#IHunt: The Tabletop
RPG
- direto, cru e
crítico -
Vamos
falar de jogos sensacionais e crítico? Então vamos falar de #IHunt: The Tabletop RPG. Criação de
Olivia Hill e Filamena Young, lançado pela Machine Age Productions e baseado no
sistema FATE, ele é um RPG diferenciado por toda sua tônica e temática. Ele
surgiu baseado na série de romances de Olivia Hill chamado de iHunt: Killing
Monsters in the Gig Economy.
O
RPG já começa de forma diferente e direta: “#iHunt
é um jogo de e para a comunidade LGBTQ+. Este é um jogo de e para pessoas
pobres. Este é um jogo para todas as pessoas que a sociedade deixa para
trás e deixa cair pelas beiradas. Escrevemos este jogo para nos vermos chutando
a bunda em um mundo em que a indústria de jogos em geral ainda é hostil à
diversidade, apesar de todas as alegações em contrário. Este não é um jogo
com uma barra lateral sobre como “você tem permissão para interpretar
personagens não binários de gênero”. Este é um jogo sobre pessoas
marginalizadas.”
Infelizmente
o tema LGBTQ+, assim como política ou economia no RPG e que também serão
abordados nele, ainda são alvos da ira de uma parcela considerável e
preconceituosa da sociedade. E não é por ser um produto para nerds e geeks (com
muitas aspas aqui) que haveria menos preconceito e hostilidade. É óbvio que uma
mensagem dessas logo na segunda página do livro pode parecer um fechar de
portas para quem não pertence à comunidade. Ledo engano. Uma mensagem dessas
está apenas apresentando o cartão de visitas do que todos poderão ler nas
páginas e nas entrelinhas que virão à frente. É uma forma de dizer “se isso te
incomoda, este não é um RPG para você... tchau!”. Mas ele é um RPG para todos,
para todos os que não se incomodam com isso, pois não há nada para se incomodar
com isso.
Você
pode jogar se não pertencer a um desses grupos marginalizados? Lógico. Mas
temos que ter claro que este é um jogo escrito com essas preocupações, sem
desculpas ou medida de palavras. Este é o nosso mundo e você é um dos
alvos centrais desse RPG ou pode ser um turista, ser educado e respeitoso, e
que vai se divertir com esse jogo e entender o que se passa com muitas das
pessoas que às vezes estão ao nosso lado e não percebemos ou insistimos em não
ver nada.
E
não para por aí. #iHunt é um jogo para bater na cara da realidade econômica e
política quando ele joga e compara a realidade vivida no mundo do cenário com a
realidade vivida por muitos de nós. A atmosfera de #iHunt é palpável e crua e
isso é fundamental tanto na criação do ambiente do jogo quanto no entendimento
do que está por trás desse ambiente e o quanto ele é baseado no real. Os temas
de #iHunt se interligam em um amálgama coerente e necessário. O verdadeiro
monstro aqui pode ser claramente indicado como a crueldade do capitalismo em
estágio avançado e, de certa forma, os monstros que enfrentamos neste RPG, vampiros,
lobisomens e demônios, são tão vítimas dele quanto qualquer outra pessoa.
Vejamos a seguir.
A Premissa
#iHunt é um RPG sobre o uso de
um aplicativo para conseguir contratos para matar monstros. Os jogadores
assumem o papel de personagens com problemas e conectados no uso de um aplicativo
chamado #iHunt. O aplicativo #iHunt permite que alguém publique um
trabalho de caça a monstros - tal como se chamasse um Uber assassino - então
os caçadores em potencial podem percorrer e encontrar trabalhos que sejam
convenientes, fáceis ou que apenas paguem muito bem. Depois de concluírem
o trabalho, tiram uma selfie com sua morte para comprovação de conclusão e recebe
sua recompensa.
