Bubblegumshoe:
excelente
RPG de investigação
adolescente
Ter um RPG com foco em
investigação é tudo o que me agrada e quando li a primeira vez Bubblegumshoe
foi um colírio para os olhos. Lançado em 2016 pela Evil Hat Productions (mesma
de Fate e Blades in the Dark), foi criado por Emily Care Boss, Kenneth Hite e
Lisa Steele. Ele entrou no meu radar após ganhar a medalha de ouro no ENnie de
2017 na categoria Best Family Game.
Vamos começar com um conceito de poucas
palavras – Bebblegumshoe é um RPG de mistério com foco em investigação
adolescente. Mas não pare de ler aqui. Continue, pois verá que ele é muito mais
do que isso.
Sistema
Bubblegumshoe (vamos chamar de
BGS para encurtar) usa o Gunshoe System, criação de Robin D. Laws e pertencente
à Pelgrane Press para embalar as suas aventuras. Com foco nos personagens e na
investigação em si, o sistema não é simplificado, mas reduzido e adequado à um
gênero de aventura.
Todo o sistema para BGS se
reduz à rolagens de 1d6 contra uma dificuldade. Fora isso tudo se resume em
como utilizar seus conhecimentos e relacionamentos. A ficha do personagem (chamado
de Sleuth) é composta por quatro áreas – Acadêmica, Interpessoal, Geral e
Relacionamento. As três primeiras áreas são subdivididas em vários itens que viabilizam
sua investigação e onde o jogador poderá distribuir 40 pontos. Por exemplo, em
Acadêmico temos história da cidade, procurar e fotografia de um total de oito
possíveis; e em Interpessoal temos flertar, intimidar e zombar, dentre os onze
possíveis. Em habilidades Gerais temos atletismo, luta e intuição, dentre as
doze possíveis. Elas representam ações de uso ativo e por isso mesmo precisam
normalmente de teste, tais como computação ou furtividade. É sugerido que todos
os itens tenham sido escolhidos pelo conjunto de todos os jogadores. Os pontos distribuídos
nesses itens servem para ampliar o conhecimento sobre pistas descobertas.
A área Relacionamento recebe
pontos para serem gastos conforme a quantidade de jogadores no grupo. Esses
relacionamentos são vínculos dos personagens como NPCs e com os outros protagonistas.
Pelos menos 5 desses pontos devem ser gastos no início do jogo e o restante
pode ser usado ao longo da aventura. Os relacionamentos se dividem em três
tipos onde você é o foco. Eles representam as pessoas odeiam o personagem, gostam
do personagem ou amam o personagem. Refinados
com estatísticas, esses relacionamentos são o que definem a forma de interação
mais fina do personagem com o cenário e a forma como esse cenário poderá lhe
ajudar (com habilidades ou conhecimentos desses personagens, por exemplo) ou
atrapalhar ao longo da aventura.
Para dar mais tempero à ficha
você ainda escolhe uma Classe Social (que determina o senso comum do cenário e
da escola em relação ao personagem), um Clique (que determina sua posição
dentro do status quo da escola) e um Clube (determina seus interesses ou
justificativa de conhecimentos).
Por que me demorei nessas
informações? Porque essa é toda a ficha do personagem e tudo o que ele precisa
no jogo. Exato, apenas isso. O sistema Gumshoe não é baseado em jogadas
repetidas de dados para justificar sucessos de ações e reações. Se o personagem
possui a habilidade apropriada bastará dizer ao mestre ‘como’ ele a está usando
e caberá ao mestre construir a partir daí o quanto ele descobre ou encontra
(conforme a quantidade de pontos gastos naquela habilidade). Assim pistas não
são perdidas por uma rolagem ruim.
Os Sleuths
querem descobrir quem viu pela última vez que Larissa saindo da festa de
Kaitlyn, no sábado à noite.
ELIZABETH:
Eu entro no corredor entre as aulas e vejo se as líderes de torcida estão
fofocando lá. Eu tenho Fofoca 2.
MESTRE: Com
certeza, Érica está contando à todos da turma 411 sobre festa. Você a ouve contar
que foi quase uma orgia épica: com pessoas se agarrando em todos os cantos.
MESTRE COMO
ÉRICA: “Mas Larissa ficou de fora, porque ela teve uma briga séria com Cameron
e saiu da festa por volta das 11.”
Tudo acaba sempre sendo achado
ou descoberto, mas como no próprio livro diz há uma grande diferença entre achar uma pista importante e interpretar
essa pista.
Onde jogadas de dados são
necessárias, como as ações de habilidades gerais, temos a rolagem de 1d6 somado
ao valor da habilidade aplicável e procura-se um resultado igual ou maior à uma
dificuldade determinada pelo mestre (de 2 a 8). Se for uma disputa entre
personagens há uma pura disputa de dados (1d6 + habilidade) de cada personagem rolando
contra a dificuldade onde quem falhar primeiro perde.
