Mestres de Zansara
Conto: Resistência na
Escuridão
Capítulo 1
Abaixo
o Sabá dos Nove. As palavras escritas com
tinta esverdeada ainda estavam úmidas na parede da casa da guarda que ardia em
chamas. As labaredas altas clareavam a rua de pedra em quase toda sua extensão nos
dois lados naquela noite sem luas. A gritaria e correria com o incidente
mobilizaram a população de muitas ruas próximas. O amontoado de curiosos
comentando e sussurrando era quase ensurdecedor. O trabalho havia sido bem feito.
A atenção havia sido chamada.
A guarda tentava afastar a
população enquanto alguns de seus conjuradores apagavam o fogo. Embora já fosse
tarde demais para salvar qualquer coisa de dentro da sede da guarda daquele
bairro, a intenção era chamar menos a atenção. As palavras de protesto também
foram rapidamente apagadas com água e magia, mas os curiosos que já as tinham
visto se encarregariam de disseminá-las, mesmo que sem intenção, nas conversas
do dia seguinte, fosse na feira, fossem nas tavernas.
Qualquer perturbação na água e
suas ondulações são impossíveis de controlar. Essa era justamente a intenção,
provocar ondulações, mostrar movimento, espalhar um sentimento, tudo aquilo que
pudesse trazer algum questionamento sobre o que realmente estava acontecendo
dento da Confederação Arcana do Oeste.
Muitos daqueles que tinham
apenas uma visão de fora consideravam a Confederação com um exemplo de sucesso
e eficácia. A magia sendo utilizada para prosperar uma nação onde não haviam
mais oposições mesquinhas e jogos políticos. Um lugar onde todos se
beneficiavam das facilidades, do poderio, da grandiosidade do poder mágico. Um
lugar onde os conjuradores eram adorados por fazer a vida de todos mais fácil.
Ledo engano.
Raddaerik sabia bem disso. Embora
não fosse um nativo da Confederação ele estava aqui à tempo suficiente para
entender que aquilo que se imaginava de fora era muito diferente da realidade. Ele
estava de pé junto à esquina, cercado de dezenas de moradores das redondezas
que se amontoavam para ver o que estava acontecendo. Sussurros cruzavam por ele
de forma agradável. Um incêndio pode se alastrar rapidamente, mas nada supera a
velocidade de um rumor. Ele ameaçou um leve sorriso no canto de sua boa.
O vento frio da estação do gelo
soprava pela rua e o calor agradável das chamas do incêndio provocado já não
aqueciam mais, conforme as últimas labaredas eram extintas por magia. Ele se
obrigou a enfiar as mãos nos bolsos do pesado casado e sentiu o desconforto de
encostar e redescobrir sua braçadeira no bolso. Ela sempre o afetava
sobremaneira. Como um simples pedaço de pano poderia causar tanto desconforto?
Ele nunca entendeu. Mas ele sabia que não era o fato de ser uma braçadeira de
pano, mas tudo o que ela representava. Aquela faixa era uma marca, uma mácula,
um demérito imposto à ele por algo que era, assim como tantos outros. Um
clérigo. A nação que todos lá de fora achavam ser tão próspera e equilibrada,
fazendo da magia o combustível de sua prosperidade, marcava aqueles que não
estavam dentro dos parâmetros da normalidade. Havia a magia certa e a magia
errada aos olhos deles.
Ele segurou a braçadeira com
raiva dentro do bolso e depois respirou fundo para se acalmar. Não queria
chamar a atenção mais do que o necessário por andar pela rua à noite, embora
toda a movimentação causada pelo incidente na casa da guarda tenha enchido as
ruas nas proximidades. Isso também era um risco. Se alguém o reconhecesse e
percebesse que ele estava sem sua braçadeira, uma denúncia poderia lhe fazer encontrar
a morte abreviada nas mãos da lei. Por sorte aquela parte da cidade raramente
era visitada por ele e numa cidade tão grande quanto Foz da Cúpula, a capital
da Confederação Arcana do Oeste, o risco acabava por se diluir um pouco.
Algumas quadras e becos
percorridos pela noite fria, pulando de escuridão em escuridão em um caminho
despretensiosamente confuso, o clérigo para em frente de uma porta simples.
Nada de especial nela ou no beco onde estava localizada. Após três batidas
secas a porta se abre em um movimento silencioso, permitindo passagem para que
ele ingressasse calmamente. Do lado de dentro um rosto carrancudo, mas
conhecido, surgiu das sombras e rapidamente fechando a porta após ele passar e
certificar-se de que era realmente o clérigo aguardado, retornando para a
escuridão.
O ambiente fumacento tinha um
forte odor entre ervas aromáticas e tabaco, tornando o caminhar pelo corredor
inebriante enquanto se aproximava de vozes que conversavam adiante.
A aparência do ambiente era
como de qualquer outra pocilga que vendia bebidas fortes e que não fazia muitas
perguntas. Haviam muitas pelas ruas da capital atualmente, fugindo dos
cobradores de impostos e das perguntas indesejadas. Normalmente um lugar pequeno
para um grupo mais ou menos recorrente de clientes das proximidades. A
aparência desta servia para isso mesmo – enganar desavisados.
Raddaerik atirou a pesada capa de
lã sobre uma cadeira enquanto se jogava pesadamente em outra apoiando o rosto
nas mãos. As noites de “ação” eram exageradamente tensas e ele sentida cada
músculo de seu corpo rijo. Com os olhos fechados ele proferiu uma rápida prece
de agradecimento ao seu deus, algo punível com a morte se aqui não fosse um
local seguro. Tudo correra bem. O trabalho fora feito com sucesso e ninguém
havia sido pego, pelo menos não que ele soubesse ainda.