Mas o diabo está nos
detalhes. Nem todos os trabalhos serão convenientes, poucos, se houver
algum o serão. Muitos terão sua definição como sendo fácil e com pagamento
alto, até que você leve em consideração coisas como contas médicas, subornos,
ferramentas e mais. Além disso, enquanto a caça a monstros é tecnicamente
legal, muitas das coisas que você precisa fazer durante a caçada não são. De
repente, sua “noite de trabalho fácil” está atingindo níveis de
complicação preocupantes.
Ele pretende ser uma crítica ao
capitalismo moderno – os mosntros são uma metáfora disso - e diferente de
outros RPGs, como Red Markets, ele é muito fundamentado na realidade. Há
um elemento de sátira aqui, mas o argumento de que um aplicativo criado para
matar pessoas que podem ou não ser monstros seria legitimado na mesma onda de
hype do Uber é real demais para ser ridículo.
OS jogadores não são “os
escolhidos”, eles não fazem isso por gostar da emoção ou pela fama. Embora
possa haver um garoto rico que pega um contrato do #iHunt por uma emoção
momentânea, a maioria dos caçadores são vítimas desesperadas do capitalismo de
estágio avançado (às vezes chamado de geração do milênio) que se voltaram para
o #iHunt por causa de dívidas com empréstimos estudantis, uma família com
problemas, filho para sustentar, contas médicas fora de controle, aluguel
atrasado ou todas as opções acima.
As motivações principais dos
personagens para fazer o que fazem disso como um trabalho perigoso e não confiável
é a necessidade de dinheiro, e fica claro em várias ocasiões que, se os
personagens pudessem parar de fazer esse shows bizarro no #iHunt, eles o fariam
imediatamente. O que mantém os personagens no ciclo de ‘apresentações’ de caça
a monstros não é uma noção Cyberpunk de ação, é simplesmente a pobreza que
existe para muitas realidades e por que se torna tão próximo da maioria de nós.
Quando você está tentando pagar contas médicas, alimentar uma criança, ou
apenas manter a energia de casa ligada, e está fazendo isso com um salário
típico, a entrada repentina de alguns milhares ou até mesmo algumas centenas de
dólares podem fazer uma diferença tremenda.
O conceito principal que é
reconhecido desde o início, e é deixado claro, é que mesmo que seja possível
jogar #iHunt como um jogo de caça aos monstros alegre e chocante, esse não é o
modo padrão ou sua intenção. O cenário implícito é uma conversa em torno
da pobreza, e os jogadores se relacionam com a representação da pobreza no jogo
ou ficam profundamente desconfortáveis com ela.
O Cenário
O
cenário padrão para o #iHunt é a cidade fictícia de San Jenaro, na Califórnia. A
cidade é apresentada de forma bem aberta e sem grandes detalhes, pois os
romances já trabalharam muito com a criação da ambientação dela, mas isso não
prejudica em nada quem não os leu. Há descrições genéricas e rápidas que
conseguem dar a tônica do ambiente – Gótico moderno, repleto de opulência
decadente e hiperrealista – e que podem ser adaptadas com muita facilidade pelos
mestres.
Se
juntarmos essa noção estética com a premissa do ‘nós contra eles’, onde o ‘nós’
são todos os que são marginalizados/necessitados e o ‘eles’ são aqueles que têm
os benefícios, teremos uma clara noção de cenário como muitos já vistos em
filmes e livros variados de realidades distópicas ou mesmo reais. Mas mais do
que um cenário é a segurança social (ou a falta dela) no cenário e as suas pessoas
que o tornam real. Vejamos isso com os personagens.
Os personagens
Pesando
em termos de jogo temos uma variedade entre os personagens em #iHunt, chamados
de Kinks.
- Evileenas:
que lutam com o conhecimento e contêm subculturas como Watcher, Arcanist e
Alchemist;
- Knights: que lutam literalmente e contêm
subgrupos como Operative, Hitter e Player;
- Phooeys: que lutam com a tecnologia e têm
grupos como Hackers, Drivers e Anarquistas;
- 66: que lutam com carisma e têm facções
como Rosto, Recortes e Agitadores.