O BGS não está focado em
combates físicos, mas sim nos combates sociais, palco perfeito para
adolescentes em época escolar. Com isso o elemento Legal (Cool, que substituiu pontos
de vida e estabilidade de do sistema Gunshoe original) na ficha acaba ganhando
muita importância. No começo do jogo cada personagem tem 4 pontos neste
elemento e ele vai aumentando ou diminuindo conforme as formas de relação do
personagem com seu meio e influenciando positiva ou negativamente nas chances
em disputas sociais e investigações. Com isso o jogo torna-se não letal, mas
ainda assim extremamente perigoso. Ao invés de morte o personagem pode ser
humilhado perante seus colegas, ter fofocas espalhadas sobre ele na hora do
almoço ou tantas práticas que conhecemos bem de um ambiente escolar tóxico.
O jogo nada mais é do que a
materialização dos relacionamentos dentro do ambiente do personagem, enquanto
ele tenta resolver mistérios. Em resumo, os relacionamentos fornecerão recursos
para a aventura, além de que eles geram elementos potenciais para mistérios e
problemas. Não pense em mistérios simples típicos de animações do Scooby Doo,
mas sim problemas complicados e tocantes. De qualquer forma os relacionamentos facilitam
muito a vida do mestre, já que ele recebe de bandeja todo o escopo de NPCs de
que precisa para preencher a aventura.
Cenário
Se toda a estruturação da
mecânica de jogo é leve e simples, o trabalho do mestre fica ainda mais
facilitado com toda a segunda parte do livro, onde estão às informações para
criação do cenário. Primeiramente o livro se preocupa habilmente em descrever
como criar, trabalhar e desenvolver NPCs próprios para uma aventura neste
ambiente. Com sugestões e exemplos claros temos facilidade em mapear nossos
personagens de apoio conforme o background, ficha e relacionamentos de cada
personagem.
Logo depois passamos para a
parte física do cenário. A cidade onde se passam as aventuras chama-se
Drewsbury. São descritos todos os locais importantes para personagens desse
tipo com informações diretas e pertinentes de como jovens investigadores reagem
e são vistos nesses lugares. São descritos locais perigosos, zonas seguras e áreas
de interesse. Todas as explicações rápidas, simples e sem rodeios. Tudo é
finalizado com dicas de como criar locais para a cidade ou mesmo a sua cidade.
Você acha que é tudo. O melhor ainda
está por vir no livro. Depois de tudo isso temos o capítulo Drift. Aqui temos
quarenta páginas com cenários alternativos onde o gênero de adolescentes investigadores
podem ser usados. Cada um dos cenários vem com sugestões de habilidades pertinentes
e teste específicos para aquele cenário.
Bellairs
Falls é um cenário de magia e horror retirado diretamente dos romances de John
Bellairs (“O Mistério do relógio na Parede” e “O Vulto na escuridão” dentre
outros) onde a sanidade dos investigadores é testada e medida conforme seu elemento
Cool vai caindo.
Danvers
High é o cenário típico para quem é fã de Smallville e das investigações de
Cloe Sulivan, agregando ao jogo um toque de superpoderes com regras retiradas
de Mutant City Blues (que também usa o sistema Gunshoe).
Dymond
City é um cenário que se passa em um futuro distópico onde o grupo de
investigadores enfrenta um poder opressor e corrupt. Ele usa as regras do Night’s
Black Agent (que também usa o sistema Gunshoe) para o caso de confrontos com a polícia.
Kimball
Middle School é um cenário (ou quase uma sandbox dentro da sandbox) para
personagens ainda mais novos, algo como uma escola primária onde os alunos fará
a invetsigação.
Kingsfield
Academy é o cenário onde o ambiente é uma escola preparatória de elite onde a
luta para o sucesso cobra seu preço e não vê limites.
Ruby
Hollow é o melhor exemplo de como uma aventura de Scooby Doo RPG poderia ser,
quando a investigação de um caso sobrenatural tem origens materiais.
Strange
Hill Scout 211 é semelhante ao cenário Kimball Middle, mas ao invés de uma
escolha, os personagens fazem parte de um grupo de escoteiros onde o foco se
divide entre ganhar medalhas de mérito e resolver mistérios.
Veronica
Base, Mars é o cenário futurista para investigação adolescente, quando os
personagens estão na primeira colônia humana em Marte, uma espécie de Drewsbury
à lá ficção científica.
Em resumo, temos como jogar em quase
todos os ambientes possíveis.
Por fim, algo que não poderia
deixar passar é o caráter inclusivo do jogo. Em vários momentos o livro afirma
da importância de vivenciarmos um mundo diversificado
“As
histórias têm mais opções se sua cidade é diversificada, misturada com relação à
classe, idade, habilidade, orientação sexual e origem étnica. Não é o paraíso,
especialmente em ficção criminal, a diversidade não significa que todos se dão
bem. Mas seus Sleuth e as pessoas que eles conhecem refletirão mais a
verdadeira diversidade da população do país (e do mundo). Parte de ser um
adolescente no mundo contemporâneo está chegando a um acordo e abraçando a
natureza global do nosso mundo. Fazer da cidade um rico tecido de diferenças
ajuda a capturar essa sensação, além de oferecer uma grande variedade de
material interessante para as histórias. Conheça as pessoas nesta cidade em
todas as suas diferenças e você encontrará problemas e situações que proporcionarão
um conjunto mais amplo de histórias que surgem da vida das pessoas.