Conforme ele foi abrindo os
olhos lentamente e se acostumando com a claridade dos lampiões presos alto no
teto, enquanto tentava relaxar os ombros, ele percebeu duas figuras o
observando das cadeiras à frente. Ele nem ao menos as ouvira sentar e por isso
mesmo é que elas estavam com ele na missão de hoje. Ele era o líder da ação e o
suporte, caso necessário, mas elas eram as mãos que executariam, e executaram,
as ordens.
Os seus rostos estavam sujos
aqui e ali com respingos e manchas de tinta verde-escuro, mas seus sorrisos
iluminavam a mesa, quase o fazendo não perceber a sujeira. As Irmãs Clic, como
eram chamadas, eram Annabelle e Annalise, duas ladinas que pareciam novas
demais para terem tanta experiência e precisão. O nome era devido aos pequenos
sons e estalos que produziam quando estavam exercendo sua arte de abrir coisas
que não deveriam ser abertas.
Quando elas chegaram no Lince
Voador, como reforços de extrema qualidade segundo os informes, Raddaerik
lembra de ter pensado que fosse alguma piada de sua amiga capitã. Ele se lembrou
da insegurança em usá-las na primeira ação de campo e do quão satisfatório fora
o resultado final depois da missão concluída. Elas se tornaram um fator preciso
no grupo.
“Você está um caco, Rad”, disse Annabelle sorrindo. “Você tem se acalmar, nós dissemos que seria
moleza e foi” completou Annalise.
O clérigo respirou fundo. Manter-se
calmo era algo que ele não costumava fazer desde que colocara os pés dentro da
Confederação Arcana do Oeste. Sua chegada à essa nação perdida do mundo se deu
depois que muitos de seus irmãos de oração começaram a relatar os horrores que
aconteciam por aqui com outros clérigos. Quando ele decidiu peregrinar por
essas terras ela imaginava uma perseguição religiosa como tantas outras que
aconteciam e aconteceram ao longo do tempo e que precisavam apenas de palavras
iluminadas e um pouco de diplomacia. Errado. Era mais do que isso. Era a
imposição violenta de superioridade de um grupo, impondo inclusive a morte para
quem não se mantivesse “em seu lugar”.
Ele ainda se lembrava do que
teve que passar na fronteira, sendo interrogado e marcado com uma braçadeira
para que pudesse ser melhor controlado. Em nenhum outro lugar acontecia isso. E
quando começou a andar pelo reino, rumo à capital, ele percebeu que as coisas
eram ainda piores do que as notícias escapavam pelas fronteiras. Havia um
processo deliberado de exclusão baseado na magia. A magia era o fiel da balança
para mostrar se você era, no final das contas, um membro digno da nação ou
apenas um fantasma. E não toda a magia – apenas algumas vertentes dela.
Raddaerik foi tirado de seus
pensamentos quando canecas de vinho quente foram colocadas na mesa junto de
algo para comer. Jared puxou uma cadeira ao lado do clérigo e olhou bem para
ele de forma séria – “Você está um caco,
Rad”.
“Muito engraçado crianças... vocês combinaram isso ou estou com pior
aparência do que imaginava” respondeu em tom de brincadeira o clérigo.
“Sim, combinamos, mas não deixa de ser verdade!” soltou Annabelle
antes de beber um longo gole do vinho. “Deu
tudo certo, ninguém foi pego, estamos inteiros... vamos beber à isso!”
O clérigo apreciava a falta de
preocupação deles. Ao mesmo tempo à temia. Eles não tinham visto o que ele já
fora forçado a ver. Eles mesmos não corriam tanto perigo, se fossem pegos, quanto
ele e seus iguais. Na Confederação, ser um clérigo era um crime maior do que
roubar mil cofres. A meritocracia do pensamento dos governantes locais, da
aristocracia conjuradora dessas terras, escondia crueldade e ironia. A
crueldade de impor mão de ferro sobre quem não se encontrava dentro do grupo
‘superior’ e ironia por simplesmente fazer o mesmo que os governantes
anteriores faziam, mas com alvos diferentes.
“Mas vocês estão certos” disse Raddaerik empunhando sua caneca e
escondendo o temor - “vamos brindar...
embora devagarinho, vamos fazer a diferença.” Ele sorveu um grande gole e
comeu bom pedaço de queijo com pão.
Depois de alguns momentos de
conversa onde as irmãs contaram como fizeram tudo e Jared comentava de suas
aventuras em outra ação do grupo, mas fora da cidade, Raddaerik interrompeu com
um tom mais sério. “Essa semana teremos
um reunião com outros de nossos grupos, fiquem atentos às movimentações pelas
ruas e alertas para quando avisarmos do local da reunião. Sempre que reunimos
tantos membros o perigo é redobrado. Mantenham os ouvidos atentos e os olhos
abertos. Não queremos acabar como os nossos saudosos amigos das montanhas que
forma pegos desprevenidos... que os deuses os guardem!”
Todos fizeram um brinde
respeitoso em silêncio.
Nota: Zansara é um cenário compatível com Pathfinder 2e e é lançado pela Editora New Order. Além da série de contos a Confraria de Arton também material autoral para o cenário com O Lince Voador (Aqui).
Um comentário:
Nice!!!
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