Jornada Perigosa: Fragmento 1
“Eu
já te disse isso mais de mil vezes, mon ami... dê para ele uma daquelas novas
geringonças de costura... como chamam mesmo...?”
“Máquinas
de costura?”, respondeu Eugène de forma arrastada entre uma pergunta e uma
exclamação, enquanto secava o suor da testa com um pano que já fora branco eras
atrás.
“Isso
mesmo!”, Pierre alargou um grande sorriso abaixo do bigode fino, “ele
vai adorar!”
“Pierre
sabe o que diz, Eugène. Ele comprou uma dessas para a sua esposa com o soldo de
dois meses”, gritou o chef do outro lado do balcão de bocas de fogo,
escondido por uma cortina de fumaça branca que vinha das inúmeras panelas
fumegantes.
“Oui...
Pierre sempre sabe o que diz!”. Seria estranho para qualquer um ver alguém
falando de si mesmo na terceira pessoa, mas não ali e não quando quem fala é Pierre
Furquin. Na cozinha do Submarino de terceira classe Nouvel Espoir não havia apenas
cozinheiros ou recrutas novatos, mas quase uma família, estranha, mas ainda
assim uma família.
A
animada conversa na cozinha era um costume nas horas que antecediam as
refeições diárias, principalmente o almoço. Tão logo a tripulação começava seus
afazeres pelos corredores apertados e cantos úmidos da embarcação, correndo
como formigas em um formigueiro, qualquer um que se aproximasse da cozinha
escutava a falação alta, as risadas estridentes e até mesmo a cantoria, não
necessariamente nesta ordem. Todos tinham certeza que aqueles homens faziam de
sua tarefa uma grande festa e se sentiam em casa ali.
Mas
essa família era muito maior. A tripulação do Nouvel Espoir era numerosa.
Muitos postos. Muitas funções. Muitas almas. Do refeitório, já quase vazio
naquela hora da manhã, um ou outro oficial sempre estava tomando uma última xícara
de café enquanto passava os olhos pelas suas pranchetas com as ordens do dia. Era
o costumo, e todos ali faziam parte daquela grande família, de uma forma ou de
outra. Uma família de dezenas.
“Em
Triunfo os alfaiates que as usam tem se destacado pela velocidade e pela
qualidade dos acabamentos, Eugène. Seu namorado é alfaiate, não é? Ora, é óbvio
que ele vai adorar!”, resmungou o segundo oficial Ragon por trás de sua
barba grisalha e manchada de tabaco. Ele fez o comentário sem tirar os olhos de
seus papéis enquanto um jovem mensageiro com ares de criança esperava uma
resposta ao bilhete que o capitão lhe enviara.
“Mas
essas coisas são tão caras!” choramingou Eugène enquanto jogava mais uma
batata descascada dentro de uma grande bacia repleta delas.
“Nããão...
nunca, nunca diga isso na frente do seu parceiro, parceira, sei lá, tanto faz,
é tudo igual... A primeira coisa que vão te dizer é ‘mas eu não valho o
presente?’... se chegar nesse ponto é bom correr como se a própria L’ombre
estivesse atrás de ti!”. Pierre fez uma encenação forçada com uma voz
esganiçada que mais causou risos do que qualquer outra coisa.
Eugène
apenas olhava com cara pensativa enquanto o Chef entrava na brincadeira tirando
boas risadas do mensageiro.
Por
fim, de súbito o cozinheiro suado levanta com ar sério e faca em riste – “Me
convenceram.. vou comprar essa tal máquina moderna... vou provar meu amor por
ele!” – Eugéne estava em uma posição de glória que seria perfeita, não
fosse o aspecto esfarrapado de seu avental e os restos de casca de batata nos
ombros. Mesmo assim, isso foi o suficiente para Pierre bater palmas de clara
satisfação. O Chef Arnold respondeu batendo em sua panela preferida com sua
colher de pau de estimação. Até o oficial rendeu congratulações erguendo um
brinde encenado com sua xícara.
A
família em festa.
Então
tudo tremeu.
Um
grande e grave som ecoou por toda a fuselagem do submarino acompanhado de um
solavanco. A vasilha virou, lançando batatas descascadas e cascas por todo o
chão da cozinha. Arnold conseguiu salvar quase todas as panelas de ensopado, menos
uma que acabou virando sob o fogo, aumentando ainda mais a nuvem de vapor. Na
mesa do refeitório a xícara do segundo oficial não tivera muita sorte e acabou
espatifada no chão. Por sorte todos saíram ilesos do susto, embora os olhos
estivessem arregalados. Em um submarino, mesmo os modernos do final século XIX,
nunca é um bom sinal qualquer coisa que saia da rotina, principalmente quando
você está cercado por água e pressão mortal por todos os lados.
Após
longos segundos que todos levaram para estabilizar a respiração e entender que
ainda estavam vivos, começaram a se mover em um silêncio mortal, mas focado.
Todos sabiam o que fazer ainda antes da luz vermelha e a sirene de emergência
começarem a alertar a tripulação.
Parado
em frente à janela lateral que dava visão completa do lado de fora para quem
estava fazendo suas refeições, o jovem mensageiro estava de olhos arregalados e
embasbacado.
-
João EC Brasil
Nota: esses contos se
passam no cenário do RPG Muito Abaixo do Oceano. Eles são compostos de
fragmentos de uma mesma história, cada um fazendo parte de pontos de vista de
diferentes locais do submarino.
Acompanhe o projeto do RPG Muito Abaixo do Oceano em sua página AQUI!
Nenhum comentário:
Postar um comentário