Honrarias de Primeira Ordem IV
- Cruz -
Desculpem
pela extrema irregularidade das postagens. Recapitulando um pouco o que vimos
nas postagens anteriores, uma Honraria é uma carga representada por uma forma
geométrica simples colocada sobre o campo do escudo, representando valores,
honras concedidas ou feitos. As oito Honrarias de Primeira Ordem (ou também
chamadas de Ordinárias) são Aspa, Asna, Banda, Barra, Chefe, Cruz, Faixa e Pala
e possuem um peso hierárquico superior às outras ordens. Anteriormente vimos o
Chefe, Banda, Pala e Faixa. Hoje veremos a Cruz.
A
Cruz (cross em inglês, crois em francês, cruciatu em italiano) pode ser definida
como uma forma geométrica onde duas estruturas retangulares cruzam
perpendicularmente (vertical e horizontalmente) no centro do campo formando
quatro ângulos retos, não sendo indicada uma largura específica, mas que ocupe
pelo menos um quinto do campo.
A
cruz existe em uma enorme variedade na heráldica, principalmente após as
Cruzadas. Em sua obra “The Elements of heraldry” (1795), M.A. Porny, usando
como base o trabalho de John Guillim de 1724, classifica trinta e nove tipos de
cruzes. Pouco mais de cem anos depois, Fox Davies em sua obra “The Art of Heraldry”
(1904) contabiliza nada menos que quatrocentos tipos diferentes, mas
considerando realmente com importância recorrente na heráldica entre doze e
vinte tipos de cruzes.
A
importância simbólica da cruz na heráldica é clara. Ela tem inegavelmente seu
fundo religioso focado no objeto de tortura da antiguidade, onde criminosos
eram crucificadas e que acabou ganhando outro sentido com o cristianismo. Mas
sua real inserção na heráldica veio com as expedições cristão à Terra Santa
para as Cruzadas. A marca dessa guerra levada pelos cristãos era demonstrada
pela cruz – os conhecidos cavaleiros templários usaram a cruz vermelha sobre
branco, os cavaleiros hospitalários usavam a cruz branca sobre vermelho e os
cavaleiros teutônicos usavam a cruz preta sobre branco.
Quando
a cruz foi utilizada pela primeira vez como uma representação heráldica era
claro que ela pretendia representar a cruz “sagrada” cristã. A cruz era representada
mais fielmente nos escudos longos e pontiagudos daqueles que lutaram nas
Cruzadas onde a cruz teria o formato com o braço alongado na base. O
encurtamento contemporâneo do escudo, junto com a introdução de cargas (elementos)
em seus ângulos, levou naturalmente a que os braços da cruz fossem dispostos de
modo que as partes do campo deixadas visíveis fossem tão quase iguais quanto
possível. A Cruz Sagrada (base alongada) passou assim, a ser conhecida na
heráldica como a “Cruz da Paixão” (ou às vezes como “cruz longa” ou “cruz
romana”).
Originalmente
os ingleses usavam a cruz dourada e aqui temos uma curiosidade. A Cruz de São
Jorge, como é conhecida a cruz vermelha em fundo branco, era o símbolo do
patrono do ducado italiano de Genova, no caminho das tropas que iam à pé do
oeste europeu rumando para as cruzadas. Contam que o rei inglês Ricardo Coração
de Leão, ao passar pela cidade rumo à guerra, acabou por adotar a marca.
Posteriormente, após a reforma protestante na Inglaterra (século XVI) São Jorge
passou a ser considerado o padroeiro da Inglaterra.
Linhas
Como
acontece com todas as outras ordinárias, a cruz também pode ser estruturada com
linhas de partição (ver linhas de borda). Ao assumir essas linhas, a descrição
do escudo assume o tipo de linha após a determinação da cruz.
Variações
Há
uma enorme variedade de cruzes que foram usadas na heráldica ao longo do tempo.
As
cruzes podem ser carregadas com outros elementos. Abaixo temos o exemplo o
escudo de Sir Nicholas de Valeres. Escudo argenta, com uma cruz vermelha e
cinco escalopes em ouro.
Outra
variação também usual era o uso de duas tinturas na mesma cruz. Nesses casos os
braços da cruz eram partidos em pala e faixa assumindo cores alternadas a
partir da conexão central dos braços no centro. Alguns arautos costumavam usar
o termo quartelado (quarterly) para esse tipo de partição dos braços da cruz. Como
exemplos temos os escudos do bispo Thomas Lagnton e de Bevercott. O primeiro é
um escudo em ouro, com uma cruz quartelada azul e vermelha com cinco rosas a
partir do centro.
