domingo, 10 de janeiro de 2021

Curso de Heráldica - Honrarias de Primeira Ordem IV - Cruz

  
Honrarias de Primeira Ordem IV
- Cruz -

 
Desculpem pela extrema irregularidade das postagens. Recapitulando um pouco o que vimos nas postagens anteriores, uma Honraria é uma carga representada por uma forma geométrica simples colocada sobre o campo do escudo, representando valores, honras concedidas ou feitos. As oito Honrarias de Primeira Ordem (ou também chamadas de Ordinárias) são Aspa, Asna, Banda, Barra, Chefe, Cruz, Faixa e Pala e possuem um peso hierárquico superior às outras ordens. Anteriormente vimos o Chefe, Banda, Pala e Faixa. Hoje veremos a Cruz.

A Cruz (cross em inglês, crois em francês, cruciatu em italiano) pode ser definida como uma forma geométrica onde duas estruturas retangulares cruzam perpendicularmente (vertical e horizontalmente) no centro do campo formando quatro ângulos retos, não sendo indicada uma largura específica, mas que ocupe pelo menos um quinto do campo.


A cruz existe em uma enorme variedade na heráldica, principalmente após as Cruzadas. Em sua obra “The Elements of heraldry” (1795), M.A. Porny, usando como base o trabalho de John Guillim de 1724, classifica trinta e nove tipos de cruzes. Pouco mais de cem anos depois, Fox Davies em sua obra “The Art of Heraldry” (1904) contabiliza nada menos que quatrocentos tipos diferentes, mas considerando realmente com importância recorrente na heráldica entre doze e vinte tipos de cruzes.

A importância simbólica da cruz na heráldica é clara. Ela tem inegavelmente seu fundo religioso focado no objeto de tortura da antiguidade, onde criminosos eram crucificadas e que acabou ganhando outro sentido com o cristianismo. Mas sua real inserção na heráldica veio com as expedições cristão à Terra Santa para as Cruzadas. A marca dessa guerra levada pelos cristãos era demonstrada pela cruz – os conhecidos cavaleiros templários usaram a cruz vermelha sobre branco, os cavaleiros hospitalários usavam a cruz branca sobre vermelho e os cavaleiros teutônicos usavam a cruz preta sobre branco.

Quando a cruz foi utilizada pela primeira vez como uma representação heráldica era claro que ela pretendia representar a cruz “sagrada” cristã. A cruz era representada mais fielmente nos escudos longos e pontiagudos daqueles que lutaram nas Cruzadas onde a cruz teria o formato com o braço alongado na base. O encurtamento contemporâneo do escudo, junto com a introdução de cargas (elementos) em seus ângulos, levou naturalmente a que os braços da cruz fossem dispostos de modo que as partes do campo deixadas visíveis fossem tão quase iguais quanto possível. A Cruz Sagrada (base alongada) passou assim, a ser conhecida na heráldica como a “Cruz da Paixão” (ou às vezes como “cruz longa” ou “cruz romana”).


Originalmente os ingleses usavam a cruz dourada e aqui temos uma curiosidade. A Cruz de São Jorge, como é conhecida a cruz vermelha em fundo branco, era o símbolo do patrono do ducado italiano de Genova, no caminho das tropas que iam à pé do oeste europeu rumando para as cruzadas. Contam que o rei inglês Ricardo Coração de Leão, ao passar pela cidade rumo à guerra, acabou por adotar a marca. Posteriormente, após a reforma protestante na Inglaterra (século XVI) São Jorge passou a ser considerado o padroeiro da Inglaterra.


Linhas
Como acontece com todas as outras ordinárias, a cruz também pode ser estruturada com linhas de partição (ver linhas de borda). Ao assumir essas linhas, a descrição do escudo assume o tipo de linha após a determinação da cruz.



Variações
Há uma enorme variedade de cruzes que foram usadas na heráldica ao longo do tempo.

As cruzes podem ser carregadas com outros elementos. Abaixo temos o exemplo o escudo de Sir Nicholas de Valeres. Escudo argenta, com uma cruz vermelha e cinco escalopes em ouro.



Outra variação também usual era o uso de duas tinturas na mesma cruz. Nesses casos os braços da cruz eram partidos em pala e faixa assumindo cores alternadas a partir da conexão central dos braços no centro. Alguns arautos costumavam usar o termo quartelado (quarterly) para esse tipo de partição dos braços da cruz. Como exemplos temos os escudos do bispo Thomas Lagnton e de Bevercott. O primeiro é um escudo em ouro, com uma cruz quartelada azul e vermelha com cinco rosas a partir do centro.



