segunda-feira, 22 de abril de 2019

Bubblegumshoe: excelente RPG de investigação adolescente

Bubblegumshoe: excelente
RPG de investigação adolescente


Ter um RPG com foco em investigação é tudo o que me agrada e quando li a primeira vez Bubblegumshoe foi um colírio para os olhos. Lançado em 2016 pela Evil Hat Productions (mesma de Fate e Blades in the Dark), foi criado por Emily Care Boss, Kenneth Hite e Lisa Steele. Ele entrou no meu radar após ganhar a medalha de ouro no ENnie de 2017 na categoria Best Family Game.

Vamos começar com um conceito de poucas palavras – Bebblegumshoe é um RPG de mistério com foco em investigação adolescente. Mas não pare de ler aqui. Continue, pois verá que ele é muito mais do que isso.

Sistema
Bubblegumshoe (vamos chamar de BGS para encurtar) usa o Gunshoe System, criação de Robin D. Laws e pertencente à Pelgrane Press para embalar as suas aventuras. Com foco nos personagens e na investigação em si, o sistema não é simplificado, mas reduzido e adequado à um gênero de aventura.

Todo o sistema para BGS se reduz à rolagens de 1d6 contra uma dificuldade. Fora isso tudo se resume em como utilizar seus conhecimentos e relacionamentos. A ficha do personagem (chamado de Sleuth) é composta por quatro áreas – Acadêmica, Interpessoal, Geral e Relacionamento. As três primeiras áreas são subdivididas em vários itens que viabilizam sua investigação e onde o jogador poderá distribuir 40 pontos. Por exemplo, em Acadêmico temos história da cidade, procurar e fotografia de um total de oito possíveis; e em Interpessoal temos flertar, intimidar e zombar, dentre os onze possíveis. Em habilidades Gerais temos atletismo, luta e intuição, dentre as doze possíveis. Elas representam ações de uso ativo e por isso mesmo precisam normalmente de teste, tais como computação ou furtividade. É sugerido que todos os itens tenham sido escolhidos pelo conjunto de todos os jogadores. Os pontos distribuídos nesses itens servem para ampliar o conhecimento sobre pistas descobertas.



A área Relacionamento recebe pontos para serem gastos conforme a quantidade de jogadores no grupo. Esses relacionamentos são vínculos dos personagens como NPCs e com os outros protagonistas. Pelos menos 5 desses pontos devem ser gastos no início do jogo e o restante pode ser usado ao longo da aventura. Os relacionamentos se dividem em três tipos onde você é o foco. Eles representam as pessoas odeiam o personagem, gostam do personagem ou amam o personagem. Refinados com estatísticas, esses relacionamentos são o que definem a forma de interação mais fina do personagem com o cenário e a forma como esse cenário poderá lhe ajudar (com habilidades ou conhecimentos desses personagens, por exemplo) ou atrapalhar ao longo da aventura.

Para dar mais tempero à ficha você ainda escolhe uma Classe Social (que determina o senso comum do cenário e da escola em relação ao personagem), um Clique (que determina sua posição dentro do status quo da escola) e um Clube (determina seus interesses ou justificativa de conhecimentos).

Por que me demorei nessas informações? Porque essa é toda a ficha do personagem e tudo o que ele precisa no jogo. Exato, apenas isso. O sistema Gumshoe não é baseado em jogadas repetidas de dados para justificar sucessos de ações e reações. Se o personagem possui a habilidade apropriada bastará dizer ao mestre ‘como’ ele a está usando e caberá ao mestre construir a partir daí o quanto ele descobre ou encontra (conforme a quantidade de pontos gastos naquela habilidade). Assim pistas não são perdidas por uma rolagem ruim.

Os Sleuths querem descobrir quem viu pela última vez que Larissa saindo da festa de Kaitlyn, no sábado à noite.

ELIZABETH: Eu entro no corredor entre as aulas e vejo se as líderes de torcida estão fofocando lá. Eu tenho Fofoca 2.

MESTRE: Com certeza, Érica está contando à todos da turma 411 sobre festa. Você a ouve contar que foi quase uma orgia épica: com pessoas se agarrando em todos os cantos.

MESTRE COMO ÉRICA: “Mas Larissa ficou de fora, porque ela teve uma briga séria com Cameron e saiu da festa por volta das 11.”

Tudo acaba sempre sendo achado ou descoberto, mas como no próprio livro diz há uma grande diferença entre achar uma pista importante e interpretar essa pista.


Onde jogadas de dados são necessárias, como as ações de habilidades gerais, temos a rolagem de 1d6 somado ao valor da habilidade aplicável e procura-se um resultado igual ou maior à uma dificuldade determinada pelo mestre (de 2 a 8). Se for uma disputa entre personagens há uma pura disputa de dados (1d6 + habilidade) de cada personagem rolando contra a dificuldade onde quem falhar primeiro perde.

