sábado, 30 de dezembro de 2023

Conto para Muito Abaixo do Oceano Jornada Perigosa: Fragmento 01

  
Jornada Perigosa: Fragmento 1

 
Eu já te disse isso mais de mil vezes, mon ami... dê para ele uma daquelas novas geringonças de costura... como chamam mesmo...?

Máquinas de costura?”, respondeu Eugène de forma arrastada entre uma pergunta e uma exclamação, enquanto secava o suor da testa com um pano que já fora branco eras atrás.

Isso mesmo!”, Pierre alargou um grande sorriso abaixo do bigode fino, “ele vai adorar!

Pierre sabe o que diz, Eugène. Ele comprou uma dessas para a sua esposa com o soldo de dois meses”, gritou o chef do outro lado do balcão de bocas de fogo, escondido por uma cortina de fumaça branca que vinha das inúmeras panelas fumegantes.

Oui... Pierre sempre sabe o que diz!”. Seria estranho para qualquer um ver alguém falando de si mesmo na terceira pessoa, mas não ali e não quando quem fala é Pierre Furquin. Na cozinha do Submarino de terceira classe Nouvel Espoir não havia apenas cozinheiros ou recrutas novatos, mas quase uma família, estranha, mas ainda assim uma família.

A animada conversa na cozinha era um costume nas horas que antecediam as refeições diárias, principalmente o almoço. Tão logo a tripulação começava seus afazeres pelos corredores apertados e cantos úmidos da embarcação, correndo como formigas em um formigueiro, qualquer um que se aproximasse da cozinha escutava a falação alta, as risadas estridentes e até mesmo a cantoria, não necessariamente nesta ordem. Todos tinham certeza que aqueles homens faziam de sua tarefa uma grande festa e se sentiam em casa ali.

Mas essa família era muito maior. A tripulação do Nouvel Espoir era numerosa. Muitos postos. Muitas funções. Muitas almas. Do refeitório, já quase vazio naquela hora da manhã, um ou outro oficial sempre estava tomando uma última xícara de café enquanto passava os olhos pelas suas pranchetas com as ordens do dia. Era o costumo, e todos ali faziam parte daquela grande família, de uma forma ou de outra. Uma família de dezenas.

Em Triunfo os alfaiates que as usam tem se destacado pela velocidade e pela qualidade dos acabamentos, Eugène. Seu namorado é alfaiate, não é? Ora, é óbvio que ele vai adorar!”, resmungou o segundo oficial Ragon por trás de sua barba grisalha e manchada de tabaco. Ele fez o comentário sem tirar os olhos de seus papéis enquanto um jovem mensageiro com ares de criança esperava uma resposta ao bilhete que o capitão lhe enviara.

Mas essas coisas são tão caras!” choramingou Eugène enquanto jogava mais uma batata descascada dentro de uma grande bacia repleta delas.

Nããão... nunca, nunca diga isso na frente do seu parceiro, parceira, sei lá, tanto faz, é tudo igual... A primeira coisa que vão te dizer é ‘mas eu não valho o presente?’... se chegar nesse ponto é bom correr como se a própria L’ombre estivesse atrás de ti!”. Pierre fez uma encenação forçada com uma voz esganiçada que mais causou risos do que qualquer outra coisa.

Eugène apenas olhava com cara pensativa enquanto o Chef entrava na brincadeira tirando boas risadas do mensageiro.

Por fim, de súbito o cozinheiro suado levanta com ar sério e faca em riste – “Me convenceram.. vou comprar essa tal máquina moderna... vou provar meu amor por ele!” – Eugéne estava em uma posição de glória que seria perfeita, não fosse o aspecto esfarrapado de seu avental e os restos de casca de batata nos ombros. Mesmo assim, isso foi o suficiente para Pierre bater palmas de clara satisfação. O Chef Arnold respondeu batendo em sua panela preferida com sua colher de pau de estimação. Até o oficial rendeu congratulações erguendo um brinde encenado com sua xícara.

A família em festa.

Então tudo tremeu.

Um grande e grave som ecoou por toda a fuselagem do submarino acompanhado de um solavanco. A vasilha virou, lançando batatas descascadas e cascas por todo o chão da cozinha. Arnold conseguiu salvar quase todas as panelas de ensopado, menos uma que acabou virando sob o fogo, aumentando ainda mais a nuvem de vapor. Na mesa do refeitório a xícara do segundo oficial não tivera muita sorte e acabou espatifada no chão. Por sorte todos saíram ilesos do susto, embora os olhos estivessem arregalados. Em um submarino, mesmo os modernos do final século XIX, nunca é um bom sinal qualquer coisa que saia da rotina, principalmente quando você está cercado por água e pressão mortal por todos os lados.

Após longos segundos que todos levaram para estabilizar a respiração e entender que ainda estavam vivos, começaram a se mover em um silêncio mortal, mas focado. Todos sabiam o que fazer ainda antes da luz vermelha e a sirene de emergência começarem a alertar a tripulação.

Parado em frente à janela lateral que dava visão completa do lado de fora para quem estava fazendo suas refeições, o jovem mensageiro estava de olhos arregalados e embasbacado.
 
- João EC Brasil

 

Nota: esses contos se passam no cenário do RPG Muito Abaixo do Oceano. Eles são compostos de fragmentos de uma mesma história, cada um fazendo parte de pontos de vista de diferentes locais do submarino.

Acompanhe o projeto do RPG Muito Abaixo do Oceano em sua página AQUI!

Nenhum comentário: