quarta-feira, 24 de junho de 2020

Política em HQs, RPGs e afins



Política em HQs, RPGs e afins

RPG, quadrinhos, cinema, literatura, dentre tantos outros, têm uma ligação indestrutível com a realidade. Embora seus temas pareçam diretamente, à primeira vista, apenas fantasia, eles são repletos de elementos reais como suporte para sua construção. Eles são fruto de autores que vivem no mundo real e o vivenciam. Esses autores estão interagindo com este mundo consciente ou inconscientemente ao mesmo tempo em que são influenciados constantemente por ele, mesmo que não percebam. Por mais que uma obra possa parecer de uma fantasia única e completamente alheia à nossa, o artista chegou lá por uma série de influências reais.

Nunca foi tão sem sentido dizer que “meu hobby” (e coloque aqui qualquer um deles, de RPG à quadrinhos, de livros à filmes) não deve ser misturado com política. Todas as produções são um resultado de um autor inserido em uma sociedade ao mesmo tempo em que interage com ela.

Comecei a escrever este texto depois que li um comentário de um membro aleatório de um grupo de RPG reclamando sobre “que era um erro misturar debates políticos [racismo] com meu hobby favorito” no mesmo dia em que a Paizo lançou um comunicado abordando o tema. Coincidentemente, lendo o ótimo site Nerdsonearth no mesmo dia, me deparei com um artigo que fazia um paralelo entre um arco dos quadrinhos dos X-Men com o caso George Floyd. Eu sei que usar o exemplo dos X-Men como elemento de política nas HQs (e cultura pop em geral) já é hiper batido, mas às vezes temos que desenhar para que alguns entendam. 

O artigo de Clave Jones no Nerdsonearth falava sobre o arco X-Tinction Agenda, que no Brasil foi chamado de Programa de Extermínio. Ele foi lançado em 1990 em nove edições da editora Marvel, chegando ao Brasil em 1994, pela editora Abril. Eu corri para a prateleira para localizar essas edições em minha coleção e refrescar a memória.

Esse arco possui um enredo sombrio e nada sutil escrito pelas mãos habilidosas de Chris Claremont. Ele se passa em Genosha, mostrando o elemento ‘escravo’ como foco do enredo e escrito como uma analogia à África do Sul da época do apartheid, e que ainda estava vivenciando aquilo naquele momento.


Genosha seria uma ilha localizada na costa leste da África, imaginada como perto de Zanzibar do mundo real. Ela ostentava uma excelente economia e padrão de vida, um forte contraste com a turbulência política e racial que caracterizava as nações vizinhas. Mas Genosha guardava um segredo sombrio: a prosperidade foi construída com a escravidão de sua população mutante oprimida.

Os mutantes ainda quando crianças em Genosha eram rastreadas quanto à existência de seu gene mutante pelo personagem de David Moreau, conhecido como engenheiro genético. Ele tirou o livre arbítrio dos mutantes para que o país pudesse utilizar suas habilidades mutantes como trabalho escravo. Esse arranjo foi mantido à força por uma força policial especial conhecida como Magistrados.

Genosha se valeu de uma prática semelhante à adotada pela África do Sul e mesmo pelos Estados Unidos do pré-guerras, demonstrando aos outros países uma falsa impressão de que eram uma terra de esperança e liberdade, apesar da repugnante realidade de que eram nações que segregavam e/ou escravizavam aqueles que não eram considerados “Normais”. Por isso reler Programa de Extermínio oferece alguns paralelos assustadores com o mundo de hoje.

Mas Programa de Extermínio não foi a primeira história a apresentar Genosha. Durante a fase australiana dos X-Men, os personagens Wolverine, Vampira e Madelyne Pryor foram sequestrados pelos Magistrados de Genosha. Enquanto essa história (Uncanny X-Men 235-238, no Brasil lançado em X-Men 1ª série #44 e #45, junho/92) terminou com uma moral do tipo “viva e deixe viver”, Genosha voltava agora, menos de 50 edições depois, com os mesmos problemas. É difícil não traçar o paralelo da asfixia de Eric Garner em 2014 e os tumultos subsequentes à asfixia de George Floyd em 2020. Os dois homens foram mortos dizendo: “Eu não consigo respirar”, mas nada havia mudado aqui no mundo real e nada havia mudado em Genosha, apesar dos esforços heroicos dos X-Men.



