Resenha
de Kids on Bikes
Essa era uma resenha que eu já
queria ter feito à mais tempo, mas nunca é tarde. Agora, com Kids on Bikes, concorrendo na categoria
Best Family Games/Product no ENnies Awards 2019, temos o momento perfeito para
falar dele e de outros RPGs.
O período desde 2017 tem sido curioso.
Strager Things e Tales from de Loop nos lembraram o quanto os anos oitenta e
noventa tinham de interessante, misterioso e aventuresco. Fosse baseado em
ficção ou em puro medo de uma épica que orbitava entre a guerra fria real e
episódios de UFO e sessões de cinema com ET, fomos revisitados por telefones
com fio, edições de AD&D e revistas MAD (descanse em paz MAD). O RPG, como reflexo desse
imaginário, tende a reproduzir mais e mais, tal qual como uma onda que se
propaga sempre aumentando sua altura, elementos que estão no gosto dos
jogadores. Kids on the Bikes é um desses reflexos diretos.
Criação de Jon Gilmour e Doug
Levandowski, com arte de Heather Vaughan e lançado pela Renegade Game Studios e
Hunters Books, ele chegou à nossas mãos em 2018 após um muito bem sucedido
financiamento coletivo.
O jogo se passa em um cenário
suburbano no último quarto do século XX onde assumimos papéis de personagens
(principalmente crianças e adolescentes) de uma cidade pequena, inseridos em um
mundo aparentemente comum, mas que transpira o sobrenatural e o extraordinário.
Os perigos e ameaças variam do bully ameaçador da escola ao garoto novato com
segredos malignos, do adulto cético ao ao policial incrédulo.
Cenário
O cenário propriamente dito,
como a grande maioria dos cenários para jogos narrativos, não é determinado em
minúcias. Ele gasta apenas um capítulo com três páginas para dar as diretrizes
para construção do cenário. A premissa é simples: “Kids on Bikes provavelmente deve ser definido em uma pequena cidade em
qualquer momento da história antes que todos tivessem uma câmera de vídeo no
bolso em todos os momentos. Deve ser provavelmente um local remoto o suficiente
para que o resto do mundo simplesmente não se importe com isso, mas próximo o
suficiente para que helicópteros pretos possam estar lá dentro horas.” E
aqui começa uma das coisas mais divertidas do jogo – a construção
compartilhada.
Os jogadores devem trabalhar
juntos para delimitação das características da cidade, normalmente em uma
sessão preliminar. Embora isso seja uma recomendação, não é uma regra e grupos
que se sintam inseguros podem deixar isso à cargo do mestre. Esta parte de
construção compartilhada é muito legal, pois trás os jogadores à compartilharem
um sentimento de pertencimento do cenário. As escolhas durante esse processo
criativo colaborativo passam por tudo o que tem relação com a cidade, desde o
tom da cidade, época específica e outros elementos importantes. City of Mist
nos ensina muito sobre isso. Para ajudar nesse processo à uma série de oito
perguntas para nortear a conversa dos grupo.
Personagens
O que mais curto nesses jogos
narrativos que fogem do mainstrean é o foco na experiência que o jogo nos fará
vivenciar, principalmente esperando que os próprios jogadores se encarreguem de
criar problemas e limitações para seus personagens seja críveis e humanos. Para
quem nunca jogo este tipo de jogo pode ser um pouco impactante, mas realmente
será uma experiência interessante fugir de regras engessadas e normas baseadas
em cálculos numéricos.
A criação do personagem começa
com a escolha de um dos perfis dos playbooks. Esses perfis são estruturas
alinhavadas conforme características de um tipo de personagem que você poderá usar.
Eles tentam contemplar vários tipos existentes em um cenário como esse, desde uma
criança bully ou o cérebro nerd da escola, passando por um adolescente teorista
da conspiração e chegando à um adulto que é um pai super protetor. São inúmeras
variações com alternativas para as três idades (criança, adolescente e adulto),
permitindo que possa jogar com um mesmo tipo de personagem em diferentes idades.
Esses playbooks já vêm com a
definição de elementos próprios para cada perfil. Cada uma das seis estatísticas
possui diferentes designações de dados para uso conforme o perfil escolhido.
Usamos dados d4, d6, d8, d10, d12 e d20, cada um possibilitando uma maior ou
menor fragmentação de resultados, enquadrando-se em tipos de personagem. Por
exemplo, um personagem Funny Sidekick criança tem a estatística Luta ligada à
um d4, enquanto um personagem também criança com o perfil Bully tem a mesma
estatística Luta ligada à um d20. Outras informações são únicas e exclusivas
também, como “Aquilo em que você é Melhor” (que fornecem bônus ativos), as suas
“Falhas” (traços negativos de personalidade que permitem oportunidades de
interpretção) e as “Questões” (veremos adiante). A escolha de um perfil acaba
por determinar qual será a forma de proceder do seu personagem por toda a
aventura ou os tipos de ‘caminhos’ que ele pode seguir.