Já
o escudo de Bevercott seria um escudo quartelado argenta e azul (ver partição
do escudo AQUI) com uma cruz contra-alterado. O termo contra-alterado serve
para informar que as cores da cruz são as mesmas dos campos quartelados, mas
que estão dispostos inversamente aos seus campos.
Uma
variação de cruz surgida no meio do século XVII e que pode ser confundida com o
uso de duas tinturas é a chamada cruz com quarto-perfurado, ou seja, uma cruz
que tem seu quadrado central retirado, deixando aparecer a tintura do escudo
sobre o qual a cruz está aplicada. Esas variação de cruz pode ser facilmente
confundida com a partição de escudo conhecida por équipollée (mais comum no
século XIV). O équipollée equivale à uma partição em nove partes iguais
dispostas de forma alternada. Isso faz muita diferença. Se lembrarem de nossa
postagem sobre partições, uma partição equivale à junção de dois escudos,
enquanto uma honraria ordinária (que é o caso da cruz) equivale à uma peça de honraria
colocada sobre o campo do escudo. Abaixo temos os dois exemplos. No primeiro
temos o brasão do Braintree and Bocking demonstrando uma cruz quarto perfurada.
No segundo temos um équipollée. O primeiro seria um escudo vermelho com uma
cruz quarto-quartelada em ouro com dois leões rampantes azuis e duas
flor-de-lis verdes. O segundo seria um escudo équipollée com cinco pontos
argentas e quatro vermelhos.
Uma
cruz é considerada anulada quando sua parte interna tem as mesmas tinturas do
campo sobre a qual está posta, à exceção de uma pequena linha. Em francês é
inclusive usado o termo fausse (falso) para determinar uma cruz desse tipo. Um exemplo
desse tipo de cruz é o escudo de James Pilkington (1561) onde temos um escudo
argenta, com uma cruz anulada fleury gules.
Outra
variação deriva da possibilidade de colocarmos uma cruz sobre outra cruz. Mas
nesse caso, diferenciando da cruz anulada, a cor do interior não pode ser igual
à cor do campo sobre o qual a cruz está postada. Um ótimo exemplo disso é o
brasão da vila francesa Bernadets-Debat. Nela temos um escudo vermelho, com uma
cruz azul cotisada de ouro carregada com uma cruz argenta.
As
cruzes podem ser de tinturas diferentes em uma mesma cruz. Neste caso a cruz
pode se apresentar de duas formas. A Compony é quando a cruz é formada por
quadrados com esmaltes alternados. Um bom exemplo disso é o escudo de Eustace
de Witeneye (1283), formada de ouro e gules.
Algumas
cruzes têm seus braços menores que o campo do escudo, ou seja, não tocam em
suas bordas. Nesses casos dizemos que a cruz está hamade (hamaide, hummet,
hummety, alaisée), quando a peça não atinge a borda do campo. Normalmente, com
as cruzes nesta situação, todos os seus quatro braços têm o mesmo tamanho. Este
é o caso do escudo de Xalantrailles, um escudo argento com uma cruz hamade
vermelha.
Além
disso, podemos ter uma série de variações de cruzes categorizadas conforme a
terminação de seus braços. No caso isso só pode acontecer com cruzes hamade.
Descrição
A
descrição de escudos com cruz segue o que já vimos anteriormente para outras
ordinárias. Primeiro declaramos o campo e logo depois a cruz. Vejamos o exemplo
abaixo com o escudo de John de Mohun (1320-1376): campo em ouro, com cruz
recortada sable.
Outro
exemplo simples é o escudo de Richard Siward (?-1248): campo sable, com cruz fleury
argenta.
Quando
temos mais elementos no escudo são descritos conforme sua disposição. No
exemplo do escudo da família Franco, de Navarra: campo gules, com cruz Fleury
argenta, acantonada por quatro flores de lis de ouro.
Um
exemplo um mais complexo seria o escudo de Ulick Ruadh Burke, 5º barão de
Clanricarde (?-1485): campo em ouro, uma cruz gules, no primeiro e quarto
quadrantes um leão rampante; paquife em ouro e gules; como crista, sobre um
elmo, uma gata selvagem, com coleira acorrentada em ouro, carregada no peito
com uma cruz; como lema: Ung roy, ung foy, ung loy.
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