Mas
em suma quem são esses personagens que precisam se valer de um aplicativo de
caça de monstros para sobreviver? As autoras estabelecem um perfil definido
para os personagens. Pode parecer um pouco estranho quando a maioria dos
sistemas de RPG preza pela customização máxima. Mas isso não serve para a
premissa apresentada desde o início do livro pelas autoras.
O
perfil do personagem caçador em #iHunt é:
-
21-35;
-
solteiro;
-
locatário;
-
com ensino médio;
-
com registro criminal de contravenção;
-
sem diploma universitário;
-
dívida de US $ 40 a 100 mil;
-
condições médicas crônicas;
-
trabalhando em período integral em outro lugar;
-
LGBTQ+
Não
é preciso que o personagem criado cubra todos esses itens. Eles são indicativos
que isolados ou juntos representam o público alvo para este RPG. No site da
editora a autora fala de forma bem clara e ponderada sobre a indicação de um
perfil para os personagens: “Uma
das primeiras coisas que você precisa fazer em um jogo é estabelecer as
normas. Diga ao leitor o que é "média" antes de quebrar o
molde. Em alguns jogos, os jogadores vão retratar jovens aventureiros
atrás de dragões. Em alguns jogos, eles são vampiros ingênuos subindo no
estrato social. No #iHunt, eles são adultos mais jovens que estão
lutando. No entanto, eu queria ser muito específico. Todas essas
coisas são possíveis ganchos na trama de uma história #iHunt. Considere
como eles podem complicar a vida de um personagem.”
Todos esses elementos são
condizentes com perfis de pessoas que estão à margem da normatização social
estabelecida. Segunda uma das autoras: “Então,
há algo a ser dito sobre lutas aqui. Mas deixe-me esclarecer perfeitamente
o que isso representa da perspectiva do design de jogos. Ele afirma
corajosamente que os heróis de nossa história tendem a ser pessoas
marginalizadas e sub-representadas nos jogos. Este é um jogo de pessoas
LGBTQ+ e é um jogo para pessoas LGBTQ+. Se você não é LGBTQ+, isso não
quer dizer que este não é um jogo para você. Mas é sem
desculpas sobre nós de várias maneiras, e se você não é LGBTQ +,
talvez considere usar isso como uma oportunidade de entrar em nosso lugar por
um tempo.”
Lendo até aqui e juntando tudo
percebemos como o sistema Fate e seus Aspectos se encaixam tão bem para o
andamento de #iHunt, mas vamos ver isso mais adiante.
Os Monstros
O jogo oferece um cenário, a
cidade de San Jenaro, no sul da Califórnia, e com ele vem vários tipos de
monstros, ou Clades. O jogo também oferece tudo o que você precisa para
criar seus próprios monstros. Além de Aspectos (veremos adiante), os
monstros são definidos por três extras: Recursos, Presents e
Banes. Recursos são "verdades" estruturais sobre um determinado
monstro, Presents são habilidades especiais que o monstro pode ter e Banes são
limitações sobrenaturais, como a fome de um vampiro por sangue ou
vulnerabilidade a uma estaca no coração. Tudo isso pode ser usado, no
estilo de compra pontual, para criar monstros a partir de conjuntos de
atualização que são dimensionados de acordo à uma 'classificação por
estrelas'. Sendo este um jogo sobre um aplicativo, a classificação por
estrelas é a dificuldade do trabalho dado no aplicativo e que se correlaciona
com a recompensa que você pode esperar receber.
A Mecânica
O
#iHunt é baseado no Fate Core, mas você não precisa de uma cópia das regras
independentes para começar a jogar. Não vou me demorar explicando como
funciona Fate, pois já fiz isso várias vezes em outras resenhas. É a mesma
lógica. O importante é salientar que esse é um sistema narrativo e cai como uma
luva para a premissa do #iHunt. E onde está a sinergia perfeita entre #iHunt e
Fate? Esta nos Aspectos.
