Fantasia & Realidade
O Tarrasque
Estamos acostumados a jogar RPG
e interagir com muitos de seus elementos e não imaginarmos qual sua verdadeira
origem. Muitos se acostumaram a pensar que tais elementos ou foram tirados da
mitologia tolkiana ou da imaginação de criativos autores. Vamos ver um desses
elementos para reinaugurar nossa seção Fantasia & Realidade. Nosso alvo de
hoje é o temido Tarrasque.
Quando escutamos esse nome logo
pensamos em um ser monstruoso, reptiliano, gigantesco e feroz. Uma verdadeira
máquina de destruição. No RPG ele é um ser temido e difundido, amado pelos
mestres e odiado pelos jogadores, mas unânime quando pensamos em algincrível.o
O Mito
O folclore do sul da França
mistura-se e se confunde com a lenda bíblica. A lenda conta que havia um
terrível animal que habitaria entre as florestas de Arles e Avignon - uma
quimera, com cabeça e patas de leão, dorso de uma cabra - com cauda de
escorpião, patas de urso e casco de tartaruga - próximo ao reino de Nelric
(Provence). Marta, irmã de Maria (mãe de Jesus) e Lazaro, vai morar com seus
irmãos na aldeia de Betânia [alguns dizem que é em Betânia, outros em Tarascon
e vocês entenderão o por que dessa confusão]. Ela testemunha o ataque da grande
besta e resolve enfrentá-la. Marta usa apenas um crucifixo, água benta e
orações. Ao jogar a água benta na criatura, e batê-la com o crucifixo, ela
torna-se mansa e é levada por Marta para a aldeia. Ao chegar lá a criatura é
morta pela população assustada. Marta fica indignada com a morte da criatura
que já não era mais um perigo. A população para, como forma de arrependimento,
converte-se ao cristianismo e muda o nome da cidade para Tarascon.
A tradição religiosa e mítica tem
muitas variantes. O mito foi difundido através da Lenda de Ouro (Legenda Sanctorun, de 1260) e escrito
por Jacobus de Varagine. A escrita em latim simples fez com que fosse
amplamente espalhado pelo continente europeu sendo considerado o mais próximo
de uma enciclopédia do folclore medieval. O monstro seria formado por parte
animal terrestre e parte peixe e matava as pessoas ao tentarem atravessar o
rio. Não conseguiam matá-lo, pois ele passava escondido debaixo da água: “Era mais gordo que um boi, mais comprido que
um cavalo, com rosto e cabeça de leão, dentes afiados como espadas, crina de
cavalo, as costas afiadas como um machado, escamas arrepiadas e penetrantes,
seis patas com garras de urso, uma cauda serpeteante e uma concha de cada lado
como uma tartaruga.” Era uma clara influência dos monstros Leviatã (Livro
de Jó) e Bonachus (bestiário medieval). Marta teria ido morar na região com sua
família por volta do ano 48 e teriam suplicado à ela que o enfrentasse (a tradição
religiosa considera que ela já era santa e por isso da súplica para que ela
fizesse algo). Marta teria visto que a criatura teria certa beleza e o enfrenta
com cânticos, orações, água benta e o crucifixo. O povo da região o mata, como
no mito, mas Marta os perdoa. Eles teriam ficado cego ao matar a criatura e ela
passa a cuidá-los e converte-los.
Marta seria canonizada como
Santa Marta, padroeira dos servos, viajantes, empregadas domésticas e esposas.
A
lenda acaba unindo vários elementos. Primeiramente a questão religiosa e a
história da cristianização do sul do que hoje é a França, mostrando a religião
vencendo o paganismo. Temos ainda elementos mais mundanos como a interpretação
da população das várias enchentes que a região Rhône enfrentava. Ela ainda
assumiu o papel de conto infantil típico da idade média provavelmente para
impedir que as crianças fossem muito longe da cidade ou mesmo tentando impedir
que fossem aos rios sozinhas.