A cidade é
provavelmente um lugar complexo com pessoas de todas as esferas da vida, com
toda a riqueza e complicações que traz. Crie comunidades e personagens negros,
brancos, latinos, sul-asiáticos, nativos americanos e asiáticos, com suas
próprias tensões e seus próprios problemas. Mostre como a vida e as comunidades
de todos se unem ou se desgastam. Faça com que os Sleuths encontrem personagens
gays e trans vivendo suas vidas. Crie Sleuths e relacionamentos queer e
fisicamente desafiados. Desde a sua criação, a ficção noir sempre destacou as
diferenças de classe. Apresente os ricos e pobres, suas diferentes opções e
diferentes demônios.
Nenhuma
dessa diversidade vem com julgamento ou pregação. A ficção noir sempre abraçou
uma atitude de “todos podem ser uma vítima ou um vilão”. Apresente uma imagem
viva do mundo, combinando o cinismo fervoroso e o otimismo adolescente. Os
Sleuths, fundamentalmente, querem ajudar os outros. Isso os torna heróis em
potencial - e os coloca em contato com uma ampla variedade de pessoas, todas
com seus próprios amores, sonhos e ansiedades.”
BGS trata de forma madura,
coerente e respeitosa a questão de gênero e raça. Primeiramente ele não age de
forma panfletária. Ele agrega o tema com naturalidade e fugindo de estereótipos,
sugerindo formas de usá-los em jogo para seus protagonistas, NPCs e inclusive estimulando
que os faça. Os quatro personagens de exemplo, na página 10 do livro, são Tyler
Lyncon (um americano negro filho de um arquiteto), Elyzabeth Soriano (latina bi
ou pan-sexual [à critério do jogador]), Amanda Barret (típica menina americana)
e Jessica Park (coreana-americana filha da legista da cidade). O livro
apresenta opções e forma de usar em jogo, os problemas que isso pode gerar para
o personagem frente à sociedade America e principalmente no ambiente escolar.
Em segundo, o livro não se limita
apenas em apresentar as opções e ‘politicamente’ não tomar posição. Ele se
posiciona. Nas regras e casos apresentam ações como bullying, principalmente racial
e de gênero, mostrando-o como negativos e passivos de conflito para os
personagens, que procuram o caminho da justiça e do certo. Ações machistas ou
sexistas são igualmente consideradas negativas. Não temos aqui o perigo do
senso comum, muito menos opções que possam fazer de nossos personagens aqueles
que praticam o bullying. Nossos personagens são heróis e heróis não fazem 'esse
tipo de coisa'. Por exemplo, nas sugestões de aventuras temos um rapaz
transgênero que é chantageado por valentões da escola que ameaçam divulgar fotos
suas revelando seu segredo ou uma aventura onde os personagens devem investigar
as ações do vice-diretor que deseja minar uma petição da Aliança LGBT ou
ainda uma aventura onde investigam o tratamento pejorativo à adolescentes
grávidas. Por outro lado podemos ter investigações sobre sumiços de pessoas na volta da danceteria local, ou os personagens investigando misteriosos sons vindos das proximidades do lago nas noites de lua cheia ou ainda estranhos roubos de bicicletas. Não importa, tudo isso é a luta dos heróis deste RPG.
Finalizando
O jogo é incrível, divertido e
inspirador. Por tudo o que mostrei no início facilmente podemos nos enganar achando
que o jogo é apenas para um público novato ou adolescente. Errado. Quando vamos
mais fundo percebemos que é um jogo que pode tornar-se denso e pesado se assim
desejarmos. As aventuras podem ser de uma pura investigação típica de Verônica
Mars, Riverdale ou Pretty Little Liars ou podem sim ser limites e inclusive
gatilhos para algumas pessoas. Mas nossos personagens estão lutando ativamente
contra tudo, inclusive contra esses abusos e gatilhos. Bubblegumshoe não fica
em cima do muro e coloca todos esses temas, gatilho (quando existentes na
aventura) ou não, como alvo de nossos protagonistas. Os heróis lutam contra isso e
não há margem para serem usados como elemento principal de 'personagens' tendenciosos. Mesmo que você não curta personagens adolescentes ou cenários
modernos e (aparentemente) lights, vale muito a experiência de algumas sessões
ou uma breve campanha de Bubblegumshoe.
2 comentários:
Gostei desse RPG, me interesso bastante por histórias investigativas, só uma dúvida ele só tem para adquirir no exterior ou tem algum site nacional?
Infelizmente ele só existe lá fora até o momento.
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