O BGS não está focado em combates físicos, mas sim nos combates sociais, palco perfeito para adolescentes em época escolar. Com isso o elemento Legal (Cool, que substituiu pontos de vida e estabilidade de do sistema Gunshoe original) na ficha acaba ganhando muita importância. No começo do jogo cada personagem tem 4 pontos neste elemento e ele vai aumentando ou diminuindo conforme as formas de relação do personagem com seu meio e influenciando positiva ou negativamente nas chances em disputas sociais e investigações. Com isso o jogo torna-se não letal, mas ainda assim extremamente perigoso. Ao invés de morte o personagem pode ser humilhado perante seus colegas, ter fofocas espalhadas sobre ele na hora do almoço ou tantas práticas que conhecemos bem de um ambiente escolar tóxico.

O jogo nada mais é do que a materialização dos relacionamentos dentro do ambiente do personagem, enquanto ele tenta resolver mistérios. Em resumo, os relacionamentos fornecerão recursos para a aventura, além de que eles geram elementos potenciais para mistérios e problemas. Não pense em mistérios simples típicos de animações do Scooby Doo, mas sim problemas complicados e tocantes. De qualquer forma os relacionamentos facilitam muito a vida do mestre, já que ele recebe de bandeja todo o escopo de NPCs de que precisa para preencher a aventura.

Cenário
Se toda a estruturação da mecânica de jogo é leve e simples, o trabalho do mestre fica ainda mais facilitado com toda a segunda parte do livro, onde estão às informações para criação do cenário. Primeiramente o livro se preocupa habilmente em descrever como criar, trabalhar e desenvolver NPCs próprios para uma aventura neste ambiente. Com sugestões e exemplos claros temos facilidade em mapear nossos personagens de apoio conforme o background, ficha e relacionamentos de cada personagem.

Logo depois passamos para a parte física do cenário. A cidade onde se passam as aventuras chama-se Drewsbury. São descritos todos os locais importantes para personagens desse tipo com informações diretas e pertinentes de como jovens investigadores reagem e são vistos nesses lugares. São descritos locais perigosos, zonas seguras e áreas de interesse. Todas as explicações rápidas, simples e sem rodeios. Tudo é finalizado com dicas de como criar locais para a cidade ou mesmo a sua cidade.


Você acha que é tudo. O melhor ainda está por vir no livro. Depois de tudo isso temos o capítulo Drift. Aqui temos quarenta páginas com cenários alternativos onde o gênero de adolescentes investigadores podem ser usados. Cada um dos cenários vem com sugestões de habilidades pertinentes e teste específicos para aquele cenário.

Bellairs Falls é um cenário de magia e horror retirado diretamente dos romances de John Bellairs (“O Mistério do relógio na Parede” e “O Vulto na escuridão” dentre outros) onde a sanidade dos investigadores é testada e medida conforme seu elemento Cool vai caindo.

Danvers High é o cenário típico para quem é fã de Smallville e das investigações de Cloe Sulivan, agregando ao jogo um toque de superpoderes com regras retiradas de Mutant City Blues (que também usa o sistema Gunshoe).

Dymond City é um cenário que se passa em um futuro distópico onde o grupo de investigadores enfrenta um poder opressor e corrupt. Ele usa as regras do Night’s Black Agent (que também usa o sistema Gunshoe) para o caso de confrontos com a polícia.

Kimball Middle School é um cenário (ou quase uma sandbox dentro da sandbox) para personagens ainda mais novos, algo como uma escola primária onde os alunos fará a invetsigação.

Kingsfield Academy é o cenário onde o ambiente é uma escola preparatória de elite onde a luta para o sucesso cobra seu preço e não vê limites.

Ruby Hollow é o melhor exemplo de como uma aventura de Scooby Doo RPG poderia ser, quando a investigação de um caso sobrenatural tem origens materiais.

Strange Hill Scout 211 é semelhante ao cenário Kimball Middle, mas ao invés de uma escolha, os personagens fazem parte de um grupo de escoteiros onde o foco se divide entre ganhar medalhas de mérito e resolver mistérios.

Veronica Base, Mars é o cenário futurista para investigação adolescente, quando os personagens estão na primeira colônia humana em Marte, uma espécie de Drewsbury à lá ficção científica.

Em resumo, temos como jogar em quase todos os ambientes possíveis.

Por fim, algo que não poderia deixar passar é o caráter inclusivo do jogo. Em vários momentos o livro afirma da importância de vivenciarmos um mundo diversificado

As histórias têm mais opções se sua cidade é diversificada, misturada com relação à classe, idade, habilidade, orientação sexual e origem étnica. Não é o paraíso, especialmente em ficção criminal, a diversidade não significa que todos se dão bem. Mas seus Sleuth e as pessoas que eles conhecem refletirão mais a verdadeira diversidade da população do país (e do mundo). Parte de ser um adolescente no mundo contemporâneo está chegando a um acordo e abraçando a natureza global do nosso mundo. Fazer da cidade um rico tecido de diferenças ajuda a capturar essa sensação, além de oferecer uma grande variedade de material interessante para as histórias. Conheça as pessoas nesta cidade em todas as suas diferenças e você encontrará problemas e situações que proporcionarão um conjunto mais amplo de histórias que surgem da vida das pessoas.