Já o escudo de Bevercott seria um escudo quartelado argenta e azul (ver partição do escudo AQUI) com uma cruz contra-alterado. O termo contra-alterado serve para informar que as cores da cruz são as mesmas dos campos quartelados, mas que estão dispostos inversamente aos seus campos.



Uma variação de cruz surgida no meio do século XVII e que pode ser confundida com o uso de duas tinturas é a chamada cruz com quarto-perfurado, ou seja, uma cruz que tem seu quadrado central retirado, deixando aparecer a tintura do escudo sobre o qual a cruz está aplicada. Esas variação de cruz pode ser facilmente confundida com a partição de escudo conhecida por équipollée (mais comum no século XIV). O équipollée equivale à uma partição em nove partes iguais dispostas de forma alternada. Isso faz muita diferença. Se lembrarem de nossa postagem sobre partições, uma partição equivale à junção de dois escudos, enquanto uma honraria ordinária (que é o caso da cruz) equivale à uma peça de honraria colocada sobre o campo do escudo. Abaixo temos os dois exemplos. No primeiro temos o brasão do Braintree and Bocking demonstrando uma cruz quarto perfurada. No segundo temos um équipollée. O primeiro seria um escudo vermelho com uma cruz quarto-quartelada em ouro com dois leões rampantes azuis e duas flor-de-lis verdes. O segundo seria um escudo équipollée com cinco pontos argentas e quatro vermelhos.




Uma cruz é considerada anulada quando sua parte interna tem as mesmas tinturas do campo sobre a qual está posta, à exceção de uma pequena linha. Em francês é inclusive usado o termo fausse (falso) para determinar uma cruz desse tipo. Um exemplo desse tipo de cruz é o escudo de James Pilkington (1561) onde temos um escudo argenta, com uma cruz anulada fleury gules.



Outra variação deriva da possibilidade de colocarmos uma cruz sobre outra cruz. Mas nesse caso, diferenciando da cruz anulada, a cor do interior não pode ser igual à cor do campo sobre o qual a cruz está postada. Um ótimo exemplo disso é o brasão da vila francesa Bernadets-Debat. Nela temos um escudo vermelho, com uma cruz azul cotisada de ouro carregada com uma cruz argenta.



As cruzes podem ser de tinturas diferentes em uma mesma cruz. Neste caso a cruz pode se apresentar de duas formas. A Compony é quando a cruz é formada por quadrados com esmaltes alternados. Um bom exemplo disso é o escudo de Eustace de Witeneye (1283), formada de ouro e gules.



Algumas cruzes têm seus braços menores que o campo do escudo, ou seja, não tocam em suas bordas. Nesses casos dizemos que a cruz está hamade (hamaide, hummet, hummety, alaisée), quando a peça não atinge a borda do campo. Normalmente, com as cruzes nesta situação, todos os seus quatro braços têm o mesmo tamanho. Este é o caso do escudo de Xalantrailles, um escudo argento com uma cruz hamade vermelha.



Além disso, podemos ter uma série de variações de cruzes categorizadas conforme a terminação de seus braços. No caso isso só pode acontecer com cruzes hamade.



Descrição
A descrição de escudos com cruz segue o que já vimos anteriormente para outras ordinárias. Primeiro declaramos o campo e logo depois a cruz. Vejamos o exemplo abaixo com o escudo de John de Mohun (1320-1376): campo em ouro, com cruz recortada sable.



Outro exemplo simples é o escudo de Richard Siward (?-1248): campo sable, com cruz fleury argenta.



Quando temos mais elementos no escudo são descritos conforme sua disposição. No exemplo do escudo da família Franco, de Navarra: campo gules, com cruz Fleury argenta, acantonada por quatro flores de lis de ouro.



Um exemplo um mais complexo seria o escudo de Ulick Ruadh Burke, 5º barão de Clanricarde (?-1485): campo em ouro, uma cruz gules, no primeiro e quarto quadrantes um leão rampante; paquife em ouro e gules; como crista, sobre um elmo, uma gata selvagem, com coleira acorrentada em ouro, carregada no peito com uma cruz; como lema: Ung roy, ung foy, ung loy.



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