A
importância da lenda do Tarrasque é tão grande que em 2005 a UNESCO a
reconheceu internacionalmente como parte da herança oral e imaterial da
humanidade. Da mesma forma a ciência homenageou a lenda batizando um
determinado tipo de fóssil encontrado em 1991, em Lambeau de Beausset (França)
com o nome de Tarascossauro. Além disso, temos a artilharia de 20mm antiaérea
francesa 53 T2 que foi batizada de Tarrasque. Historicamente os franceses, na
época da ocupação do Vietnã, batizaram um monstro mitológico marinho lendário
que viveria na baía de Halong como Tarrasque.
No RPG
Encontrado em muitos dos
sistemas de RPG com cenários de fantasia medieval, o tarrasque é sinônimo de
ferocidade e destruição imparáveis. Muito embora Franz Mentzer (um dos designs
das primeiras edições de D&D) diga que o tarrasque seja uma invenção
desenvolvida por François Marcela-Froideval para o Monster Manual II (1983),
isso não seria bem verdade. O certo seria dizer que o monstro tenha sido
adaptado por François para a obra de Gygax, e dali tenha ganho o mundo dentro
do imaginário dos fãs e autores de RPG.
Pronunciando-se ta-RRAsk (conforme esclarecido por Frank
Mentzer na revista Dragon #93, janeiro de 1985), o monstro de forma geral seria
um gigantesco animal com características reptilianas, extremamente feroz e
destrutivo. Tendo isso como elemento constante, muitas características mudaram
ao longo dos anos de edições de variados sistemas. Vamos usar como espécime
básico a versão do D&D e ir comparando com outros sistemas e com a lenda e
entender como ele se desenvolveu até hoje.
A primeira aparição do Terrasque
foi no Monster Manual II, de
1983, na primeira edição de Dungeons & Dragons. Ele é descrito como o
monstro mais temido de todos. Com seus 15m (50 pés) de altura ele devora ou destrói
tudo, vida animal ou vegetal por quilômetros. Seus ataques seriam com as duas
garras, a cauda em forma de chicote, a mordida poderosa, além dos dois chifres.
Como proteção ele possui uma carapaça com extremamente dura e reflexiva. Se
tudo isso não fosse suficiente, ele regenera 1 ponto de vida por rodada, sendo
que para que sua morte seja alcançada, ele deve ser reduzido à -30 pontos de
vida.
Monster Manual II (1983) |
A sorte é que esse monstro não
ficava ativo o tempo todo. Ele andaria destruindo tudo e se alimentado por um
período de uma a duas semanas, então procuraria um local subterrâneo para
dormir entre 5 e 20 meses. Uma vez à cada década o tarrasque ficaria particularmente
ativo sem dormir por meses, mas logo depois dormindo por 4 a 6 anos. Nesta
primeira aparição do tarrasque em um suplemento não é dito se existem apenas um
ou vários.
Essa primeira aparição moldou o
que seria representativo do visual do tarrasque nas décadas seguintes - um
gigantesco lagarto, com carapaça, chifres, cauda reptiliana, garras e uma
carapaça como de tartaruga. Nesta primeira aparição (e na segunda) ele era
quase uma versão Godzila do tarrasque, mais ereto. Nas edições seguintes ele teve
o visual mais próximo de um enorme dinossauro, com membros inferiores arqueados
mais próximos de um grande reptil.
Quando chegamos à segunda
edição, no AD&D Monster Manual (1993 – uma reimpressão
do Monstrous Compendium Volume Two, de 1989), temos uma primeira e sutil
mudança em seu texto. Ele passa a ser declarado como uma criatura única: “O legendário e único tarrasque é o mais
temido monstro originário do plano Material Primário. Bípede escamoso, tem dois
chifres, uma cauda comprida e uma carapaça refletora.” A questão dele ser
um elemento único no cenário é principalmente importante para enredo. Para
regras ele mantém todas as características mostradas anteriormente, com
pequenas mudanças nos períodos de atividade e descanso agora decididos com
dados (passando para 5d4 meses de torpor e 4d4 anos de torpor depois do maior
período de atividade). Na sua mecânica ele ganha algumas coisas novas: a
possibilidade de atropelar, dano dobrado com os chifres e a capacidade de
atacar e se mover no mesmo turno.