Os que estavam no poder se comprometeram e racionalizaram para manter a mentira de Genosha anteriormente e agora, durante o Programa de Extermínio, tínhamos um reencontro com os mesmo fatos. Isso não foi apresentado de forma sutil. Aqueles no poder não são mostrados como personagens simpáticos. Não há o argumento de “gente boa dos dois lados” aqui. De fato, várias páginas são utilizadas para mostrar quão insensivelmente os que estão no poder em Genosha estão dispostos a desumanizar os outros em benefício próprio.

As nove edições de Programa de Extermínio poderiam ser utilizado em muitas aulas de sociologia para debate. Não tivemos um final feliz nos quadrinhos e não tenho certeza de qual final teremos aqui.

Esse é um pequeno e pontual exemplo dentro de um oceano de produções de RPGs, de quadrinhos, de literatura, todas transbordando nossa sociedade pelas beiradas. Muitos gostam de usar o termo “fantasia” como se isso simplesmente nos levasse para um patamar onde o real não existisse, ou fosse inalcançável ou não importasse. Usam isso como desculpa para simplesmente desqualificar que essas produções são muito mais importantes do simples escapismo ou lazer.

Fantasia nada mais é do que o real com outra roupagem. Os X-Men foram heróicos, pois defenderam o que sabiam que era certo e lutavam muito contra o que sabiam ser uma injustiça. Que todos nós possamos dizer que fizemos o mesmo.

Abaixo o referência dos quadrinhos do arco Programa de Extermínio (X-Tinction Agenda):

Parte 1


Uncanny X-Men #270 (Novembro/1990)
New Mutants #95 (Novembro 1990)
X-Factor #60 (November 1990)
Lançada no Brasil em X-Men (1ª série) #68 (Editora Abril – junho/1994)


Parte 2


Uncanny X-Men #271 (Dezembro/1990)
New Mutants #96 (December 1990)
X-Factor #61 (December 1990)

Lançado no Brasil em X-Men (1ª série) #69 (Editora Abril – julho/1994)


Parte 3


Uncanny X-Men #272 (Janeiro/1991)
New Mutants #97 (January 1991)
X-Factor #62 (January 1991)
Lançada no Brasil em X-Men (1ª série) #70 (Editora Abril – agosto/1994)

Todas as nove edições foram re-lançadas em um encadernado chamado X-Men: Programa de Extermínio, lançado pela editora Panini em abril de 2014.



2 comentários:

Wagner Santos disse...

Quando as pessoas falam em misturar as coisas (ao menos esse é o meu caso) reclamam não de um história, como essa que você falou dos x-men, mas de uma nota como da Paizo, ou daquela imagem vazia 'somos todos antifa', esses apoios só com palavras, ou gestos fúteis não representam muita coisa.
Alien é um filme em que a protagonista é uma mulher FORTE feito a vários anos e representativo, x-men são personagens antigos que falam sobre segregação e racismo. Ou seja, essa mistura sempre existiu, mas ela tem que fazer sentido, hoje, infelizmente, estamos na era da lacração, personagens mudam de cor, sexo, orientação sexual, religião, posicionamento político pra agradar uma parte da população, aí ferram o personagem, ferram a história e a culpa são dos outros, que não entenderam, ou que são racistas, ou que são machistas, etc, alguns exemplos atuais foram as caça fantasmas e as panteras.
Quando é bem feito não tem isso, alguns exemplos atuais são Mulher Maravilha, Pantera Negra e esses filmes funcionaram, mesmo tratando de política, etc.

João Brasil disse...

Discordo completamente de seu entendimento Wagner. A começar que quando fazemos alusão ao termo "lacração" é porque já temos uma ideia predeterminada sobre o tema. Alterações e mudanças são e sempre serão muito bem vindas. Mudar personagens em sua cor ou gênero ou seja lá no que for não é "lacração" (termo que tu usou), mas apenas uma melhor distribuição. Temos muitos, mas muitos mesmo, personagens normativos que se sustentaram como "capa de revistas em quadrinhos" mesmo tendo péssimas histórias. Eles não eram sustentados como carros-chefes pela qualidade, mas por uma norma social estabelecida.

Tudo o que se produz reflete a sociedade... mesmo que não "queiramos" perceber isso.