Aspectos
são um dos elementos centrais de Fate. Eles são frases que descrevem o
personagem e/ou suas motivações. Esses aspectos podem ser canalizados/invocados
para conceder bônus ou usados contra você
pelo Mestre. De forma simplificada esses aspectos podem ser invocados pelo
jogador narrativamente justificando seu uso com a cena e gerando bônus.
Ora,
esse é um jogo centrado em vivências complicadas, difíceis e uma prática que os
personagens verdadeiramente se incomodam em ter. Aspectos serão o ponto central
da construção mais íntima desses personagens, interligando personagem e
realidade vivida e com certeza serão momentos incríveis dentro do andamento da
sessão. Alguns exemplos de aspectos ajudam muito a explicar como os personagens
podem funcionar em um jogo.
Há um mudança mecânica
interessante com relação ao uso de Fate para #iHunt – os Edges. A idéia do dado
Edge é que, em qualquer conflito, um lado tem “o limite” e, semelhante à
criação de aspectos, o lado que ganha ou começa com “o limite” tem um uso
gratuito dessa vantagem. O dado de Edge é um d6 padrão que substitui um dos
seus Dados típicos de Fate em uma rolagem de quatro dados. Isso significa
que, em vez de um dado que varia de -1 a +1, você tem um dado que varia de 1 a
6 ... isso faz uma diferença gigantesca nos resultados de um teste. Mecanicamente
muito legal para vantagem situacional e numericamente grande o suficiente para
que os jogadores possam tomar decisões estratégicas em torno dele.
Existem outras mudanças menos
significativas, como a lista de perícias que é completamente diferente, mas
isso não é uma mudança significativa para Fate. A nova lista de perícias é
totalmente apropriada ao tema do jogo e de fácil uso.
Final
Não tinha tido tão claro como
depois de começar a jogar RPGs narrativos o quanto me agrada jogar com
personagens que não são “os escolhidos” – aqueles que têm o dever te salvar à
todos pois eles e apenas eles podem fazer isso e querem o fazer. Eu me agrado
de personagens que caem de pára-quedas na ação e são levados à participarem dos
acontecimentos por não terem escolha e maldizem o que tem de fazer.
Personagens como esses, de
#iHunt, são jogados na ação para não morrerem de fome, não perderem um teto ou
simplesmente para comprar a próxima dose do medicamente que os mantém vivos.
Eles odeiam o que fazem e questionam o porquê de terem de fazê-lo. Eles querem
mudar essa realidade e sua condição. Eles querem lutar contra tudo e contra
todos para isso. Isso cria um debate não necessariamente sutil, mas muito claro
e vívido. É um jogo necessário por sua relevância nos tempos de hoje. É um jogo
importante para dar voz à uma condição que nem sempre temos presente em nós,
mas nos afeta à quase todos.
A indicação de um perfil para
os personagens se casa perfeitamente à proposta de dar voz e questionar a
relação imposta de relação desses indivíduos com o mundo ao seu redor.
A escolha de Fate é
extremamente feliz por possibilitar todos esses questionamentos de forma que
influenciem mecanicamente o andamento da sessão e a relação do personagem com a
ação. O uso dos Aspectos pode proporcionar que jogadores e mestres façam uso dos
Aspectos dando grande peso à “aventura” e tornando ela crua, real e incômoda
como é a realidade. Jogar #iHunt será uma possibilidade de enfrentar e
questionar uma realidade que se acostumou em colocar de lado o que fere as
regras de ‘normal’ ou que não se mostra produtivo segundo certos parâmetros.
#iHunt não é um escape, é a possibilidade de ensinar, aprender e esbofetear a
realidade.
Bons jogos!
Aduira #iHunt AQUI!
Um comentário:
Super resenha! Parabéns!
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