AD&D Monster Manual (1993) |
Antes de chegarmos à edição
seguinte, tivemos o acréscimo de uma interessante informação. No Practical Planetology (1991), dentro do
cenário Spelljammer, é informado que exite um planeta chamado Falx repleto de
tarrasques. Neste planeta em especial os monstros são relativamente tranquilos,
mas quando eles são tirados de seu ambiente natural eles se tornam extremamente
violentos. “Enquanto o tarrasque
verdadeiro tem a reputação de ser único, existem várias centenas desses enormes
monstros espalhados pela superfície de Falx. Alguns sábios afirmam que este
mundo é o lar do tarrasque, e que aquela criatura única é realmente um único
espécime transportado através do espaço por algum motivo. Outros sábios apontam
que pode haver diferenças sutis entre os tarrasques de Falx e a versão
terrestre. O espaço é grande, afinal de contas, e a semelhança pode ser apenas
coincidência.”
Na terceira edição de D&D
temos o início da era d20. Com ela o D&D Monster
Manual (2000) volta com o tarrasque dentro das novas regras do
sistema. Algumas mudanças foram implementadas. Para matá-lo é necessário não só
reduzir seus pontos de vida à níveis negativos, mas também aplicar a magia
Desejo ou Milagre. O período de atividade reduziu para 1d3 dias acordado com
intervalos de 6d4 meses adormecido, onde à cada década ele tem uma atividade
prolongada de 1d2 semanas, hibernando depois por 4d6 anos, se não for
perturbado.
Monster Manual (2000) |
Todas as outras características permanecem as mesmas apenas sendo
adequadas ao novo sistema de regras. Uma coisa interessante que foi colocada
literalmente é que o tarrasque não fala. Nessa edição é a primeira vez que o
tarrasque não é colocado como a criatura mais poderosa, atrás dos mais antigos
dragões. Uma novidade que tivemos nessa edição foi a apresentação clara das
dimensões da criatura. Até aqui ele era referenciada como tendo 15m. Agora foi
informado que ele possui 15m de altura (50 pés), 21m de comprimento (70 pés) e
130 toneladas.
Ainda dentro da terceira edição
houve um artigo antológico lançado na Dragon #359
(setembro de 2007), autoria de Ed Greenwood e Johnatan M. Richards. Com o
sugestivo título The Ecology of Tarrasque, os autores vão à fundo na analise
desta terrível criatura, ampliando em muito as informações do Monster Manual. É
explicado que a dificuldade de encontrar o seu local de hibernação é devido ao
fato dele se ‘mesclar’ à alguma pedra gigantesca enterrada, habilidade chamada
de ‘arnstone’ ou “ser um com a pedra”. Dependendo do quanto ele comeu e da
qualidade da pedra com a qual ele se fundiu, ele poderia hibernar por até 50
anos.
Entre outras coisas é apontado
também que seus três estômagos podem digerir até mesmo artefatos mágicos ou
matéria não-viva. Ou seja, para o Tarrasque, tudo o que estiver no chão não é
ameaça, mas sim comida. Além disso podemos dizer que a informação que mais mexeu
com os rpgistas foi uma lista muito precisa da enorme quantidade de riquezas que
poderiam angariar matando um tarrasque, uma verdadeira fortuna em peças
preciosas e materiais mágicos. Como curiosidade temos no artigo a ficha de um
Advanced Tarrasque, plots para uso dos tarrasques em seus jogos e uma tabela
com CD para teste de Conhecimento (arcano) Tarrasque.