A cidade é provavelmente um lugar complexo com pessoas de todas as esferas da vida, com toda a riqueza e complicações que traz. Crie comunidades e personagens negros, brancos, latinos, sul-asiáticos, nativos americanos e asiáticos, com suas próprias tensões e seus próprios problemas. Mostre como a vida e as comunidades de todos se unem ou se desgastam. Faça com que os Sleuths encontrem personagens gays e trans vivendo suas vidas. Crie Sleuths e relacionamentos queer e fisicamente desafiados. Desde a sua criação, a ficção noir sempre destacou as diferenças de classe. Apresente os ricos e pobres, suas diferentes opções e diferentes demônios.

Nenhuma dessa diversidade vem com julgamento ou pregação. A ficção noir sempre abraçou uma atitude de “todos podem ser uma vítima ou um vilão”. Apresente uma imagem viva do mundo, combinando o cinismo fervoroso e o otimismo adolescente. Os Sleuths, fundamentalmente, querem ajudar os outros. Isso os torna heróis em potencial - e os coloca em contato com uma ampla variedade de pessoas, todas com seus próprios amores, sonhos e ansiedades.


BGS trata de forma madura, coerente e respeitosa a questão de gênero e raça. Primeiramente ele não age de forma panfletária. Ele agrega o tema com naturalidade e fugindo de estereótipos, sugerindo formas de usá-los em jogo para seus protagonistas, NPCs e inclusive estimulando que os faça. Os quatro personagens de exemplo, na página 10 do livro, são Tyler Lyncon (um americano negro filho de um arquiteto), Elyzabeth Soriano (latina bi ou pan-sexual [à critério do jogador]), Amanda Barret (típica menina americana) e Jessica Park (coreana-americana filha da legista da cidade). O livro apresenta opções e forma de usar em jogo, os problemas que isso pode gerar para o personagem frente à sociedade America e principalmente no ambiente escolar.

Em segundo, o livro não se limita apenas em apresentar as opções e ‘politicamente’ não tomar posição. Ele se posiciona. Nas regras e casos apresentam ações como bullying, principalmente racial e de gênero, mostrando-o como negativos e passivos de conflito para os personagens, que procuram o caminho da justiça e do certo. Ações machistas ou sexistas são igualmente consideradas negativas. Não temos aqui o perigo do senso comum, muito menos opções que possam fazer de nossos personagens aqueles que praticam o bullying. Nossos personagens são heróis e heróis não fazem 'esse tipo de coisa'. Por exemplo, nas sugestões de aventuras temos um rapaz transgênero que é chantageado por valentões da escola que ameaçam divulgar fotos suas revelando seu segredo ou uma aventura onde os personagens devem investigar as ações do vice-diretor que deseja minar uma petição da Aliança LGBT ou ainda uma aventura onde investigam o tratamento pejorativo à adolescentes grávidas. Por outro lado podemos ter investigações sobre sumiços de pessoas na volta da danceteria local, ou os personagens investigando misteriosos sons vindos das proximidades do lago nas noites de lua cheia ou ainda estranhos roubos de bicicletas. Não importa, tudo isso é a luta dos heróis deste RPG.

Finalizando
O jogo é incrível, divertido e inspirador. Por tudo o que mostrei no início facilmente podemos nos enganar achando que o jogo é apenas para um público novato ou adolescente. Errado. Quando vamos mais fundo percebemos que é um jogo que pode tornar-se denso e pesado se assim desejarmos. As aventuras podem ser de uma pura investigação típica de Verônica Mars, Riverdale ou Pretty Little Liars ou podem sim ser limites e inclusive gatilhos para algumas pessoas. Mas nossos personagens estão lutando ativamente contra tudo, inclusive contra esses abusos e gatilhos. Bubblegumshoe não fica em cima do muro e coloca todos esses temas, gatilho (quando existentes na aventura) ou não, como alvo de nossos protagonistas. Os heróis lutam contra isso e não há margem para serem usados como elemento principal de 'personagens' tendenciosos. Mesmo que você não curta personagens adolescentes ou cenários modernos e (aparentemente) lights, vale muito a experiência de algumas sessões ou uma breve campanha de Bubblegumshoe.


2 comentários:

R disse...

Gostei desse RPG, me interesso bastante por histórias investigativas, só uma dúvida ele só tem para adquirir no exterior ou tem algum site nacional?

João Brasil disse...

Infelizmente ele só existe lá fora até o momento.