Isso parece muito
“direcionado”? Engano seu. Embora haja opções você é livre para trabalhá-las,
além de que, para mim, o cerne está em escolher seu Medo e sua Motivação. Esta
escolha, totalmente livre, é o que fará toda a diferença na condução de seu
personagem durante sua interpretação quando casados com os outros elementos.
Tudo isso determinado o
personagem é apresentado para os outros jogadores, onde realizamos as
‘Questões’. Cada ficha, conforme o playbook escolhido, possui duas questões que
deverão ser debatidas entre você e os outros jogadores, ajudando assim a
delinear o perfil exato do personagem conforme seu playbook. Lembre que todos
estão em uma mesma pequena cidade, todos se conhecem e se relacionam, assim, o
modo de ser de cada um foi, em alguma medida influenciado pelos outros. Por exemplo
o Funny Sidekick deverá responder “O que
você faz que sempre alivia o humor de seus amigos?” e “Quando estar no papel de “ajudante” o frustra?”, enquanto o Loner
Weirdo responderia “Por que você está
mais feliz cuidando de si mesmo?” e “Que
parte da vida de “cool kid” você gostaria de ter, só um pouquinho?” e o
Bully “O que motiva o seu bullying?”
e “Como você se sente quando magoa os
outros?”. O próprio jogador responderá conforme quiser as questões sobre
seu personagem, mas a interação com outros personagens/jogadores sempre é um
acréscimo interessante à construção, possibilitando imaginar situações entre os
personagens.
Mecânica
A mecânica é muito simples e
intuitiva, como a maioria dos jogos dessa natureza, prezando muito mais pelo
diálogo, bom senso e criatividade do que pela frieza de normas.
Cada personagem possui seis estatísticas:
Brains (inteligência), Brawn (força bruta), Fight (habilidade de luta), Flight
(velocidade e capacidade de fuga), Charm (aptidão social) e Grit (quão bem eles
podem suportar dor física ou emocional). Numa primeira olhada parece
igual, em essência, à tantos outros RPGs. Mas lembra, que falamos anteriormente
que cada uma dessas estatísticas possui um dado designado diferente conforme o
playbook? Isso permite que de forma fácil tenhamos diferenças estabelecidas
conforme o tipo personagem e a lógica de seu desenvolvimento. Assim, por mais
que um personagem com d4 em Fight ganhe bônus, ele nunca conseguirá, por melhor
que se saia, ter a mesma capacidade de sobrepujar um desafio de luta que um
personagem com d20 em Fight teria. Isso espelha muito bem que mesmo que um
personagem tente ou se esforce ao máximo e até mesmo consiga um bom resultado
em um desafio ou tarefa, o processo para chegar até ele terá um caminho
diferente e possibilitará uma interpretação diferente. Entenda melhor no
próximo parágrafo.
Os testes estatísticos são a
base de resolução dos desafios do jogo. Sempre que um jogador se depara com um
desafio, ele lança o dado condizente com a estatística apropriada para verificar
se ele tem sucesso em sua tarefa. Quanto mais difícil for uma tarefa, mais
alta deve ser a rolagem do dado para obter sucesso. Isso significa que os dados
com números mais altos têm uma chance melhor de obter jogadas difíceis mesmo
sem nenhum tipo de bônus. Lógico que isso não significa que um personagem
com uma estatística com um dado menor nunca terá sucesso em uma tarefa difícil.
Significa que algo que pode ser fácil para um tipo de personagem poderá ser
desafiador para outro. Lembram da cena final do clássico dos anos oitenta “Te
Pego lá Fora” (“Three O’Clock High”, 1987), quando o garoto nerd franzino Jerry
consegue derrubar o enorme bully Buddy com apenas um soco? É mais ou menos
isso. Mesmo assim, haverá situações em que ele não tem como conseguir, de forma
natural ou com um bônus qualquer, uma rolagem suficiente, pois o desafio será
muito grande.
Dependendo das
circunstâncias, testes de estatísticas são Ações Planejadas ou Decisões Instantâneas. Quando
planejado, os jogadores têm mais oportunidades à sua disposição, mas o fracasso
tem consequências mais consideravelmente terríveis. Quando os jogadores falham
em seu teste de estatísticas mesmo nos piores momentos isso não significa “ok,
amigo, você perdeu o jogo”. Estamos falando da experiência de um jogo
narrativo. Falhas levam à consequências negativas, mas essas consequências ou
percalços não levam ao fim do jogo, levam para outros caminhos da narrativa,
forçando os personagens à mudarem suas estratégias ou superarem esses novos
desafios.