Dentro da licença de uso das
regras do sistema d20 tivemos o lançamento de Pathfinder RPG que logicamente
tinha sua versão de tarrasque lançado no Pathfinder RPG
Bestiary. Ele mantém todas as principais características – os vários
tipos de ataque, a regeneração, a carapaça reflexiva, além de tudo mais,
podendo inclusive voltar da morte (no caso de algum efeito que lhe cause morte
instantânea) apenas 3 rodadas após. É dito claramente também que não são
conhecidos meios para matá-lo. Aqui temos duas sutis diferenças. Ele não é
colocado como sendo um ser único, embora continue com a aura de ser um dos mais
perigosos monstros dentre todos. Além disso, é dito que ele tem alguma
inteligência, tanta que seria capaz de entender algumas palavras no idioma aklo
(embora não fale) e capaz de focar ataques em alvos com maior capacidade de
ameaçá-lo.
No D&D
Monster Manual 4ª edition (2008) tivemos uma mudança significativa. Para
matá-lo não é necessário mais a aplicação das magias Desejo ou Milagre, mas sim
mandá-lo para outro plano: “O tarrasque
está inexoravelmente ligado ao mundo, de tal forma que o máximo que se pode
esperar é colocar a criatura em repouso, forçando-a a dormir dentro do núcleo
do mundo por muitos anos antes que ela se agite novamente. No entanto, textos
antigos postulam que o tarrasque poderia ser destruído permanentemente se de
alguma forma fosse persuadido ou levado a deixar o mundo.” Não temos
indicação de tempo de hibernação do tarrasque nessa edição. Há uma ligação de
seu sono com a impossibilidade de matá-lo chamado de Sono Eterno (Eternal SlumberI), onde o tarrasque
entra em hibernação no solo quando seus pontos de vida chegam à zero.
Para o D&D
Monster Manual 5ª edition (2014), tivemos mais algumas mudanças. Ele
permaneceu sem a regeneração e sem qualquer detalhe específico para ser morto.
Mas seu tempo de hibernação aumentou, sendo indeterminado e ligado mais ao
enredo da campanha do que às regras: “O
potencial destrutivo de um tarrasque é tão amplo que algumas culturas
incorporaram o monstro em doutrinas religiosas, considerando suas aparições
esporádicas na história como justiça ou ira divina. As lendas contam que o
tarrasque dorme em seu covil secreto abaixo da terra, permanecendo em um estado
inativo por décadas ou séculos. Quando ele acorda em resposta a algum chamado
cósmico inescrutável, ele emerge das profundezas para obliterar tudo em seu
caminho.”
Monster Manual (2014) |
Finalizando
O Tarrasque é uma criatura
icônica do imaginário do RPG de fantasia medieval. Algoz de incontáveis grupos
de aventureiros e paixão de muito mestres sádicos, ele é um elemento que pode
ser usado em qualquer campanha como um tempero à mais e não como uma
penalidade. É incrivelmente simplista usar um tarrasque como elemento para
testar a resistência de um grupo de jogadores. A arte está em usá-lo como
elemento para enriquecer uma aventura e gerar dezenas de plots secundários para
uma longa campanha.
Como um professor meu dizia nos
primeiros dias do curso de história - “nada se cria, tudo se copia”. E não há
mal nenhum nisso. Tudo vem de uma inspiração impulsionada por algo que vimos,
ouvimos ou lemos de coisas que já existem. Essa é a beleza. E com o RPG não
seria diferente. A obra de Tolkien veio de um amálgama de influências
religiosas, místicas, culturais e históricas. O RPG bebeu das obras de Tolkien
e de tantos outros autores, assim como de um amálgama de outras influências. E
assim sucessivamente.
Acho interessante e importante
fazer essas análises e mapeamentos cronológicos para conhecermos e entendermos
os ‘por quês’ das opções e escolhas de nossos sistemas preferidos. É uma forma
de irmos além e termos a possibilidade de criar coisas novas. Esse tipo de
conhecimento também nos mostra o quanto podemos criar a partir de elementos que
já estão à nossa volta.
Bons jogos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário