira edição houve um artigo antológico lançado na Dragon #359 (setembro de 2007), autoria de Ed Greenwood e Johnatan M. Richards. Com o sugestivo título The Ecology of Tarrasque, os autores vão à fundo na analise desta terrível criatura, ampliando em muito as informações do Monster Manual. É explicado que a dificuldade de encontrar o seu local de hibernação é devido ao fato dele se ‘mesclar’ à alguma pedra gigantesca enterrada, habilidade chamada de ‘arnstone’ ou “ser um com a pedra”. Dependendo do quanto ele comeu e da qualidade da pedra com a qual ele se fundiu, ele poderia hibernar por até 50 anos.


Entre outras coisas é apontado também que seus três estômagos podem digerir até mesmo artefatos mágicos ou matéria não-viva. Ou seja, para o Tarrasque, tudo o que estiver no chão não é ameaça, mas sim comida. Além disso podemos dizer que a informação que mais mexeu com os rpgistas foi uma lista muito precisa da enorme quantidade de riquezas que poderiam angariar matando um tarrasque, uma verdadeira fortuna em peças preciosas e materiais mágicos. Como curiosidade temos no artigo a ficha de um Advanced Tarrasque, plots para uso dos tarrasques em seus jogos e uma tabela com CD para teste de Conhecimento (arcano) Tarrasque.

Dentro da licença de uso das regras do sistema d20 tivemos o lançamento de Pathfinder RPG que logicamente tinha sua versão de tarrasque lançado no Pathfinder RPG Bestiary. Ele mantém todas as principais características – os vários tipos de ataque, a regeneração, a carapaça reflexiva, além de tudo mais, podendo inclusive voltar da morte (no caso de algum efeito que lhe cause morte instantânea) apenas 3 rodadas após. É dito claramente também que não são conhecidos meios para matá-lo. Aqui temos duas sutis diferenças. Ele não é colocado como sendo um ser único, embora continue com a aura de ser um dos mais perigosos monstros dentre todos. Além disso, é dito que ele tem alguma inteligência, tanta que seria capaz de entender algumas palavras no idioma aklo (embora não fale) e capaz de focar ataques em alvos com maior capacidade de ameaçá-lo.

No D&D Monster Manual 4ª edition (2008) tivemos uma mudança significativa. Para matá-lo não é necessário mais a aplicação das magias Desejo ou Milagre, mas sim mandá-lo para outro plano: “O tarrasque está inexoravelmente ligado ao mundo, de tal forma que o máximo que se pode esperar é colocar a criatura em repouso, forçando-a a dormir dentro do núcleo do mundo por muitos anos antes que ela se agite novamente. No entanto, textos antigos postulam que o tarrasque poderia ser destruído permanentemente se de alguma forma fosse persuadido ou levado a deixar o mundo.” Não temos indicação de tempo de hibernação do tarrasque nessa edição. Há uma ligação de seu sono com a impossibilidade de matá-lo chamado de Sono Eterno (Eternal SlumberI), onde o tarrasque entra em hibernação no solo quando seus pontos de vida chegam à zero.

Para o D&D Monster Manual 5ª edition (2014), tivemos mais algumas mudanças. Ele permaneceu sem a regeneração e sem qualquer detalhe específico para ser morto. Mas seu tempo de hibernação aumentou, sendo indeterminado e ligado mais ao enredo da campanha do que às regras: “O potencial destrutivo de um tarrasque é tão amplo que algumas culturas incorporaram o monstro em doutrinas religiosas, considerando suas aparições esporádicas na história como justiça ou ira divina. As lendas contam que o tarrasque dorme em seu covil secreto abaixo da terra, permanecendo em um estado inativo por décadas ou séculos. Quando ele acorda em resposta a algum chamado cósmico inescrutável, ele emerge das profundezas para obliterar tudo em seu caminho.”

Monster Manual (2014)


Finalizando
O Tarrasque é uma criatura icônica do imaginário do RPG de fantasia medieval. Algoz de incontáveis grupos de aventureiros e paixão de muito mestres sádicos, ele é um elemento que pode ser usado em qualquer campanha como um tempero à mais e não como uma penalidade. É incrivelmente simplista usar um tarrasque como elemento para testar a resistência de um grupo de jogadores. A arte está em usá-lo como elemento para enriquecer uma aventura e gerar dezenas de plots secundários para uma longa campanha.

Como um professor meu dizia nos primeiros dias do curso de história - “nada se cria, tudo se copia”. E não há mal nenhum nisso. Tudo vem de uma inspiração impulsionada por algo que vimos, ouvimos ou lemos de coisas que já existem. Essa é a beleza. E com o RPG não seria diferente. A obra de Tolkien veio de um amálgama de influências religiosas, místicas, culturais e históricas. O RPG bebeu das obras de Tolkien e de tantos outros autores, assim como de um amálgama de outras influências. E assim sucessivamente.

Acho interessante e importante fazer essas análises e mapeamentos cronológicos para conhecermos e entendermos os ‘por quês’ das opções e escolhas de nossos sistemas preferidos. É uma forma de irmos além e termos a possibilidade de criar coisas novas. Esse tipo de conhecimento também nos mostra o quanto podemos criar a partir de elementos que já estão à nossa volta.

Bons jogos!



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