Como tudo na vida, quando
falhamos aprendemos, e podemos usar esse aprendizado nas experiências futuras.
Na mecânica do jogo as falhas geram marcadores de adversidade que poderão ser
usados para melhorar jogadas futuras ou em outros tipos de bônus. Como próprio
livro esclarece: “Em segundo lugar, o
fracasso pode e deve empurrar a narrativa para frente. Um teste falho significa
que o que o personagem quer que aconteça não acontece - mas isso não significa
que o que acontece é ruim para a história”. Alguns RPGs mais tradicionais
lidam com falhas como uma marca negativa que cobra seu preço constantemente do
personagem até alguma ‘coisa’ seja feita. Em muitos desses jogos narrativos o
mote está na experiência e desenvolvimento do personagem como um e dele como
parte de um grupo. Nada melhor para espelhar isso do que o aprendizado que
esses marcadores representam.
Disputas são decididas com
simples paradas de dados onde o maior valor vence (lembra do que vimos
anteriormente sobre a diferença entre dados nas estatísticas?). Quem tiver o
maior valor, defesa (ou não fazer algo) ou ataque (fazer algo), vence o
combate. Conforme a falha ou vitória a ação negativa ou positiva será
interpretada conforme uma escala que indica como proceder, mas sempre
centralizado na narrativa do personagem, com anuência do mestre e (possivelmente)
com apoio dos outros jogadores.
Já combates possuem um detalhe à
mais. Como também uma disputa de rolagens entre personagem e NPC ou entre
personagens, a diferença de valores da vitória do combate concede controle narrativo, determinando o tipo
de narrativa que o vencedor poderá realizar e o tipo de efeito. Lembrem que
isso sempre ficará à critério da criatividade narrativa do jogador. A tabela
apresentada apenas designa algumas diretrizes com exemplos para servir como
norteador.
Por fim temos o que mais me
chamou a atenção em Kids on Bikes – o personagem poderoso. Lembram que eu já disse
que os jogadores interpretam personagens comuns, pessoas comuns da cidade. Mas
isso não significa que não temos a nossa Eleven. A diferença está em que esse
personagem não pertence à um jogador, mas à todos, sendo interpretado de fora
compartilhada. No início da sessão o mestre distribui algumas anotações com
características únicas desse personagem poderoso, chamadas de Aspectos (a
sugestão do livro é de dois cartões por jogador). Sempre que situações surgirem
em jogo relacionado à um daqueles aspectos, o jogador com aquele Aspecto ficará
encarregado da narração. Quando um aspecto se tornar relevante, ele pode ser
acionado, mesmo que por indicação de um jogador que não esteja com aquele
cartão, mas será narrado por quem o possui.
Simplesmente incrível.
Finalizando
Kids on Bikes é um sistema
narrativo com algumas peculiaridades que outros de seus pares não têm, com
aspectos próprios que procuram uma maior inserção dos jogadores no processo de
construção das cenas. Só isso já fará muitos dos fãs de jogos narrativos olharem
este título com outros olhos. Espere muita diversão, ação e drama de suas
sessões, tudo banhando com muita paranormalidade e homens de terno preto. Ele é
ideal para uma emulação de como personagens dentro de um espectro normal
participam de uma grande, desafiadora e, quem sabe, mortal aventura dentro de
sua própria vizinhança.
Com toda a certeza este não é
um jogo para quem curte combates decididos pelo bônus de uma flecha mágica roubada
do boss da última sessão enquanto todos percorrem as galerias repletas de
armadilhas de uma enorme dungeon... ufa... sem vírgulas. E não há problema,
pois não existe um RPG correto. Existem diferentes RPGs conforme a experiência
que o jogador ou grupo procuram. E é realmente isso, Kids on Bikes é, uma
experiência que proporcionará muita diversão para quem curte esse estilo de RPG
ou para quem tem uma mente aberta.
Mas eu acrescento. Experimente Kids
on Bikes. Nem que seja para uma experiência nova e de apenas algumas horas para
depois nunca mais repetir. Embora muitos não percebam (ou queriam não perceber),
temos cada vez mais acesso à uma enormidade de estilos diferentes de RPG, aqui
e lá fora. Blades in the Dark, Hora da Aventura RPG, Catcthulhu, MASKS, Tales
from the Loop, City of Mist, Arquivos Paranormais, Liminal, Monsterhearts, são
apenas alguns que estão por aí. Todos nós merecemos uma boa abertura de
horizontes experimentando algo novo de vez em quando.
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